CRÍTICAs O muito aguardado documentário
sobre o percussionista Milford Graves chega ao Brasil durante o festival In-Edit.
O FreeForm, FreeJazz já assistiu e conta um pouco do que o filme traz...
Por Fabricio Vieira
O percussionista Milford Graves tem mais de cinco décadas de vida
musical. Pioneiro do free jazz, participou da criação do mítico “New York Jazz
Quartet” em 1964, ao lado de John Tchicai e Roswell Rudd, tendo construído uma
obra que se espalha por algumas dezenas de álbuns, muitos obrigatórios na
estante de qualquer fã do gênero. Nascido no bairro de South Jamaica, no Queens
(Nova York), em 1941, Graves trabalhou com figuras como Albert Ayler, Sonny
Sharrock e Don Pullen, logo se tornando líder de seus próprios projetos. Seu
amor pela amplitude do universo percussivo – aprendeu a tocar congas e esteve
em grupos de latin/afro-cuban jazz ainda jovem, tendo também se dedicado ao
conhecimento da tabla indiana – fez com que passasse a organizar, ainda nos anos
60, grupos dedicados apenas à percussão (em 65, editou pela ESP-Disk o título “Percussion Ensemble”, ao lado de
Sunny Morgan), em destaque nessa seara a parceria com Andrew Cyrille (“Dialogue of the
Drums”, 74) e o quarteto com Cyrille, Don Moye e Kenny Clarke (“Pieces of Time”,
84).
Para ele, a percussão tem uma importância solista, uma voz protagonista
que muitas vezes não é associada a quem comanda as baquetas. Esses trabalhos
foram fundamentais para sedimentar sua linguagem muito particular, na qual a
herança percussiva africana e jazzística e o poder ritualístico da música se
unem em celebração. A amplitude de suas investigações é sintetizada nos álbuns solistas
“Grand Unification” (98) e “Stories” (2000). Não à toa, esses discos citados
compõem boa parte da trilha sonora de Milford Graves Full Mantis,
documentário sobre o percussionista que agora chega às telas brasileiras como
parte do festival In-Edit Brasil (o público terá três oportunidades de ver o
filme nos próximos dias).
Um pouco do universo de Graves já havia sido apresentado em “Speaking
In Tongues”, um documentário feito por Doug Harris, na década de 1980, para a
TV alemã. Mas este Milford Graves Full Mantis amplia e aprofunda o que vimos
lá, sendo realmente obrigatório para quem acompanha e admira seu trabalho.
Este é um retrato íntimo, focado completamente em Graves, sempre em sua
singular morada, deixando de lado as habituais intervenções em documentários de
amigos, familiares e parceiros contando histórias e curiosidades; Milford
Graves Full Mantis escapa da fórmula tradicional desse tipo de filme para criar
uma narrativa poética que bem dialoga com a arte do protagonista. Somos apresentados com vagar primeiramente a objetos
que decoram sua casa, intimamente ligados a seus múltiplos interesses: esculturas,
livros, máscaras, estátuas, os detalhes vão se alternando enquanto surge ao
fundo sua voz e sons percussivos, até o presente ser interrompido por explosivas
imagens em preto e branco do passado, com um dos trechos mais incendiários de uma
fulminante apresentação de seu quarteto (Hugh Glover, Arthur Williams e Joe
Rigby) em 1973, na Bélgica, época de intensidade arrepiante. Daí voltamos à
casa de Graves, na mesma localidade onde nasceu, sendo reintroduzidos, vindo de
fora, a seus jardins repletos de muitas espécies de plantas, enquanto o músico
vai narrando em off. Nesse ponto, a primeira coisa que apareceu na tela, lá no
início – as palavras de Graves: “Look at the room downstairs, look at the garden
outside, don’t try to analize it, just take it in” –, amplia seu sentido.
Se Milford Graves não pode ser chamado redutivamente de baterista,
também não deve ser preso à palavra percussionista. Artista plástico e marcial
(criou nos anos 70 a arte marcial Yara, baseada em movimentos de danças rituais
africanas), acupunturista, fitoterapeuta, botânico, professor no Bennington
College, Graves é um personagem múltiplo que une e traz todas essas diferentes perspectivas
em que atua para sua criação musical – e é assim que deve ser encarado. Um dos
méritos do documentário é exatamente compreender isso e desenvolver esse
retrato impressionista olhando para todas as facetas do artista. Muito
interessante é a parte em que Graves apresenta suas pesquisas do que chama de “Heart
Music”. Em uma espécie de laboratório em seu porão ele captura, registra e elabora
sons do coração, experiência que conduz há muitos anos. Usando estetoscópios,
sensores e computadores, grava, analisa e reestrutura os diferentes microrritmos
obtidos para explorar pulsações novas.
O amplo painel de Graves e sua(s) arte(s) apresentado no filme tende a ser mais sedutor
para quem já o conhece e quer descobri-lo mais profundamente; não se revela muito como uma introdução a seu universo. Talvez o que o público sinta falta é de
mais imagens raras dele no palco, considerando sua história musical ser muito
longa, com parcerias incríveis – o show de 73 destacado no filme já é bastante conhecido dos entusiastas do gênero. Mas isso não chega a comprometer ou diminuir a importância deste belo documentário. Não deixem de ver.
MILFORD GRAVES FULL MANTIS (2018)
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Dir.: Jake Meginsky / Codir.: Neil Young
91 min.
Sessões
*15/06 – Cinemateca, às 16h (grátis)
*18/06 – Cinesesc, às 17h (R$ 3,50 a R$ 12)
*23/06 – Spcine Olido, às 18h (grátis)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)