LANÇAMENTOS Em destaque, encontros
entre músicos brasileiros e estrangeiros, com propostas que têm trazido interessantes registros ao universo da free music. Ouça, divulgue, compre os discos.
Por Fabricio Vieira
Multiverse ****(*)
Yedo Gibson/ Gonçalo Almeida/ Vasco Furtado
Multikulti Project
O saxofonista paulistano Yedo Gibson está fora do país há uns 15 anos,
com temporadas em Londres, Holanda e agora Portugal. Tendo já tocado e gravado
com muitos músicos estrangeiros, se une aqui aos portugueses Gonçalo Almeida
(baixo) e Vasco Furtado (bateria) para uma intensa sessão de impro livre.
Gibson, um multi-instrumentista de grande inventividade, toca aqui apenas sax
soprano. Gravado no SMUP, Parede (Portugal), o álbum traz quatro intensas
faixas, a começar por “Chanty”, em que o baixo abre os trabalhos em densas
linhas extraídas com o arco, enquanto o sax vai surgindo ao fundo, crescendo,
como que convocando o público para a apresentação – em sopro contínuo e
circular, Gibson mostra sua apurada técnica, mantendo o processo em ebulição
por todos dez minutos da peça. Um intenso e inebriante início. “Quick Angles”,
na sequência, é mais direta, com o sólido dedilhado de Gonçalo atravessado
pelos solos do sax. “Slow Tachyon” mostra outras possibilidades do trio, soando
até melódica em seus minutos iniciais, como que nos preparando para a
contemplativa “Verdade ou Consequência”, que fecha o álbum em um tom bem
distinto de sua abertura, mostrando a versatilidade criativa do trio – que,
esperamos, não tenha sido apenas um encontro único entre amigos.
The Out Off Session ****
Alvin Curran/ Alípio C. Neto/ Schiaffini/ Armaroli
Dodicilune
Alípio C. Neto, saxofonista pernambucano, saiu do país há muitos anos,
parando primeiro em Portugal (onde lançou discos pelos selos locais Clean Feed
e Creative Sources) e depois se estabelecendo na Itália. Se o importante
trabalho de Alípio é pouco conhecido por aqui, na Europa tem um merecido espaço
maior. Este recente registro traz o saxofonista reunido a nomes de peso como o
compositor e pianista norte-americano Alvin Curran (um dos fundadores do
icônico Musica Elettronica Viva) e o trombonista italiano Giancarlo Schiaffini.
A eles se junta o vibrafonista Sergio Armaroli para apresentar 78 minutos de
música filmados em novembro de 2017, no Teatro Out Off (Milão) – este DVD faz
par com um CD (“The Biella Sessions”) editado pelo mesmo grupo em 2017. Combinando
elementos acústicos e eletrônicos, o grupo apresenta uma música que reflete as
diferentes bagagens dos artistas, do universo free jazzístico às variantes da
improvisação livre – ao quarteto central se juntam ainda Marcello Testa (baixo)
e Nicola Stranieri (bateria). O fato de ser um DVD é bastante positivo: a
apreciação da detalhística música ganha muito com a possibilidade de podermos
ver os instrumentistas em ação.
Cabeça de Cidade ***(*)
Julien Desprez/ Bernardo Pacheco/ Nassif/ Vieira-Branco
Fábrica de Sonhos
O guitarrista francês Julien Desprez esteve no Brasil em dezembro de
2018, onde passou por São Paulo, Salvador e outros locais. O músico, que tem
ganhado mais destaque nos últimos anos, com passagens em grandes grupos como a
Fire! Orchestra e a White Desert Orchestra, de Eve Risser, dividiu os palcos
com diferentes músicos brasileiros e deixou esta sessão registrada. Cabeça de
Cidade mostra Desprez ao lado dos brasileiros Bernardo Pacheco, Thiago Nassif e Victor
Vieira-Branco, em um curioso quarteto com três guitarras e um vibrafone. O
material apresentado reúne 11 breves faixas para serem ouvidas sequencialmente
(ou em qualquer ordem, mas juntas), compondo uma teia de ruídos controlados. O
título facilmente pode levar o ouvinte a pensar em uma trilha sonora para a
cidade, suas ruidosidades e vaivém incessante, mas é importante não cair na
tentação de resumir o trabalho a tal função imagética ou ilustrativa do
cotidiano urbano. O vibrafone se revela uma peça vital, conduzindo as linhas
atravessadas pelas guitarras, ora em sintonia, ora por vias contrastantes, em
um interessante jogo de traços sonoros que moldam um diálogo por vezes áspero,
mas sempre coerente. Chama atenção a brevidade do registro, de 18 minutos, pois
nossos sentidos poderiam continuar seguindo essas trilhas por muito mais tempo.
Psychogeography, An Improvisational Derive ****(*)
Otomo Yoshihide/ Marco Scarassatti/ Hartmann/ Gianfratti
Not Two Records
O mito japonês Otomo Yoshihide realizou sua primeira turnê
latino-americana em 2017 e tocou em diferentes contextos no Brasil, com
parcerias e locais variados. Um dos encontros com músicos acabou virando este
álbum. Ao lado de Yoshihide (guitarra, turntables), nomes experimentados do
país, a ver: Antonio Panda Gianfratti (percussão), Marco Scarassatti (viola de
choco, instrumentos “self-made”) e Paulo Hartmann (guitarra, gambelão,
efeitos). Seis temas saíram do encontro, gravado no Red Bull Studios, durante o
Improfest, em São Paulo. E aqui podemos ver improvisação coletiva de elevado
nível, com cordas e percussão estando na base dos temas apresentados, em um
universo que atravessa timbres inusitados, técnicas expandidas, rumos inusuais
onde as quatro vozes podem soar múltiplas, parecendo por vezes um grupo maior.
A primeira faixa mostra um tom de batalha colaborativa, onde todos atacam por
todos os lados, mas em prol de um resultado coletivo maior, elevando a
temperatura em pouco tempo (algo que veremos em destaque novamente na faixa de
encerramento). Já o segundo tema traz algum respiro, com os instrumentos sendo
tratados de forma mais detalhista, permitindo que o ouvinte aprecie nuances e
variações mais delicadas –características que reencontraremos no quarto tema.
Merece destaque o fato de o trabalho ser editado pelo fundamental selo polaco
Not Two Records, o que permitirá que mais gente mundo afora tenha acesso a essa
inventiva música.
New Brazilian Funk ****(*)
Paal Nilssen-Love/ Zenícola/ Bicolor/ Dinucci/ Gjerstad
PNL
Paal Nilssen-Love é hoje o músico estrangeiro da free music mais ligado
à cena brasileira. Vindo regularmente ao país nos últimos anos, o
percussionista norueguês tem se aproximado de artistas locais e tocado projetos
com eles. Este New Brazilian Funk reuniu Nilssen-Love, o também norueguês
saxofonista Frode Gjerstad e os brasileiros Kiko Dinucci (guitarra), Felipe
Zenícola (baixo elétrico) e Paulinho Bicolor (cuíca). Não sei se o nome do
grupo é uma brincadeira de Nilssen-Love e seus parceiros ou se ele é um
apreciador e quis homenagear o gênero carioca ou achou que “funk” melhor
representa certa brasilidade hoje do que falar em “samba” ou “bossa nova”, mas
sonoramente o que temos aqui é inventiva e ruidosa improvisação livre. Sim, há
o que críticos internacionais podem chamar de “brasilidade” em algumas
passagens – Eyal Hareuveni, do “Free Jazz Collective”, por exemplo, falou em
momentos de wild samba dances. Captado ao vivo no Roskilde Festival
(Dinamarca), em julho de 2018, New Brazilian Funk traz sete temas, que começam
com a furiosa “Biggles and the Gun-Runners”, com baixo e sax em alta ebulição
sem rodeios; a entrada da cuíca causa interessante estranhamento, que atinge
seu melhor lá pelos sete minutos, com Bicolor travando excitante duelo com Gjerstad.
Cá e lá, Nilssen-Love demonstra que tem ouvido (na verdade, sempre o fez)
bastante música brasileira, como fica bem marcado no início de “Five Dollars
and a Jugo f Rum”. Dinucci, que fez sua história em outras vias, tem se integrado
bem à cena free e Zenícola está especialmente inspirado, com seu baixo pulsante
dando corpo robusto ao conjunto. Há realmente algo de novo aqui e é bom saber
que o projeto segue – tocam em junho no Ljubljana Jazz Festival. (Ps: há
exemplares deste CD disponíveis no Big Papa Records, na Galeria Nova Barão/SP.)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como EntreLivros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)