LANÇAMENTOs Da sempre viva cena portuguesa, apresentamos alguns títulos
editados nos últimos tempos que merecem uma atenciosa escuta...
Por Fabricio Vieira
Volúpias ****(*)
Gabriel Ferrandini
Clean Feed
O baterista Gabriel Ferrandini é um dos nomes mais inventivos de sua
geração, sendo não apenas uma figura central da cena portuguesa, mas também da
free music contemporânea como um todo.
Ferrandini já esteve no Brasil, onde pudemos vê-lo em ação em 2013, em duo com
Rodrigo Amado, e em 2014, quando se uniu a músicos locais em diferentes gigs.
Parte de alguns dos mais interessantes grupos da atualidade, a destacar o
Motion Trio e o Red Trio, Ferrandini tem tocado com artistas do mundo todo e já
é bem experimentado apesar de ter apenas 32 anos. Para esta sua estreia como
líder, o baterista convocou Hernâni Faustino (baixo) e Pedro Sousa (sax tenor),
outros dois instrumentistas notáveis de Lisboa. Volúpias, há pouco editado pelo
Clean Feed, estava esperando há algum tempo para vir à luz do dia, tendo sido
captado em fevereiro de 2017 em Fonte Santa, Alandroal. O álbum traz nove
temas, sete assinados por Ferrandini. A música apresentada é bastante coesa,
nota-se logo que é um disco criado como um álbum, não como um agrupamento de
peças independentes. A sonoridade, por vezes contemplativa, quase sussurrada
(como em "Rua de O Século"), nos conduz quase que como por uma viagem
embriagada madrugada adentro por Lisboa (todas as faixas têm em seu título a
palavra "rua" ou "travessa"). Os temas breves, entre 1 e 5
minutos, nos conduzem até "Rua da Barroca", a última, com seus mais
de 10 minutos e uma voltagem mais elevada, marcada por vivo solo de Sousa e uma
crescente intensidade destilada por Ferrandini. Este disco é a culminação de um
período de um ano de residência no clube ZBD, o que explica a sensível
maturidade do projeto e a intimidade expressiva dos músicos. Com Volúpias,
Ferrandini mostra que não é somente um grande percussionista, mas uma mente
repleta de vivas ideias.
Disquiet ****
Gabriel Ferrandini/ Ilia Belorukov
Clean Feed
Aqui vemos uma outra face do trabalho de Gabriel Ferrandini. Em
turnê pela Rússia no final de 2017, o baterista português se uniu ao
saxofonista local Ilia Belorukov, encontro que resultou neste conjunto de temas
em dueto. Esse clássico formato free jazzístico é explorado de forma intensa,
com o sax alto de Belorukov soando em boa parte do tempo com uma urgência
palpável. Sua intensidade expressiva tem na fantástica “The Big Passages” seus
momentos mais explosivos – após cerca de três minutos introdutórios, o sax vai
crescendo em potência, se abrindo em um solo de grande força. "Fragmented
Matter" é outro ponto de destaque, com o sax e a bateria estabelecendo
talvez seu mais íntimo diálogo. A gravação foi feita em São Petersburgo, nos
dias 18 e 19 de dezembro de 2017, onde o saxofonista vive. Belorukov é uma voz
contemporânea bastante interessante, mas que, por estar ligado mais à cena de
seu país, acaba tendo dificultada a circulação de seus trabalhos por aí. O saxofonista
conta com algumas dezenas de títulos em sua discografia, mesmo tendo apenas 31
anos, em colaborações que extrapolam o free impro, passando por noise,
eletroacústica e rock. Ter seu nome em um disco editado pelo Clean Feed e ao
lado de Ferrandini deve ajudá-lo a levar suas criações a ouvidos que estejam mais distantes.
Yellows ****
Marialuisa Capurso/ Pedro Santo
Last Pork Records
O baterista português Pedro Santo (Dead Vortex, Variable Geometry
Orchestra) apresenta nesta gravação um curioso dueto com a cantora e artista sonora italiana
radicada em Berlim Marialuisa Capurso. A sessão, registrada em novembro de
2017 no Last Pork Studio de Santo (que também é responsável pelo selo de mesmo
nome, pela gravação, pela capa do disco... DIY!), traz três temas, que
totalizam cerca de 30 minutos de criativa música improvisada. Capurso é uma
artista de marca muito particular, que merecia ter mais registros em sua
discografia, na qual se destaca o belíssimo "En Respirant" (2016). Em
Yellows, a voz de Capurso e a percussão de Santo criam camadas inebriantes, que
podem soar ritualísticas (como a partir do meio de "Ecru") ou nos
envolver de forma desconcertante, como quando explorações silabares e toques
percussivos fraturados nos rodeiam (algo que acontece em "Beige").
Duos menos usuais como este, de voz e percussão, geram sensações auditivas de
estimulante estranhamento, algo mais difícil em instrumentações que ouvimos
rotineiramente. Yellows é uma instigante
experiência.
Love Song: Post-Ruins ****(*)
Luís Lopes
Shhpuma
Este é o segundo título da série “Love Song”, na qual o guitarrista
Luís Lopes apresenta a face contemplativa de seu trabalho solo. Tal projeto é bem
distinto de outras investigações solistas de Lopes, nas quais aponta para o noise, à ruidosidade de ar roqueiro e a pedais (como registrado no álbum “Noise Solo At
ZBD”, 2013). Aqui vemos o guitarrista português em ação explorando as
voltagens acústicas de sua música. Diferentemente do “Love Song” anterior, que
apresentava diferentes breves peças, este Post-Ruins traz apenas um extenso
tema, de cerca de 37 minutos captados no Teatro Maria Matos (Lisboa) no dia 18
de maio de 2016, no qual Lopes desenvolve uma música climática, por vezes soturna
e minimalista, que vai progressivamente tomando os espaços e adentrando nossos
ouvidos, sensação que, ao vivo, deve ter sido contagiante. A delicadeza dos
acordes nos faz prestar atenção redobrada aos sons que surgem e desaparecem com
vagar, quase que se diluindo na atmosfera –como diz Lopes, a ideia era ocupar o
espaço como uma escultura, sem temporalidade ou qualquer sentimento de
sequência. No Youtube dá para ver Lopes durante a apresentação agora editada,
sentado sozinho em uma cadeira no centro do palco, de pernas cruzadas, cabeça baixa, os olhos nas cordas, o amplificador atrás dele. Se é impossível
reproduzir a sensação de quem esteve lá, ao vivo, ao menos é possível para a
gente ter uma imagem de como esta música quase estática, árida por vezes em seu belo marasmo, foi sendo criada.
Boa Tarde ****
Luís Lopes/ Julien Desprez
Shhpuma
Luís Lopes se une em Boa Tarde ao francês Julien Desprez,
em um pouco usual duo de guitarras. O som apresentado, com os instrumentos
eletrificados mergulhados e destilando camadas de efeitos, ruídos e texturas, é
completamente distinto do que ouvimos no trabalho solo de Lopes acima
destacado. São quatro temas, dois
extensos (totalizando cerca de meia hora) e dois mais curtos, em que o duo vai
de momentos mais climáticos nos minutos iniciais do disco a verdadeiras
explosões sonoras (a ruidosidade na segunda parte de "Iris", que pode
chegar a ser incômoda a tímpanos mais sensíveis, indica o rumo que dominará o
restante do álbum). A mais breve "Adelaide" (cada peça tem o nome de
uma mulher), que fecha o lado A do vinil, é uma experiência noise concentrada,
dessas que podem desnortear os ouvintes, sendo talvez o pico dos ataques
acústicos conduzidos pelo duo. No lado B, "Gracinda" e
"Constança" mantêm o tom, mesmo que buscando nos levar a campos de
novas ruidosidades. Gravado no Namouche Studios em agosto de 2016, Boa Tarde é
uma experiência de intensidade física e acústica, que deve ser
especialmente inquietante quando degustada ao vivo.
{ Lithos } ***(*)
Ernesto Rodrigues/ Luís Lopes/ Guilherme Rodrigues/ Parrinha/ Trilla
Creative Sources
O português Creative Sources é um dos selos mais ativos do free no
século XXI e desvendar seu catálogo
significa conhecer uma parte relevante do que vem sendo realizado em Portugal
e arredores por esses tempos. Focado na free improvisation, o selo foi criado pelo
violinista Ernesto Rodrigues em 1999 e não apenas distribui seus projetos, mas
o de outros tantos artistas inventivos da região – e o melhor: os álbuns ainda
são editados em formato físico. Este { Lithos } reúne um quinteto de nomes bem conhecidos
por aqueles que acompanham a produção portuguesa. Ao lado de Ernesto Rodrigues
estão Luís Lopes (guitarra), Guilherme Rodrigues (violoncelo), Bruno Parrinha
(clarinete baixo) e o espanhol Vasco Trilla (percussão). O álbum foi gravado em
24 de fevereiro de 2017, no sempre presente Namouche Studios (Lisboa) e traz cinco
temas (I, II, III...). A música aqui apresentada representa bem o perfil do
selo, com improvisação livre detalhista, com intervenções por vezes pontilhistas
que se desenvolvem sem arroubos, sem fúria, em uma tateante exploração de
caminhos improvisatórios coletivos. Música para ser ouvida com calma e atenção.
Jorge Nuno Connection: São Paulo
****
Nuno/ Alexis/ Vieira-Branco/ Cab
Creative Sources/ Big Papa Records
O guitarrista Jorge Nuno (Signs of the Sillouette, Dead Vortex) dá início
a seu projeto “Connection” com este São Paulo. Como indica o título, Nuno
gravou com músicos brasileiros, mais precisamente, artistas residentes em São
Paulo. Ao lado da guitarra de Nuno estão
trompete (Rômulo Alexis), vibrafone (Victor Vieira-Branco) e bateria (Rafael
Cab) – todos instrumentistas bem ativos que têm ajudado a cena local a se
manter viva e produtiva. Nuno é o artista português que mais passa pelo Brasil,
devido a seu trabalho extramusical, em uma companhia aérea, e por isso é
especialmente gratificante vê-lo desenvolvendo projetos com músicos daqui, ou
seja, suas passagens pelo país têm sido produtivas artisticamente – anteriormente,
gravou um instigante duo com o baterista paulistano Marcio Gibson, "Hãl". Sobre a série Connection, diz Nuno:
"Is a serie of connections with musicians from several places around the
world and the perception of each of them when playing together... The knowledge
of the place and the people we meet along the way is the most important of all".
Esta conexão com a cena paulistana rendeu cinco temas, em pouco mais de 40
minutos de improvisação livre. Logo na abertura,
"Deus-Fim", somos levados por um tema de profunda beleza, em que as
intromissões pontuais e espaçadas da guitarra e o trompete tocante de Alexis nos
remetem a cenários entorpecentes, espécie de câmera lenta de uma cidade ritmicamente insana como a que
vivemos. Esse tom marca também "Tiro-Viola", a mais extensa com seus
16 minutos, apesar de tanto trompete como guitarra estarem em voltagens mais faiscantes
(os efeitos criados por Nuno são especialmente impactantes, a destacar quando a
música esquenta lá pelos 3 minutos, com cordas e sopro em seus momentos mais
furiosos). Por trás disso tudo, o vibrafone de Vieira-Branco pincela a
atmosfera com sons por vezes enigmáticos, entrecortados pela bateria detalhista
de Cab, que ocupa os espaços sem se sobrepor de forma muscular. As conexões
Portugal-Brasil deveriam ser, sem dúvida, muita mais intensas e rotineiras.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)