GARIMPO Saxofonista que surgiu
para o mundo via Leo Records no começo dos anos 80, Anatoly Vapirov continua na
ativa...
Por Fabricio Vieira
O free jazz começou a florescer na então União Soviética na década de
1970. Músicos que vinham adentrando o universo jazzístico desde meados da
década anterior, como Vladimir Tarasov e Vyacheslav Ganelin – que formariam o
mítico e pioneiro GTCh ou Ganelin Trio –, estariam na base do desenvolvimento desta música
no país comunista. Na primeira onda do new jazz soviético estava também o
saxofonista Anatoly Vapirov. Como muitos de seus companheiros de geração,
Vapirov (nascido em 1947, em Berdiansk, Ucrânia) foi, primeiramente,
estudante de música clássica. No ano de 1971 se graduou como clarinetista no
Conservatório de Leningrado, onde seguiu seus estudos para, cinco anos depois,
receber o título de Mestre naquele que se tornaria seu instrumento principal, o
saxofone. No mesmo conservatório atuou como professor de jazz e música
clássica, entre 76 e 81. Paralelamente à vida acadêmica, Vapirov foi se envolvendo
com diferentes projetos musicais underground, num casamento cada vez mais
intenso com o avant-garde.
O saxofonista montou o “Vapirov Jazz Quartet” em 76,
período em que gravou seus dois primeiros trabalhos pelo selo oficial
soviético, o Melodia. Nessa primeira etapa, quando também passou a comandar sua big band, destaca-se “Mysteria”,
registrado em 1977 e editado em 1980. Nesse período, a música de Vapirov (ao
menos o pouco que chegou até nós) carregava elementos fusion, em meio a um sopro
que já mirava o universo free, como bem podemos ver em “Mysteria”. Outra
curiosidade desse álbum é a participação de um coro, que remete a certo
espiritualismo eslavo, algo marcante em certas obras futuras. Nessa etapa
inicial, seu primeiro grande parceiro seria o pianista Sergey Kuryokhin
(1954-1996). A seu lado, Vapirov registraria seus primeiros trabalhos que
chegariam ao Ocidente. “Sentence To Silence” e “Invocations”, que traziam os
dois músicos, foram publicados pelo selo Leo Records em 83 e 84, apresentando o
nome de Vapirov a um novo público. A parceria com o Leo Records viria em um
momento bastante particular em sua vida: em 1982, Vapirov foi preso – atenção ao
título de seu primeiro álbum editado pelo Leo: Sentence To Silence. O mundo
estava sob a sombra da guerra fria e palavras como “repressão” e “censura” estavam
no ar... Nas poucas entrevistas que encontramos de Vapirov, não fica claro o
motivo exato de sua prisão, mas no AllMusic fala-se na acusação de private
enterprise... A condenação foi de dois anos de encarceramento e, um tempo após
recuperar sua liberdade, ele decidiu, em 1987, que o melhor
a fazer era imigrar para a Bulgária, onde vive até hoje.
Vapirov, um ucraniano nascido cidadão soviético, se tornaria símbolo do
new jazz na Bulgária. Por lá criaria seu selo discográfico, o AVA Records, pelo
qual tem lançado desde os anos 90 a maior parte de sua produção. Também estaria envolvido na criação do “Varna Summer Internacional Jazz Festival”, sendo seu diretor
artístico desde 1992. Vapirov está na ativa até hoje, mais de quatro
décadas de história musical, e tem algumas dezenas de títulos em sua
discografia. Mas, se nunca parou de criar, seu nome nos parece ter ficado meio à sombra, com um destaque no ocidente abaixo do que deveria ter. O fato de registrar sua música
basicamente pelo seu selo independente, em edições limitadas e de distribuição
restrita (praticamente não há nada seu oferecido nem em Spotify, nem Amazon, Bandcamp ou
outros meios de divulgação global), sem dúvida prejudica a exposição dessa obra.
Lá nos anos 1980, Leo Feigin já o chamava de “lobo solitário” e essa parece ser
mesmo uma marca sua. Importante frisar que a música de Vapirov é esteticamente
bastante ampla. Compositor, arranjador, improvisador, Vapirov, de 71 anos,
explora elementos do universo jazzístico, do free impro, algo do folclore
eslavo, alcançando o erudito contemporâneo (destaque nesta seara ao tocante
“Slavonic Requiem”, de 2007). Com algumas dezenas de discos em seu currículo – apenas
o catálogo reunido no AVA conta com quase 50 títulos editados –, é difícil para
o ouvinte iniciante em sua música se guiar a princípio. E, em meio a muita
coisa de grande relevância artística, há algumas obras de menor interesse, que
podem dar uma impressão inicial errada de seu trabalho – dois exemplos desses
são “Long Road to Home” e “Sopraniada”, nos quais o músico parte de honestos
duos de sax e bateria, mas, sabe-se lá com qual intenção, adiciona em estúdio
duvidosos efeitos climáticos de teclados e arranjos de cordas que comprometem o
resultado final. Mas vamos nos atentar à parte valiosa de sua obra, que merece
atenção dos interessados na música livre e criativa. Destacamos alguns álbuns,
de diferentes épocas, que bem apresentam a obra de Anatoly Vapirov.
*5 álbuns para conhecer ANATOLY VAPIROV*
Invocations (1984)
Leo Records
Neste álbum, podemos apreciar três longas peças de Anatoly Vapirov, que
funcionam como movimentos que formam uma única composição, mesmo tendo sido
realizadas em tempos distintos: “Invocation of Spirit”, “Invocation of Fire” e
“Invocation of Water”. A primeira composição, que forma o lado A do vinil, foi
captada em outubro de 83; o lado B traz os outros dois registros, feitos antes,
no fim de 81. Ao lado de Vapirov estão Sergey Kuryokhin (piano preparado,
percussão), Vladimir Volkov (baixo) e Alexander Alexandrov (fagote). Há também
a participação da cantora Valentina Ponomareva em “Invocation of Spirit”, fundamental
para o resultado obtido por esse tema desconcertante, que leva o ouvinte a um
universo improvisatório de estranhas sensações. Gravação mais conhecida de
Vapirov, recebeu versão em CD pelo AVA anos depois, além de aparecer na
coletânea “Forgotten Ritual” (SoLyd Records).
Macbeth (1986)
Leo Records
Esta obra começou a ser escrita quando Anatoly Vapirov estava na
prisão. O disco apresenta uma extensa peça, de cerca de 40 minutos, repartida
metade em cada lado do vinil original (em versão em CD, aparece como peça
única). Aqui Vapirov utiliza uma agrupação bastante particular: ao lado de seu
sax tenor estão percussão (tímpano solo) e uma orquestra de câmara. A música
tem no sax seu elemento condutor e solista principal, com cordas e percussão
conduzindo as principais linhas. Por vezes dramática, por vezes soturna, a
música é inquietante em seu lirismo bastante singular – Vapirov está em grande
momento solista aqui. O álbum foi gravado em Leningrado, em 1985, ainda antes
de o músico partir para a Bulgária.
NESQ - New European Saxophone Quartet (1997)
AVA/Objet-a
Grupo ativo na década de 1990, alinhado à estética dos grandes
quartetos de saxofone (WSQ, Rova), o New European Saxophone Quartet reunia
Anatoly Vapirov (saxes soprano e tenor), o italiano Gianni Gebbia (sopranino,
alto, soprano) e os lituanos Petras Vysniauskas (alto, soprano) e Vitas Labutis
(barítono, alto e soprano). Explorando o amplo universo harmônico oferecido pela
grande variedade de saxofones envolvidos no projeto, indo dos extremos agudos do sopranino aos graves profundos do barítono, o NESQ infelizmente teve menos repercussão que muitos de seus
pares, apesar de trazer uma música de inquietantes explorações sonoras. Este
álbum foi captado ao vivo em agosto de 1997, no Jazz Festival Mulhouse (França) e traz seis temas, sendo uma boa síntese das propostas do grupo.
AV Quartet featuring Tomasz Stanko (2003)
AVA
Sob o nome Anatoly Vapirov Quartet, o saxofonista reuniu antigos
parceiros seus – Vladimir Volkov (baixo), Vladimir Tarasov (bateria) e Antony
Donchev (piano) – para este concerto realizado em maio de 2003 no Barbican
X-Bloc Festival, em Londres. A eles se juntou como convidado o trompetista
polonês Tomasz Stanko (1942-2018). Nos mais de 70 minutos de música
apresentados, temos a oportunidade de apreciar fino free jazz conduzido por instrumentistas
de ampla experiência e maturidade artística. Stanko se integra bem ao quarteto,
cujos integrantes tocavam juntos há tempos. Um grupo sólido que poderia ter passado por
qualquer grande festival de jazz/free.
No/Net (2015)
AVA
Este é mais um capítulo assinado pelo Vapirov Project, rubrica que
estampa ao menos quatro álbuns do músico. O registro foi captado ao vivo no
“Varna Summer Jazz Festival” de 2014 e traz apenas uma peça contínua, com cerca
de 52 minutos. Vapirov está armado de sax tenor e soprano, atuando junto a um
octeto, que conta com nomes como Vladimir Tarasov, o trompetista alemão
Matthias Schriefl e a cantora búlgara Yldiz Ibrahimova – com quem o saxofonista
gravou em duo “Hard Way To Freedom”, lá no começo dos anos 90. A composição de
Vapirov executada pelo grupo traz em seu desenvolvimento trechos de canções do
folclore armênio, estando aberta a improvisações mais ariscas, especialmente
dos sopros, em uma empolgante peça amparada em linhas jazzísticas contemporâneas.
Uma interessante amostra do trabalho de Vapirov em tempos recentes.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como EntreLivros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)