CRÍTICAs Em novo trabalho,
programado para ser lançado em fevereiro, Wadada Leo Smith nos oferece mais um intenso
capítulo de sua genial obra...
Por Fabricio Vieira
Wadada Leo Smith completou cinco décadas de criação musical. Foi ainda
no fim dos anos 1960, sob a bandeira da AACM, que o então apenas Leo Smith
começou sua trajetória, participando de seus primeiros registros ao lado dos
parceiros Anthony Braxton, Muhal Richard Abrams e Maurice McIntyre. Pouco
depois, em dezembro de 1971, grava seu primeiro álbum solo, "Creative
Music - 1", dando início a um percurso de obras vitais da free music, que
nunca perdeu seu ímpeto, mais ainda: algumas de suas criações de maior impacto
inventivo datam do século XXI. Essa trajetória criativa mantém-se em ebulição,
nos levando a seu mais recente projeto, Rosa Parks: Pure Love. An Oratorio of
Seven Songs, que será lançado oficialmente no dia 15 de fevereiro pela TUM
Records. O FreeForm, FreeJazz já deu uma escutada no material inédito e
contamos um pouco do que essa nova grande obra de Simth reserva aos ouvintes...
O compositor e trompetista Wadada Leo Smith, 77 anos, tem trabalhado em seu novo
projeto há algum tempo, intensamente desde que concluiu seus dois discos
anteriores, "Solo: Reflections and Meditations on Monk" e
"Najwa", ambos editados em 2017, mas registrados em 2014/15. Dedicado
à memória de Rosa Parks (1913-2005), que se tornou símbolo da resistência e da
luta pelos direitos civis com seu gesto de recusa, de não levantar do lugar em
que estava sentada em um ônibus para cedê-lo a um homem branco, em Montgomery
(Alabama), em 1955, ato que a levou a ser presa e abriu um período de protestos
antirracistas iniciados com um boicote de 381 dias às empresas de ônibus. O novo trabalho de
Smith tem uma ligação direta com sua obra-prima "Ten Freedom Summers"
(2012). Naquele elogiado álbum, em que Smith prestava tributo e rememorava momentos
marcantes das lutas pelos direitos civis e dos afro-americanos, havia uma peça
dedicada a ela, "Rosa Parks and the Montgomery Bus Boycott, 381
days", que fazia alusão aos desdobramentos do gesto de Parks. Agora são 70
minutos de música, uma longa peça centrada em sete "Songs"
entremeadas por oito temas (destaque para as quatro "Vision Dance"), totalizando
15 partes sequenciais que formam uma obra única que Smith chamou de oratório,
provável referência ao gênero musical que marcou o período barroco, espécie de
ópera sacra que teve entre seus principais cultivadores Johann Sebastian Bach e
Georg Friedrich Haendel.
Rosa Parks |
"The oratorio is composed for the iconic Rosa Parks, a person of
exceptional courage and wisdom, who made the right move of resistance at the
right time. Her action generated a movement worldwide for liberty and justice
for human beings. Rosa Parks: Pure Love employs the song form as composition to
convey a philosophical and spiritual narrative about my vision of Rosa Parks,"
diz Smith, em texto divulgado pela gravadora. "The oratorio is concerned
with ideas and my meditation on the Civil Rights movement, and through
lighting, photographs and video images, reconnecting history in the
present."
Smith começou a compor a obra em agosto de 2016 e uma primeira versão
do trabalho foi apresentada em setembro daquele ano no Festival of New Trumpet
Music (NY). Depois disso, o músico voltou à obra para atingir seu formato final,
que teve sua estreia oficial em outubro de 2018, durante o Angel City Jazz
Festival. A gravação do disco foi realizada em três sessões, nos dias 25 de
setembro de 2016 e 24/25 de maio de 2017. Rosa Parks: Pure Love extrapola, até mais
do que Ten Freedom Summers, as delimitações do universo free jazzístico e não
só pelo seu vital processo composicional, mas também pelas opções de
agrupamento e uso da instrumentação – aqui, o melhor seria falar mesmo em
música contemporânea, apenas. Há quatro núcleos sonoros que sustentam a obra,
formados por vozes, cordas, trompetes e bateria/eletrônicos. As vozes são uma
novidade importante nesta composição; são três, representadas pelas cantoras
Karen Parks, Min Xiao-Fen e Carmina Escobar. Depois vem o RedKoral Quartet,
formado por Shalini Vijayan e Mona Thian (violinos), Andrew McIntosh (viola) e
Ashley Walters (violoncelo). Daí é a vez do Blue Trumpet Quartet, composto por
Ted Daniel, Hugh Ragin, Graham Haynes e o próprio Wadada. E complementam o
grupo Pheeroan akLaff (percussão) e Hardedge (eletrônicos). É com esta
inusitada formação que Smith desenvolve sua nova composição, trabalhando cada
parte com uma organização distinta. As letras cantadas foram escritas por ele,
sendo que em uma delas (Song 5: No Fear) há também palavras de Rosa Parks.
O álbum começa com uma introdução, "Prelude: Journey", apenas
instrumental, aclimatando os ouvintes ao universo que será apresentado, com trompetes
e percussão abrindo os caminhos, seguidos pela entrada das cordas e o mergulho
na segunda parte, "Vision Dance 1: Resistance and Unity". O quarteto
de cordas irá concentrar o desenvolvimento sonoro da próxima faixa, "Rosa
Parks: Mercy, Music for Double Quartet", marcada por tom liricamente
sombrio. Apenas após esses três movimentos chegamos a "Song 1: The Montgomery Bus Boycott – 381 days of
fire", em que as vozes vão entrar em cena. Remetendo a um lied, formato musical ligado ao romantismo do século XIX, temos aqui apenas a voz de Min Xiao-Fen
(ela também toca pipa) acompanhada pelas cordas – tocante e meditativo. A peça
é seguida por "Song 2: The First Light, Gold", no mesmo clima, mas
agora cantada por Carmina Escobar. As
sete "Songs" mantêm tal estrutura e vão se revezando (e revezando as
cantoras) entre os outros movimentos, entremeando faixas com voz e
instrumentais – "Song 3: Change It!" é a mais forte, contando com a
adição da bateria às cordas e à intensa voz de Karen Parks. As letras, se falam
de luta e resistência, destacam a importância da tolerância, do não
revanchismo, de sentir o coração, Pure Love, como diz o título: "My life
is action with love/ and with peace my will is strong/ No fear/ There is only
truth/ If you feel the light you are right", canta Xiao-Fen em "Song
4: The Truth".
É por este percurso proporcionado pelas 15 faixas que se revela o oratório em sua plenitude, com as ondulações sonoras, das diferentes combinações de vozes, instrumentos e palavras, estruturando essa bela e profunda composição. Como solista, Smith está discreto no álbum; em "Vision Dance 4: A Blue Casa", temos a melhor oportunidade de ouvi-lo, em duo com Haynes, acompanhados pelo RedKoral Quartet. Algumas das peças contam ainda com a intromissão de trechos de obras de Anthony Braxton ("Composition 8D"), Leroy Jenkins, Steve McCall e do próprio Smith (em reprodução, não executados pelos músicos), todos remetendo aos primeiros tempos da trajetória artística de Wadada, citações resgatadas de quatro, cinco décadas atrás. E como em Ten Freedom Summers, nas apresentações ao vivo há também o trabalho visual, com projeções de vídeos e imagens em telões que, como vimos durante os concertos de Wadada no país em 2012, fazem muita diferença, criando uma outra relação entre ouvinte e obra.
É por este percurso proporcionado pelas 15 faixas que se revela o oratório em sua plenitude, com as ondulações sonoras, das diferentes combinações de vozes, instrumentos e palavras, estruturando essa bela e profunda composição. Como solista, Smith está discreto no álbum; em "Vision Dance 4: A Blue Casa", temos a melhor oportunidade de ouvi-lo, em duo com Haynes, acompanhados pelo RedKoral Quartet. Algumas das peças contam ainda com a intromissão de trechos de obras de Anthony Braxton ("Composition 8D"), Leroy Jenkins, Steve McCall e do próprio Smith (em reprodução, não executados pelos músicos), todos remetendo aos primeiros tempos da trajetória artística de Wadada, citações resgatadas de quatro, cinco décadas atrás. E como em Ten Freedom Summers, nas apresentações ao vivo há também o trabalho visual, com projeções de vídeos e imagens em telões que, como vimos durante os concertos de Wadada no país em 2012, fazem muita diferença, criando uma outra relação entre ouvinte e obra.
Rosa Parks: Pure Love ****(*)
Wadada Leo Smith
TUM Records
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; e foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; e foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)