ENTREVISTA Quase seis
anos após sua última apresentação no país, Ivo Perelman retorna trazendo seu
duo com Matthew Shipp. O saxofonista falou com o FreeForm, FreeJazz sobre o
projeto com Shipp, álbuns que gravaram, os shows no país...
Por Fabricio Vieira
O saxofonista Ivo Perelman retorna a São Paulo para duas apresentações
em duo com o pianista Matthew Shipp nos próximos dias. Perelman comemora 30
anos de carreira (seu disco de estreia, "Ivo", foi lançado em 1989) e
vem com seu atual mais importante projeto, com o qual editou vários discos nos
últimos anos. Nas últimas duas vezes que tocou no Brasil, em 2010 e 2013, o
saxofonista veio com Shipp, mas em outro contexto, em quarteto. Como duo, esta
vinda é inédita no país. Vivendo em Nova York desde a década de 1980, Perelman,
nascido em São Paulo, é uma das vozes mais expressivas do tenor em sua geração,
contando com 90 álbuns editados. O mais recente de seus registros, que chega ao
mercado em algumas semanas pelo selo britânico Leo Records, é exatamente o
último título do duo, Efflorescence. Juntos, em discos de sax e piano, Perelman
e Shipp editaram nove títulos: "Bendito of Santa Cruz" (97),
"The Art of the Duet" (2013), "Callas" (2015), "Complementary
Colors" (2015), "Corpo" (2016), "Live in Brussels"
(2017), "Saturn" (2017), "Oneness" (2018) e agora
Efflorescence. Um pouco dessa genial música será apresentada ao público brasileiro nos dias 11
e 12 de julho, no Teatro do Sesc Pompeia (SP). Além dos shows, Perelman fará uma exposição com quadros seus na Galeria Arte Aplicada entre os dias 13 e 23 de julho. Antes de embarcar para o Brasil,
Ivo Perelman teve uma conversa, focada no trabalho do duo que mantém ao lado de
Shipp, com o FreeForm, FreeJazz.
Como conheceu o Matthew Shipp lá nos anos 1990 e como se reencontraram mais
de uma década depois?
Ivo Perelman: "Eu conheci o Matthew por meio da esposa dele. Ela
era garçonete em um restaurante lá na década de 90, no East Village. Era um
domingo de manhã e eu estava com amigos falando sobre música na mesa, e ela nos
servindo ouviu a conversa e perguntou se eu conhecia o trabalho do marido dela,
Matthew Shipp; eu disse que sim, conhecia a música dele, o tinha visto tocando com
o Roscoe Mitchell no Knitting Factory (NY), havia gostado muito e estava na
verdade pensando nele, na música dele. E ela me passou um contato e acabei
marcando com o Matthew diretamente uma gravação, nos encontamos pela primeira
vez em um estúdio, que deu origem ao CD 'Bendito of Santa Cruz' (registrado em
janeiro de 96 e lançado no ano seguinte pelo Cadence Records). Após este CD,
ainda fizemos algumas coisas na época que apareceram em disco (há um trio com
William Parker, 'Cama de Terra', e alguns temas que entraram no álbum 'Aquarela
do Brasil'). Depois, cada um cuidou de seus trabalhos até que em 2010, em um
turnê na Europa organizada pelo baterista espanhol Ramón López, eu conversando
com o Joe Morris, perguntei como estava o Matthew e ele recomendou que entrasse
em contato com ele e, com esse empurrão do Joe, acabei chamando ele para fazer
o The Hour of the Star (2011). E a partir daí foi uma espécie de renascimento
muito forte e não parei mais de trabalhar com o Matthew. E você pode perguntar:
porque esse reencontro se mostrou tão fértil e não logo de início, porque se
mantiveram afastados por tanto tempo? A resposta é: não sei (rs). São assim os
caminhos misteriosos da vida. Mas a força deste trabalho inicialmente já se
sentiu ... logo no primeiro momento que toquei com ele senti a força, a
originalidade dele, mas foi assim que seguiu o caminho da gente."
Entre a primeira gravação que fizeram em duo e a segunda, "The Art
of the Duet" (setembro de 2012), se passaram mais de 15 anos. O quanto as
possibilidades sonoras exploradas em dueto mudaram entre uma sessão e outra?
Sentiram na hora de gravar "The Art of the Duet" que estavam
desbravando outros campos sonoros?
IP: "As possibilidades sonoras do 'The Art of the Duet'...
gravamos antes a sessão do The Hour of the Star, mas o dueto apresenta soluções
estéticas muito específicas em relação a quando toco com ele em outros
contextos. A diferença disso para o primeiro duo, o Bendito of Santa Cruz, é
enorme, é quase como, vamos dizer, um homem adulto não guarda muitas
semelhanças com sua infância; digamos que o 'Bendito' é a infância do nosso duo.
E mudamos tanto que na minha opinião é irreconhecível. Claro que a energia, a
parte espiritual, essas coisas ficam intactas, mas o conteúdo mais
pormenorizado, que tipifica o desenvolvimento de cada um de nós, é enorme, o
que prova que esta música nunca é estanque, nunca está em um nível de conforto,
o que a define é esta necessidade de desenvolver, de criar, de retratar um
momento presente."
Dos 9 discos que você e o Matthew Shipp gravaram em duo, alguma sessão
foi mais truncada, menos produtiva? Há sobras de estúdio que poderão vir a ser lançadas?
IP: "Coisas de estúdio não, mas tem muita coisa que a gente fez ao
vivo, algumas com gravações muito boas e que a gente ficou bem satisfeito com a
performance. Por exemplo, em Israel (onde tocaram em outubro de 2018) e em
Dusseldorf, na Alemanha, onde tocamos em uma sala muito bonita, a música fluiu
muito bem, o próprio organizador do evento tem um selo e está pensando em
lançar o concerto em CD. A gente tem um plano, eu e o Matthew, ainda não
realizado, tentamos algumas vezes, mas não conseguimos levar para frente, que é
gravar várias sessões e pincelar apenas o que parecer muito especial. Essa era
a ideia inicial de Efflorescence, mas quando a gente ouviu os nove dias de
gravações resolvemos lançar de uma vez praticamente tudo, sem desmembrar só
porque tínhamos um conceito inicial. E agora, pela terceira vez estamos
pensando em fazer isto de novo, só que desta vez focados no compromisso de
gravar várias vezes, vários dias, e, mesmo 'sangrando', optar apenas por
algumas das faixas, as melhores, as mais representativas. Então, novos CDs que
surgirem devem ser frutos dessas opções que citei."
Uma diferença que noto no disco ao vivo que vocês lançaram, "Live
in Brussels", e os registros de estúdio é a duração dos temas. No ao vivo,
vemos apenas três longas faixas (fora o bis), entre 20 e 40 minutos. Os discos
de estúdio trazem, de um modo geral,
vários temas, muitos inclusive curtos, em torno de 2 minutos. As coisas
costumam ser mais centradas e diretas no estúdio?
IP: "São dois tipos de concentração diferente, tocar no estúdio e
tocar ao vivo. O fato de o palco resultar em músicas mais longas é uma coisa
curiosa. Frequentemente me pergunto isso e converso sobre com o Matthew. Acho
que o fato de estar ali rodeado por outras pessoas cria uma certa tensão no ar
e a gente não quer interromper a história que desenvolvemos, queremos falar
tudo o que precisa do começo ao fim e uma interrupção nesse processo é como se
abrisse um diálogo com a plateia, dá essa impressão abstrata... A gente meio
que entra no palco preparados para dar o recado inteiro do começo ao fim, ao redor
de uma hora, mais ou menos. Às vezes, a música dita um fim forçosamente, aí a
gente precisa de uma pausa. Já no estúdio, a gente pode se dedicar a
miniaturas, sendo uma espécie de exercício para a gente, em que aquilo que
podemos falar por 20, 40 minutos, podermos dizer também de forma sucinta; é um
bom desafio, quase que fazer um haikai, em 2 ou 3 minutos, como às vezes
resulta no estúdio. O fato de não ter ninguém mais no estúdio, só nós e o
engenheiro gravando... a predisposição do palco, que nos leva a querer dizer
tudo de uma vez, não existe no estúdio, a música pode até resultar maior, mas
se ela quiser ter 2 ou 3 minutos a gente não se esforça para que isso não
aconteça."
"Efflorescence", que sai em algumas semanas pelo Leo Records,
é um álbum quádruplo que traz o subtítulo "Vol. 1". A segunda parte será
editada ainda neste ano? O disco vem daquelas 9 sessões que vocês fizeram em
junho de 2018? Tudo gravado lá estará nesses dois volumes?
IP: "Esses dois volume retratam tudo o que foi gravado naquelas
duas semanas. Optamos por um número redondo, 8 CDs (divididos em dois volumes),
então o primeiro dia de gravação resolvemos eliminar, sentimos que a partir do
segundo dia o trem entrou melhor nos trilhos, digamos assim. O segundo volume
está programado para sair até o fim do ano."
Não tem medo de que gravando tão seguidamente como tem feito com esse
duo – são 7 lançamentos em menos de 5 anos – acabe por desgastar a parceria, se
repetir ou cansar o ouvinte com tantos discos no formato?
IP: "Não, não há medo nenhum, não passa pela cabeça algo como
desgastar o duo (rs). Na verdade isso tudo exercita mais as engrenagens pelas
quais conversamos. O que tenho com Matthew é um reservatório quase infinito de
diálogos. Meu modus operandi é o mesmo do dele, em que buscamos captar o
momento presente. Sinto que estamos blindados do risco de esgotar nosso
relacionamento musical, seja lá quantos CDs gravarmos... E, pelo contrário,
quanto mais gravamos, acho que mais incrível fica, mais flexível, veloz, e
espiritualmente gratificante porque quando a gente toca vamos cada vez mais
para dentro de nós mesmos. E o público que acompanha a gente é um público que
conhece o que há de especial no duo. Tenho tocado com músicos incríveis, mas o
tipo de dinâmica que temos juntos é muito raro."
O duo, não só de sax e piano, é um formato muito explorado no universo
do free jazz/free impro. Quais álbuns neste formato considera essenciais?
IP: "O duo é um formato muito especial na música criativa porque
possibilita o encontro íntimo, direto, entre dois pensadores musicais. Na minha
formação de músico e muitas décadas ouvindo jazz, um que me marcou e acho
essencial são os duetos do Rashied Ali com o John Coltrane, o Interstellar
Space (1967), que tem um peso histórico muito grande, além de ser muito forte e
ter influenciado tantos músicos por décadas."
Sei que os músicos costumam preferir o último trabalho ou dizer que
todos os registros têm importância igual. Mas queria que apontasse um dentre os
álbuns do duo que recomendaria a um ouvinte que ainda não conhece o trabalho de
vocês e deseja iniciar a exploração desse universo.
IP: "Por sermos muito focados na transcrição do momento, cada CD é
uma história totalmente diferente, como o dia em que despertamos e fomos ao
estúdio, é tudo radicalmente diferente. Então é muito difícil dizer qual seria
meu filho preferido nessas criações que tenho realizado com o Matthew. Mas
posso tecer algumas considerações. Por exemplo, o 'Callas'. Este foi um disco
que teve a gestação mais longa, conceitualmente, que todos. A história é
conhecida, tive um problema na laringe, mais de seis meses em tratamento, período
em que passei a estudar canto e ouvir Maria Callas. O resultado dessa gestação
excepcionalmente longa deu ao álbum uma cor muito diferente, inconfundível. Eu
e o Matthew, a gente sempre fala do Callas como 'o nosso CD'. Se me desse uma
segunda opção, além do Callas, o 'Corpo' é muito especial também. Por outros
motivos, saiu de uma forma poética, destilada, composicional, eu estava
estudando na época a influência dos intervalos musicais e isso se refletiu em
uma gravação mais cerebral, um pouco mais conceitualmente elaborada, e então
Corpo seria o segundo disco que, talvez, pudesse ser a melhor introdução ao duo."
A quantos países vocês já levaram o duo? Como é poder tocar agora no
Brasil com esse projeto?
IP: "O duo já foi a Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Israel, Itália, Inglaterra e Rússia (fora os concertos nos EUA, onde ambos moram). Tocar no Brasil agora é muito especial, tocar aí sempre é um motivo que me emociona. A energia no palco é muito específica aí no Brasil, a plateia é muito receptiva, a energia que recebemos de volta no palco é muito intensa e muito propícia ao que acontece lá em cima. O que a gente faz ali, a maior parte recebemos do público e uma pequena porcentagem é entre eu e Matthew, tocando para a gente mesmo, nosso prazer de conversar. Mas a situação que nos rodeia, a energia do público e do país onde a gente está, é muito importante. Então a oportunidade desses dois shows nos dá muita alegria."
*IVO PERELMAN e MATTHEW SHIPP Duo*
-Serviço:
Quando: 11 (qui) e 12 (sex) de julho, às 21h
Onde: Teatro do Sesc Pompeia (SP)
Quanto: de R$ 9 (comerciário) a R$ 30 (inteira)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)