Ivo Perelman: retorno às cordas







CRÍTICAs  O saxofonista Ivo Perelman deu início ao lançamento de uma nova série de álbuns, Strings, com a presença de cordas...
 







Por Fabricio Vieira 



Há duas décadas, mais precisamente em maio de 1998, o saxofonista Ivo Perelman entrava em estúdio para gravar pela primeira vez um disco acompanhado apenas por cordas. O trabalho era “The Alexander Suite” e a seu lado estava o “C.T. String Quartet” – vale lembrar que em 97 ele gravou um duo com o guitarrista Joe Morris, mas este é um bicho estranho em sua discografia, onde Perelman toca apenas violoncelo. Alguns anos após esse marco, Perelman passou a se centrar cada vez mais em parcerias com instrumentos de cordas, tendo o baixista Dominic Duval (1945-2016) como seu grande colaborador então. Em uma fase que vai de “Introspection” (2006) a “Soulstorm” (2010), gravou uma sequência de discos em que as cordas eram seu principal ponto de apoio e diálogo sonoro. No fim de 2018, Perelman adentrou um novo ciclo com cordas, bastante diferente do anterior, com outras parcerias e possibilidades expressivas. Chamada de Strings, essa série se iniciou em novembro de 2018, com “Strings 1 e 2”, e prossegue no mês de março, quando sairão “Strings 3 e 4”, sempre pelo selo Leo Records. Se depender do material que Perelman já tem gravado, esse novo ciclo de cordas vai longe...

O ponto de referência representado por Duval no ciclo anterior cabe agora ao violista Mat Maneri. Perelman começou a trabalhar com Maneri em 2013, quando gravaram “A Violent Dose of Anything”, sessão que virou premiada trilha sonora para o filme de mesmo nome. Desde então, gravaram importantes álbuns, como “Two Men Walking” e “Breaking Point”. Mas esse talvez seja o cume da parceria entre os dois: a unidade dos quatro álbuns da série “Strings” já prontos ganha força com o fato de Perelman e Maneri estarem em todos os discos, representando metade ou dois terços das vozes (no caso de “3”) responsáveis pelos novos títulos.

Sempre com o sax tenor de Perelman ao centro, os parceiros de cada um dos novos álbuns são:
*Strings 1: Mat Maneri (viola), Jason Hwang e Mark Feldman (violinos);
*Strings 2: Maneri (viola), Hank Roberts (violoncelo) e Ned Rothenberg (clarinete-baixo);
*Strings 3: Maneri (viola) e Nate Wooley (trompete);
*Strings 4: Maneri (viola), Wooley (trompete) e Matthew Shipp (piano).


Único álbum em que vemos apenas cordas e sax, Strings 1 também é o mais camerístico do conjunto. Aqui temos o que mais estaria próximo de um quarteto clássico: dois violinos, uma viola e o sax tenor no lugar do violoncelo (instrumento que Perelman começou a tocar na infância e que o acompanhou por um bom tempo). Essa é apenas a segunda vez que Perelman encontra dois violinos ao mesmo tempo, algo que aconteceu anteriormente em “The Passion According to G.H.” (2012), quando gravou com o Sirius Quartet. E os violinos conduzidos por Jason Hwang e Mark Feldman criam uma atmosfera única aqui. Marca central dos quartetos clássicos, a utilização de dois violinos oferece possibilidades harmônicas muito particulares que amplificam a beleza do registro. Hwang é um antigo conhecido de Perelman, sendo que ele estava na sessão de “The Alexander Suite”, duas décadas atrás, e deve ter sido muito estimulante esse reencontro. (Interessante destacar a fase incrível dos músicos presentes: Hwang, Maneri e Feldman foram eleitos “melhores do ano”, nesta sequência, na categoria violino/viola pelo International Critics Pool 2018 da revista on-line El Intruso.) Captado no Parkwest Studios em março de 2018, Strings 1 traz nove temas (todas as faixas da série não têm nomes, apenas numeração sequencial). Logo na faixa 1, o quarteto já avisa a que veio: após nos conduzir por vias envolventes, com os instrumentos tateando rumos a serem explorados, mergulhamos em crescentemente explosivas passagens, que marcam os últimos quatro minutos, iniciados pelo trio de cordas, seguido logo pela reentrada do sax, em um diálogo arrepiante; e as fórmulas não se repetem, com um fresco caminho se abrindo a cada tema. Na segunda peça, pro exemplo, o estimulante embate contrapontístico nos conduz a um surpreendente encerramento de fatura melódica. Já na faixa 4, o desenvolvimento das ideias acontece de forma mais relaxada, sem pressa, havendo um espaço mais amplo para as cordas trabalharem, com os 15 minutos do tema surgindo com vagar aos nossos ouvidos. E após a breve “5”, chegamos à marcante e mais extensa “6”, com seus 17 minutos e um final dramático.   

Passada essa viva experiência, podemos trocar o disco e adentrar Strings 2, que nos reserva outras possibilidades sonoras. Entram em cena, ao lado de Perelman e Maneri, Hank Roberts (violoncelo) e Ned Rothenberg (clarinete-baixo). Os dois novos parceiros atuam de forma alternada entre as faixas. Novamente são nove temas, registrados em agosto do ano passado. Maneri e Perelman estão em todas as faixas, mas Rothenberg em apenas quatro, e Roberts, em sete.  O quarteto mesmo está em ação somente nos temas 1 e 9. Essas alterações de formações dão o tom do álbum, sem atrapalhar sua unidade expressiva. O profundo som de Rothenberg já é sentido logo de entrada, voltando em intromissões profundas, como no momento iniciado lá pelos 2 minutos da faixa de abertura. A boa impressão causada pelo quarteto provavelmente tente alguns ouvintes a pular direto para a faixa 9, a outra na qual os quatro instrumentistas estão em ação. A mais longa do disco, com seus 15 minutos, também é o cume do álbum, com uma dupla de cordas e uma dupla de sopros criando possibilidades variadas e alternâncias de rumos que nos conduzem por um labirinto camerístico que nos enreda de forma por vezes sufocante, por vezes deixando nossos sentidos em alerta, como no solo de sax aos 12 minutos, que atravessa as cordas em pizzicato e só baixa o volume quando o clarinete-baixo retorna, para o tom subir de novo no encerramento. O quarteto soa bastante integrado e consistente, o que deixa a questão de o porquê terem optado por variar as formações e não gravar o álbum todo com as quatro vozes atuando. Esta sessão também é mais breve que a anterior, são 50 contra 74 minutos.

Se a adição de um novo instrumento de sopro ocorre de forma mais pontual em “2”, em Strings 3 e 4 vemos uma participação mais ativa, representada pela voz de Nate Wooley. O trompetista nascido no Oregon, um dos grandes de sua geração, adiciona outra temperatura a esta nova série com cordas. Wooley já tinha gravado com Perelman e gestado o sensacional “Philosopher’s Stone” e, como lá, ele mostra um incrível dom de trazer o saxofonista de volta às vias mais ariscas de sua música. Mais do que os outros registros da série, Strings 3 e 4 estão bastante emaranhados, são como “partes 1 e 2” de uma obra. A diferença capital de um disco para o outro é a entrada de Matthew Shipp em “4”, que, é claro, altera e amplia as possibilidades discursivas e expressivas do grupo. Mas os dois volumes funcionam meio que como uma sequência, como um concerto em duas partes, com onze faixas em “3” e outras nove em “4”.
Strings 3 começa de forma até relaxada, mas não deixa de ganhar intensidade em seu percurso, com Perelman e Wooley duelando ora de forma provocativa, ora unindo forças, em um jogo improvisatório em que os instrumentistas parecem ser antigos parceiros, com a música nascendo e fluindo de forma íntima e precisa. Essa comunhão parece crescer com as faixas, criando a expectativa de que estamos cada vez mais próximos do pico inventivo da sessão. Quando vem a peça "3", nossos ouvidos já estão tomados por aquele universo e é empolgante vê-la se intensificar em processo que ganha cada vez mais corpo a partir de seu meio, também com uma presença mais marcante de Maneri, com o trio mostrando um pouco de seu melhor e alcançando picos de muita vivacidade – momentos sublimes que faíscam aqui vão ter todo seu esplendor na faixa 9, sendo essa provavelmente a mais impactante do conjunto. 

A adição de Matthew Shipp em Strings 4 nos leva a outros campos. O clima da obra com a entrada do piano é bastante diverso, transformando o alcance da música apresentada apesar de esses dois discos estarem intimamente conectados. E isso já fica claro logo no tema inicial, com Shipp construindo camadas etéreas como só ele sabe, por entre as quais sax e trompete adentram, em alguns dos momentos mais líricos registrados na série, culminando com um belíssimo solo de Wooley. O segundo tema é diferente, com uma exploração mais abstrata e centrada, que se revela, com seus breves 2 minutos, quase um intermezzo para a melancólica “faixa 3”, marcada por dolorido solo de sax. Trompete e sax chegam com tudo no tema seguinte, em arrepiante ebulição improvisativa – a temperatura se mantém elevada pelos 7 minutos da peça, algo que também pode ser sentido no tema sete. Na última peça, Shipp toca magicamente, centrando nossa atenção enquanto sopros e viola vêm e vão em entradas e saídas rápidas, esquema que vai se desenvolvendo até uma pausa do piano lá pelos 6 minutos, com os sopros tateando os espaços com vagar até serem sacudidos pela entrada percussiva do teclado, em meio a um Wooley soando abrasivo, de ruidosidades anasaladas, nos conduzindo ao desenlace final, com o sax uivando antes de o piano arrematar com uma delicada sequência – arrebatador desfecho.
 





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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; e foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)