LANÇAMENTOS Apanhado de novidades da free music. Diferentes possibilidades sonoras, artistas de vários cantos.
Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Pet Variations ****
Atomic
Odin
O quinteto escandinavo Atomic, que inicia uma turnê sul-americana em
breve, mostra neste seu mais recente registro que segue fazendo música de
elevado nível, mesmo quando muda radicalmente de foco. O Atomic, que está na
ativa há quase 20 anos e conta com uma discografia de aproximadamente uma dúzia
de títulos, sempre centrou sua obra em temas próprios – uma rara exceção foi a
releitura de “Pyramid Song” (Radiohead), registrada no início da carreira. Este
novo álbum subverte tal esquema ao apresentar oito versões/releituras partindo
de um amplo espectro sonoro. A começar pela faixa “Pet Variations/Pet Sounds”,
que inicia o álbum com um tema do grupo que se embrenha por entre o clássico dos "Beach
Boys", abrindo as vias a uma sequência de releituras que passam por Steve
Lacy, Edgar Varèse, Carla Bley, Olivier Messiaen, Jimmy Giuffre, Jan Garbarek e
Alexander von Schilippenbach. Se o resultado é um legítimo registro do Atomic,
temos a oportunidade de ver o quinteto em outro tipo de desafio artístico,
mostrando ampla versatilidade e possibilidades sonoras ilimitadas. "We didn't think about genre when we made the choices. We
just brought in music that we felt would fit the group's sound", diz no release o
pianista Håvard Wiik, fundador do grupo ao lado de Ingebrigt Haker Flaten
(baixo), Fredrik Ljungkvist (saxes) e
Magnus Broo (trompete). Para quem viu o show deles no país em 2014, a novidade
é Hans Hulbaekmo na bateria, no lugar de Paal Nilssen-Love. O Atomic não se caracteriza como um grupo de free
impo puro, elementos jazzísticos costumam estar presentes em sua sonoridade e
aqui não é diferente – olhe como se desenvlve a bela versão de "Art",
de Lacy, com marcante solo de piano. Não se sabe quantos temas do álbum estarão
presentes nas apresentações que o quinteto fará no país em maio, mas "Pet
Variations" se revela, sem dúvida, um bom aperitivo para o que veremos.
Nadir ***(*)
Colin Webster/ Mark Holub
Raw Tonk
O duo formado pelo saxofonista britânico Colin Webster e o baterista
norte-americano Mark Holub edita este novo registro mostrando que mantém a
energia elevada apresentada em álbuns anteriores. Nadir, captado no Hacknet
Road Studios (Londres) em julho de 2018, traz cinco improvisações de grande
potência, em que Webster mostra seu melhor ao sax barítono (toca também alto).
Este que é um formato consagrado do free jazz mostra que ainda pode render
trabalhos de muita vitalidade, mesmo que não revolucionários. "History is
Bunk" abre o disco, com Webster ao barítono, com pegada robusta, com a
bateria como que tateando as trilhas abertas pelo sopro, processo que atinge
seu pico lá pelos quatro minutos, quando adentramos longa passagem de quase
silêncio, com a música reencorpando apenas em seus minutos finais. O barítono
retorna firme em "Trashcan Jack", com Webster nos preparando para o
melhor, apresentado no tema final, "Breathing Raisinjack", onde seu
trabalho improvisatório atinge os momentos mais estimulantes.
New Industries ****(*)
Marker
Audiographic Records
O quinteto Marker continua mantendo nossos ouvidos excitados neste seu terceiro título. New Industries é um álbum duplo, um em estúdio e um ao vivo, o que nos apreciar a potência do quinteto em ação em dois contextos. O grupo formado por Ken Vandermark (saxes, clarinete), Macie Stewart (violino e teclados), Phil Sudderberg (bateria) e Andrew Clinkman e Steve Marquette (guitarras) tem criado intensa e fresca música desde sua estreia, com "Wired for Sound" (2017). Apesar de ser um grupo e não um projeto dele, é difícil não ver a mão de Vandermark no que é apresentado; difícil não conectar Marker a outros tantos projetos que o saxofonista vem desenvolvendo nas últimas duas décadas... A formação inusual permite que novos campos sejam explorados, com cada guitarra atuando em um canal e Stewart se alternando entre violino e teclados, levando a sonoridade a saltar por entre possibilidades bastante variadas. A música do quinteto, se herdeira das linhagens free jazzísticas, busca não se ater a elas, trazendo expressões variadas da música criativa contemporânea para a mesa. Veja "Alphaville#2/Trance/Alphaville#1": as guitarras emergem em tonalidade rock, logo cortadas por um tema cantarolável do sopro, que rapidamente se desdobra em um solo livre que vai se misturando à crescente ruidagem das cordas; um pouco mais à frente, o sax assume roupagem jazzítica. Essas ondulações são conduzidas com coerência e precisão, gestando uma música de força muito particular. O álbum de estúdio é dedicado a Robert Bresson; o ao vivo, a Elza Soares (Vandermark é um grande admirador da música popular brasileira).
II III IIII ****
Vários
Independente
Este importante documento traz alguns dos nomes mais fortes da cena
paulista em ação. O projeto, idealizado pelo violonista Thiago Sallas e
dirigido por ele ao lado do guitarrista Luiz Galvão, reuniu 12 instrumentistas
em junho de 2018 no Estúdio C4 para a empreitada. A ideia preconcebida: por
meio de um sorteio, os músicos foram repartidos em 13 combos, variando entre
duos, trios e quartetos. E daí rolou a improvisação, livre, com apenas uma
regra: que as peças não fossem muito longas, oscilando em torno dos 5 minutos
(os temas acabaram ficando com tempos entre 1 e 7 minutos). As faixas não têm
nomes, sendo identificadas por um número e o sobrenome dos participantes.
"2", por exemplo, traz Amilcar Rodrigues (trompete) e Victor Vieira-Branco (vibrafone) em um duo bastante instigante, com o trompetista mostrando
grande imaginação expressiva. "11" reserva alguns dos melhores
momentos do encontro, com um quarteto formado por Flavio Lazzarin (bateria e eletrônicos), André Bordinhon
(guitarra), Tiago Marques (oboé) e Pedro Macedo (baixo acústico) apresentando
uma sonoridade por vezes sombria, com as cordas criando uma sensação de letargia,
entrecortada pelos uivos do oboé ou por ruidosidades que emanam da guitarra.
"7" tem um outro encontro bastante estimulante, com um trio formado
por Rodrigo Olivério (sopros), Rafael Cab (bateria) e Lazzarin, em breve (2m59) mas centrada improvisação, com picos explosivos
que se sobressaem. Cada músico
participou de três faixas (faltou citar as participações do violoncelista Luís
Felipe Lucena e do baixista Alex Dias), saindo da sessão uma ampla variedade de rumos improvisatórios, sendo que os instrumentistas reunidos atuam em
diferentes vertentes e não só na seara do free impro, a destacar o rock e o
instrumental popular e erudito brasileiro, o que acaba por levar essa música a vias diversas. "II III IIII" mostra que a jovem cena brasileira,
que tem tido atividades mais constantes e com mais artistas participantes
especialmente na última década, já tem maturidade para ampliar sua repercussão;
é hora de mais gente daqui poder tocar lá fora e mostrar que algo bem sólido na
música criativa tem acontecido por esses lados.
Tolerancia Picante ****(*)
Moe + Mette Rasmussen
Conrad Sound
Mette Rasmussen, saxofonista dinamarquesa, tem se revelado uma das
vozes mais intensas de sua geração. Além de seus trabalhos próprios, as
variadas parcerias que tem montado mostram que seus interesses sonoros são
amplos, mas sempre olhando o que há de mais inventivo. O último registro em que
aparece evidencia bem isso. Em "Tolerancia Picante", Rasmussen se une
ao trio norueguês MoE. Bebendo nas trilhas do noise, do punk e do impro, o MoE
foi formado há cerca de uma década e conta com Guro Skumsnes Moe (voz, baixo),
Joakim Heibo Johansen (bateria) e Havard Skaset (guitarra). Eles começaram a
trabalhar juntos cerca de um ano atrás, em maio de 2018, quando tocaram no
Jazzfest, em Trondheim (Noruega), e agora selam a parceria com este álbum,
captado em setembro passado. São 11 faixas em que Rasmussen adiciona potência e
fogo extras ao som já enérgico do trio, em um esquema que remete a celebrados
encontros como Zu + Mats Gustafsson. Há momentos em que as linas explosivas de
sax surgem de cara, como em "Crystal Dancer"; há músicas com ar mais
mais rock, como "City Boy", com a voz declamada de Moe ditando o
clima; entramos pelo caminho também de temas de contornos mais noise, como
"Violently Passive". Em meio a suas nuances, "Tolerancia
Picante" é um álbum de grande intensidade.
Open Form For Society ****(*)
Christian Lillinger
Plaist
O baterista alemão Christian Lillinger, ainda jovem com seus 35 anos, já conta com uma lista de projetos e álbuns publicados bastante extensa. Dentre suas recentes investidas, destacam-se o trio formado ao lado de Kaja Draksler e Peter Eldh (com quem lançou o brilhante "Punkt.Vrt.Plastik" no fim do ano passado) e o recém-editado Open Form For Society (ou OFFS). Este talvez seja seu trabalho mais ambicioso. Tendo em mente ideias filosóficas de Karl Popper (1902-1994), Lillinger criou esta obra para a qual convocou um noneto inusual que conta com três tecladistas, dois percussionistas, dois baixistas, um violoncelista e a bateria. O resultado traz uma música de grande abertura estética, com elementos palpáveis no erudito contemporâneo, no avant jazz e uma pitada de eletrônico em meio à liberdade improvisativa. A presença de seus parceiros de "Punkt.Vrt.Plastik" (Draksler e Eldh) nos dá algum norte (para quem apreciou aquele trabalho) e a eles se juntam outros nomes jovens da cena atual europeia, como o pianista austríaco Elias Stemeseder e a violoncelista britânica Lucy Railton, e alguns veteranos, como o vibrafonista alemão Christopher Dell. Com este interessante grupo, Open Form For Society oferece 13 temas (mais 5 improvisações-bônus chamadas de "Excerpts"). O trabalho inicia com a contemplativa "Piece For Up & Grand-Piano and Ringmodulator", executada pela instrumentação indicada no título, funcionando mesmo como uma abertura. Daí passamos a "Aorta", com outra vibração, onde piano, vibrafone e bateria assumem o centro sonoro inicial, com a contagiante e fraturada pulsação conduzida por Lillinger ditando o rumo da peça. O esquema se repete nas duas próximas peças, "Thur" e "Titan", alternando-se um tema mais meditativo e outro mais enérgico. Em "Sog", um sintetizador assume a frente, criando outro clima. "KfkA", que fecha o álbum, parece exalar certo clima irônico, com as teclas em ligeira repetitiva melodia, uma sonoridade circular entrecortada pelo sintetizador que amplia o bom estranhamento que nos toma em diferentes momentos do registro. Talvez este seja o projeto mais ambicioso e pessoal de Lillinger, que arma um complexo álbum onde, em meio a inevitáveis (dado o perfil dos envolvidos) camadas improvisativas, sentimos a mão do compositor, de alguém que planejou a obra.
Clockwise *****
Anna Webber
Pi Recordings
A saxofonista e flautista Anna Webber ampliou as explorações que vinha
fazendo nos últimos anos em álbuns como "Binary" e
"Simple". Lá, a víamos comandando um trio ao lado de Matt Mitchell
(piano). Aqui, ainda com Mitchell, adicionou outros nomes para formar um
septeto: Jeremy Viner (tenor e clarinete), Jacob Garchik (trombone), Christopher
Hoffman (violoncelo), Chris Tordini (baixo) e Ches Smith (bateria e vibrafone).
A música, que parte de composições de Webber para se abrir a possibilidades livres de improvisação coletiva, é envolvente e desafiadora, com linhas
melódicas oscilantes que levam o ouvinte por estranhos e sedutores caminhos – como
bem revela de cara "Kore II". Na sequência, "Idiom II": uma desconcertante
exploração harmônica envolvendo os sopros faz de seus primeiros dois minutos – e
seu encerramento – uma experiência inebriante. Piano e flauta abrem "King
od Denmark I/Loper" nos levando a outros campos sensoriais, até as coisas
se acalmarem com uma linha melódica desenvolvida por Mitchell, enquanto os
sopros marcam o pulso de desenvolvimento da peça, se desdobrando depois em
intensamente crescente solo de sax. Já a bela "Array" parece
apresentar mais elementos jazzísticos, trabalhados com a inventividade de
Webber, claro. O que a saxofonista consegue aqui é criar uma obra de grande
vitalidade criativa, em que aproveita o conjunto em suas potencialidades várias,
fazendo deste um disco de impacto certeiro, sem recorrer a arroubos ou brilhos
individuais. Provavelmente estará em listas de melhores do ano.
-------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como EntreLivros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)