CRÍTICAs Ivo Perelman e Matthew Shipp, que preparam o lançamento de
novo álbum, trouxeram ao palco do Sesc Pompeia sua encantatória música...
Por Fabricio Vieira
Quando o saxofonista Ivo Perelman e o pianista Matthew Shipp adentraram o palco do
Teatro do Sesc Pompeia (SP) na última sexta-feira quem estava presente e
conhecia o trabalho deles com certeza foi tomado por grande expectativa. Dois
dos mais destacados nomes da cena free desde a década de 1990, Perelman e Shipp
engataram uma sólida parceria em anos recentes, que rendeu álbuns realmente
brilhantes, como “Callas” e “Corpo”. Ambos já tocaram no Brasil em outras
oportunidades, inclusive juntos no quarteto de Ivo, em 2010 e 2013 (esta, a última vez que Perelman tinha tocado no país). Mas foi a
primeira vez que trouxeram esse projeto, o duo, para o público brasileiro.
(Photos: Edson Kumasaka) |
Quem lá esteve viu o Teatro em sua meia configuração, apenas um lado da
plateia, com um telão no fundo onde imagens de quadros de Perelman subiam e se
alternavam lentamente, ajudando a criar uma atmosfera imersiva. A apresentação de
sexta-feira se estendeu por cerca de uma hora, dividida em dois grandes temas.
O duo costuma entrar no palco para trabalhar sem interrupções, gestando uma
apresentação direta, desde que o clima e o diálogo permitam isso, claro – tanto
que, quando a música foi rareando até sumir, encerrando o primeiro tema,
Perelman respirou fundo e falou brevemente com o público, indicando que tinha a
expectativa de que a noite se desenvolvesse sem cortes. Enquanto recuperava o
foco, Perelman ficou no canto, tomando água, com Shipp iniciando de repente a
segunda parte sozinho; por breves minutos pudemos sentir o mágico solar de
Shipp, até que o sax voltasse sem muita demora a seu encontro, em um dos
momentos mais líricos da apresentação. Nesse ponto de quebra e retomada, veio à
mente o que Perelman disse em entrevista ao FreeForm, FreeJazz: a dinâmica
entre a música que eles fazem em dueto no palco e em estúdio é bem distinta.
Saindo
do concerto, com a apresentação fresca nos ouvidos, fui escutar o novo disco, “Efflorescence”,
a ser editado pelo Leo Records nas próximas semanas. Lá encontra-se música para
adentrar a noite: afinal, o álbum é composto por 4 CDs, ou seja, algumas horas
de sons. Escutar “Efflorescence” após o show deixa clara a diferente dinâmica
que envolve os dois atos: nos deparamos com temas bem mais breves e diretos que os
criados ao vivo, num total de quase 50 peças espalhadas pelos CDs. Sim, são os
mesmos músicos e explorando os mesmos universos sonoros, tendo sempre como arma
a improvisação livre. No entanto, se o desenvolvimento dessa música ao vivo e
no CD parece (ou é de fato) distinto, podíamos fazer um teste: ouvir as faixas
dos discos sem interrupção; o resultado é poder notar uma unidade mais fina entre
as duas experiências. Vale neste ponto fazer um outro jogo: colocar para tocar “Bendito
of Santa Cruz”, primeiro encontro deles no longínquo 1996 (eu nem havia
descoberto o mundo do free nesta época!). Este álbum marca os momentos
derradeiros da primeira fase da obra de Perelman, que chamamos de “ciclo
brasiliano”, quando ele explorava o universo musical popular brasileiro,
partindo daí para improvisar livremente. É curioso que no álbum gravado em 96 o
duo toque temas, como “Zé do Vale” e “Cana Fita”, com uma pitada de música popular dando
um norte melódico e narrativo aos improvisos, algo impossível de se imaginar
agora. E pelo que sei, não fizeram shows à época.
Aqueles que estiveram nos concertos desses dias no Sesc Pompeia viram que a
comunicação telepática do duo faz com que a música flua sem arestas, como se seu
caminho fosse preestabelecido. Essa é a mágica da free improvisation feita com maestria.
A música está longe de ser linear, mas as mudanças climáticas que vemos se
desnudar na nossa frente são feitas sem sobressaltos. Houve momentos de maior
energy por parte de Perelman, respondidos (ou em resposta, dependendo do
momento) com um vigor martelante pelas teclas, uma robustez que Shipp sabe
imprimir sem soar agressivo; em outras curvas nesse caminho, nos deparamos com
atmosferas climáticas, quase delicadas, onde os ouvidos aguçam a percepção para
alcançar os toques mínimos do piano, acompanhados por um sax sussurrante. Em
meio a essas ondulações, praticamente não há momentos solistas; as duas vozes
atuam em diálogo contínuo, com certas vezes parecendo surgir algum protagonismo
de um dos instrumentistas (ao menos nossos ouvidos são levados a acreditar
nisso, focando a percepção aqui e ali em um ou outro). Em “Efflorescence”, essas
nuances e alterações parecem ser menos profundas, com as faixas como que se
centrando em aspectos mais coesos a serem desenvolvidos em menos tempo – daí aquela
proposta de ouvir as faixas do disco sem intervalos, gerando uma experiência
talvez mais conectada com a performance ao vivo...
Alguns pontos de conexão são interessantes entre o disco a ser lançado
e os concertos que tivemos o prazer de assistir. “Efflorescence” é o último
registro feito pelo duo em estúdio, em junho de 2018. O passo seguinte após as sessões (foram
9 dias de gravações, editados em dois boxes, sendo o segundo volume programado
para sair mais para o fim do ano) foi uma turnê, que passou por diversos
países (Alemanha, Bélgica, Israel, Áustria, Holanda, Rússia, Inglaterra), culminando com o show de
sexta-feira em São Paulo, sendo a próxima etapa neste processo o lançamento do
CD: ou seja, é como se esse capítulo último do duo iniciasse (a gravação) e
fechasse (o lançamento) com “Efflorescence”, recheado por shows no meio,
concluindo mais uma etapa do trabalho magistral que Perelman e Shipp vêm
realizando. O show do dia 12 de julho encerrou a turnê do duo, tendo como
efeméride a comemoração dos 30 anos de carreira do saxofonista, iniciada
profissionalmente com a edição do disco “Ivo”, em 1989. Esperamos que não
fiquemos mais tantos anos sem poder ouvir a música de Perelman ao vivo.
------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)