Joëlle Léandre: “Contrebassiste - Taxi” (1982)







DISCOTECA BÁSICA: À espera pela vinda da baixista francesa Joëlle Léandre ao Brasil, revisitamos seu primeiro álbum, Contrebassiste -Taxi...








Por Fabricio Vieira


Em dezembro de 2017, Joëlle Léandre publicou uma carta aberta endereçada aos organizadores da premiação Les Victories Du Jazz. No documento-manifesto, criticava o machismo e o conservadorismo do evento e do jazz em geral. “How is it possible that in the 21st Century again and again not one single woman was nominated?”, questionava. “Yes, I am angry. I am 66 years old and on the road for 41 years, around the globe, with my dear friends, male and female, creating, inventing my Music... crying even, shouting...” A repercussão foi grande, pôde-se ver a mensagem de Léandre circulando por aí, compartilhada até por gente que não acompanha o mundo free jazzístico e da improvisação livre, por gente que provavelmente desconhecesse a importância de sua obra para a música contemporânea.

Photo: Kirill Polonsky
Joëlle Léandre, baixista francesa nascida em Aix-en-Proence, em 12 de setembro de 1951, é uma artista de sólida formação e inventitividade inesgotável, como demonstra suas quatro décadas de trajetória. No início de seu caminho está o Conservatoire National Superieur de Musique de Paris, onde estudou lá pelo começo dos anos 1970 – mas seu envolvimento com a música vem de antes, tendo sido iniciada muito jovem em piano e baixo. O ano de 1976 seria um marco nessa jornada: é quando chega aos Estados Unidos e entra para o Creative Associated of the Arts, em Buffalo (NY), onde lecionava Morton Feldman (1926-1987). Muito interessada no trabalho de John Cage (1912-1992), Léandre acaba, assim, por se aproximar de seu círculo; o auge dessa relação viria no formato de uma peça que o próprio Cage comporia especialmente para ela, uns anos depois. Antes de se tornar um nome central da free improvisation, a partir da década de 1980, a artista teve essa ligação com o experimental erudito, tendo também trabalhado com o icônico Ensemble Intercontemporain, de Pierre Boulez. Essa face de sua arte ficaria registrada em álbuns como "Okanagon" (93), em que interpreta composições do italiano Giacinto Scelsi, e "The Wonderful Window of Eighteen" (96), em que o foco está em Cage.

Além de ser um dos nomes centrais do baixo contemporâneo, Léandre utiliza a voz como elemento expressivo. Em sua obra também encontramos diferentes trabalhos destinados ao mundo da dança, em colaborações com Dominique Boivin, Merce Cuningham e Elsa Wolliaston. E se o núcleo de sua obra está no universo da free improvisation, em sua face de improvisadora, Léandre tem de ser ainda destacada como compositora e incrível instrumentista que é. Essa multiplicidade de realizações resultou em uma discografia que ronda os 180 títulos – e não para de crescer: olhando apenas para as últimas semanas, chegaram ao mercado “Map of Liberation” (Rogueart), com Myra Melford e Nicole Mitchell, e “Solar Wind” (Not Two), trio com Miya Masaoka e Robert Dick. Nessa trajetória de quatro décadas, são inúmeras as parcerias e projetos que manteve. Mas vale destacar algumas paradas essenciais que devem ser conhecidas por quem quer descobrir sua obra: Les Diaboliques, trio com Irène Schweizer e Maggie Nicols, suas antigas parcerias no impactante European Women’s Improvising Group (EWIG); Quartet Noir, formado com Marilyn Crispell, Urs Leimgruber e Fritz Hauser; e os duos, fundamentais em sua história, dos mais antigos, ao lado de nomes como Carlos Zíngaro, Schweizer e William Parker, aos mais novos, com Elisabeth Harnik e Théo Ceccaldi.


  
À parte e por entre isso tudo está um capítulo essencial de sua arte: o trabalho solista. Nesse formato, no qual fez sua estreia discográfica no início dos anos 80 e que a tem acompanhado por todo seu percurso, fez incontáveis apresentações pelo mundo e deixou uma série de álbuns fantásticos pelo caminho: “Contrebassiste - Taxi“ (1982), “Sincerely” (1985), “Contrebasse et Voix” (1988), “Urban Bass” (1990), “Solo Bass” (1999), “No Comment” (2001), “Concerto Grosso” (2005), “Solo” (2011), “Wols Circus” (2012)... Esse conjunto permite ver não apenas as transformações de sua linguagem, mas também momentos vitais da arte do baixo acústico.


I’m a broker of roles when it comes tothe double bass, breaking away from its tradicional role in the orchestra, in jazz. The bass can be a solo instrument, it can sound like a voice, a drum, a piccolo, anything. The possibilities are endless. It’s a work in progress, disse Léandre em entrevista a Dan Warburton (Paris Transatlantic, 2002).



"Contrebassiste - Taxi" está no início de tudo. Este brilhante álbum, editado em 1982, é fundamental não apenas por ser o trabalho que marca a estreia da longa trajetória de Léandre, mas também por soar inventivamente distinto do que ocorria na cena musical daquele período. Com pouco mais de 36 minutos e 5 faixas, Contrebassiste é um fascinante disco solo marcado por experimentações em diferentes campos, em que Léandre não esconde sua proximidade com o erudito contemporâneo, algo bem latente então, trabalhando com arco e pizzicato, voz, overdubs e pré-gravações, criando peças de vieses distintos, mas que formam um conjunto coeso e coerente, uma narração contínua, na qual a artista amplia as possibilidades de um álbum de baixo solo. O disco funciona como uma viagem poética pelo cotidiano (poderia dele ser feito um filme, com um pré-roteiro interno palpável), com climas variados de intensidade, lirismo e experimentação. A obra teve sua realização em duas etapas: no Studio Achille, em Marly-le-Roi (França), foram feitas as pré-gravações de fitas, em 1981, que seriam utilizadas na finalização da obra; depois, em novembro de 1982, no Liben Studios, em Cincinnati (EUA), aconteceram as gravações finais, edição e mixagem. Essa etapa de finalização foi fundamental para o que a obra seria. Para quem ainda não ouviu o disco, uma explicação: as peças trazem muitas vezes mais de uma linha de baixo, com a utilização de overdubs, além do uso da voz, em recitação ou fragmentos: ou seja, o trabalho de edição é uma peça basilar na construção da obra.

Quando colocamos o disco para tocar, em “Ouverture (Overture)”, a primeira coisa que ouvimos é a voz de Léandre e um barulho que parece ser o de abrir/fechar uma porta, como alguém saindo de casa. Logo somos arrastados por uma bela e tocante melodia, que vai nos levando por um caminho que de início parece reconfortante, mas que acaba sendo invadido por ruídos surgindo ao fundo, que vão se ampliando e quebrando uma certa lineariedade que parecia existir. Esse trajeto inicial é interrompido bruscamente após pouco mais de três minutos, com um focado solo movido pelo arco centrando a escuta por cerca de dois minutos, até entrarmos na etapa final, de tensão crescente em meio a linhas sobrepostas. "Témoignage (Homage)" vem em seguida com uma atmosfera bem distinta. Uma voz é a primeira coisa que chama atenção, surgindo e desaparecendo enquanto o baixo vai, incialmente com toques nas esferas mais graves, assumindo protagonismo, com ataques perturbadores, ríspidos, que recuam para se desdobrarem em um solo acompanhado pelo canto inicial, que ressurge, agora mais audível, nos guiando ao desfecho do tema.    

Quem estiver ouvindo o vinil passará ao lado B, onde encontrará a peça nuclear da obra. “Taxi!”, grita Léandre, e ouvimos o barulho do motor de um carro partindo; por três vezes, a sequência se repete: a instrumentista que não consegue pegar um táxi, como na foto da capa do disco, desolada com seu grande baixo parada na calçada. Desolada, mas também furiosa. E aqui as palavras assumem o primeiro plano. Em canto-fala, a bela voz de Léandre nos conduz por um emaranhado de palavras que dialogam com o baixo, em um jogo poético no qual podemos sentir sua indignação com os percalços impostos a ela, mulher e baixista. “Remarquez on est des, Tax! Casse, bassiste, qu’est... ce cadavre, des trains, des musiques.  Qu’est que c’est taxesse... Votre bras, mousse, poche des tableaux. Des mariées des machins! Instrumentarressiste... machinista... trucs... des cadavres... des tableaux. Taxi hommi Klos... Crinari... Taxxx...” Em “Taxi”, Léandre oferece uma face extremamente inventiva de sua arte que, infelizmente, não continuou sendo desenvolvida como poderia se esperar no futuro.

“Cri (Scream)”, em seguida, se desenvolve a partir de três vias principais operando ao mesmo tempo: uma delicada linha dedilhada no baixo; outra linha, arrastada, que sobe e desce, vindo do fundo e tomando o primeiro plano, tocada pelo arco; e fragmentos de vozes, que não chegam a formar sílabas, uma conversa telefônica que ameaça começar, mas que não se desenvolve, em meio a sussurros ("shhh...") que vem e vão. 
A letargia atordoante do dedilhado remete a um tempo quase que em câmera lenta, nos colocando em um ponto em que a comunicação parece não conseguir se realizar. Esta faixa poderia tocar em loop infinito, acompanhando um melancólico dia cinzento em que as horas não passam... “Bass Drum”, o último capítulo desta inebriante jornada, nos apresenta outros campos, com uma tensão progressiva quando o arco irrompe cortando as cordas e o espaço, por sobre um dedilhado que circula de um lado a outro, como se não soubéssemos de onde vem, até sons pré-gravados confundirem nossos sentidos, lembrando algo de música concreta, com uma melodia, tocada agora pelo arco, se insinuando por entre ataques mais ríspidos que atravessam a atmosfera de maneira sufocante. Apenas no último minuto uma melodia que parecia rondar o ar consegue começar a se desenvolver, trazendo certa ordem à escuta, como uma coda nos conduzindo para fora daquele universo.



Editado em 1982 na França pelo Adda (Association Départementale por le Développement des Arts), selo mantido por incentivos estatais e destinado à música contemporânea, Contrebassiste - Taxi recebeu no ano seguinte uma edição nos Estados Unidos, pelo Liben Music, especializado em música contemporânea de câmara e orquestral. Uma curiosidade: a versão norte-americana não traz o subtítulo “Taxi”. 
Não se sabe o motivo disto, mas o que parece apenas um detalhe se revela mais do que isso quando prestamos atenção ao disco. O subtítulo, a imagem da capa, a peça central do álbum integram um todo que perde um de seus alicerces com tal subtração. A diluição da obra se estenderia nos anos 1990, quando é publicada em CD. Primeiramente, o título foi trocado para “Urban Bass”, sendo publicado pelo mesmo Adda em 1990. Depois, o que parece um descuido ainda maior: um novo conjunto de peças foi adicionado ao registro original de Contrabassiste. Trata-se de “Séraphine Duo", dueto com a violista Sylvie Altenburger, registro em quatro partes que vem do mesmo novembro de 82 em que Contrabassiste foi gravado, mas soando distinto, algo camerístico. 
O problema é que “Séraphine" não entra como um bônus no final, como era de se esperar: as peças são colocadas no meio dos temas do disco original, como um bloco estranho entre “Taxi” e “Cri (Scream)”, quebrando a lógica que regia a obra de estreia de Léandre. Talvez a própria instrumentista tenha participado da edição em CD e tivesse um propósito específico para tal nova ordenação, mas isso só ela pode responder... Urban Bass recebeu uma segunda versão em CD, em 94, pelo também francês “L'Empreinte Digitale", com um nova capa. Mais recentemente, em setembro de 2018, o registro foi relançado uma vez mais – o que sempre é uma boa notícia, pois significa manter esta preciosa música em catálogo –, como parte de uma nova coletânea, “Double Bass”, recebendo o subtítulo “Verso”, estranhamente em mais um processo de diluição da edição original. A quem for ouvir esta música, independentemente da versão a que tiver acesso, recomendamos se atentar à sequência original dos temas e à capa com a qual apareceu pela primeira vez.


Joëlle Léandre desembarca, em poucos dias, pela primeira vez no Brasil, onde tem concertos e oficinas programados, tudo em São Paulo dentro do festival IMPRÔ. Uma de suas apresentações será exatamente solista: oportunidade única para apreciar uma das artistas fundamentais da free music contemporânea.




*JOËLLE LÉANDRE no Brasil*



-Concertos

Quando: 7/9, às 21h (com Thomas Rohrer e Mariá Portugal)
Onde: Estúdio Bixiga (SP)

Quando: 8/9, às 17h (solo)
Onde: Estúdio Bixiga (SP)


-Oficinas

Quando: 9 e 10/9, às 10h
Onde: Associação Cultural Cecília (SP)





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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)