CRÍTICAs O grande trompetista
Peter Evans lançou uma sequência de intensos novos discos. Em meio a parcerias
antigas e inéditas, muita música boa para ser descoberta...
Por Fabricio Vieira
2018 parecia que não seria um dos anos mais prolíficos para o
trompetista norte-americano Peter Evans. Nome central da free music contemporânea, Evans mantém
vários projetos paralelos e costuma encerrar cada ano com vários títulos
editados – em 2014, por exemplo, seu nome apareceu em mais de uma dúzia de álbuns.
Não à toa, apesar de ser um músico que estreou apenas neste século XXI, sua
discografia, entre projetos próprios e colaborações, já bate nos cem títulos...
O que ameaçava ser um ano atípico ganhou nova cara nesses últimos meses: o
músico tinha muita coisa pronta para soltar e nos presenteou com um punhado de
excitantes discos, a maioria deles (4 de
6 que trazemos aqui) pelo seu selo More is More.
Apesar das variadas propostas apresentadas nesse material novo, é interessante que as formações sejam bem centradas, passando por solo, duos e trio. Na área solística, onde Evans é mestre e já editou preciosidades como "Lifeblood", sai agora The Veil. O disco traz gravações feitas em diferentes visitas ao estúdio, tendo sido captado e mixado entre maio e julho deste ano. Se revezando entre trompete e piccolo, Evans apresenta 13 temas, dos quais apenas "Inner Urge" (Joe Henderson) não é seu. Na única oportunidade em que esteve no Brasil, em julho de 2016, Evans mostrou exatamente sua faceta solista. E o que de melhor exibiu lá, está aqui. Toda sua inventividade improvisativa, de criador de espaços e ruidosidades únicas, se torna ainda mais relevante neste tipo de obra. Em The Veil, há momentos de brilho maior, como "For Eric Fromm", em que Evans enlouquece nossos sentidos jogando notas entrecortadas no espaço, em um processo de reverberação e autoalimentação, em que antes que consigamos digerir uma mensagem somos soterrados por outras. Incrível.
O principal veículo de Evans nesse lote de lançamentos é o duo. São
quatro parcerias que ora chegam aos ouvintes, de perspectivas e propostas
bastante variadas. O primeiro desses títulos a aparecer, Syllogistic
Moments, traz o trompetista ao lado do veterano
baixista britânico Barry Guy. Este é um verdadeiro encontro de gerações: Guy,
71 anos, começou a tocar ainda em meados da década de 1960, enquanto Evans é um
músico dos anos 2000...
A reunião entre os dois instrumentistas se deu em um
concerto na Suíça em novembro de 2016, tendo rendido cinco intensas faixas (Guy
diz nas liner notes que terminou o show exausto), nas quais os músicos dialogam
como se fossem íntimos parceiros. O resultado é bastante sólido e com momentos
de irresistível vitalidade, a destacar a explosiva "Red Green". Outro
título em duo traz uma inusitada colaboração: Evans divide o trabalho com o
trompista David Byrd-Marrow, que vem do campo erudito. A princípio, pode-se
pensar em diferenças estéticas e expressivas agindo, mas não podemos esquecer
que Evans também tem formação erudita. Então, este Eye of the Mind trata-se mais de um encontro de
curioso diálogo improvisativo, com dois metais distintos e dois músicos
tentando (re)estabelecer uma linha comunicativa (os dois trabalharam juntos em
outros contextos) . Esse processo resultou em quatro extensos
temas, captados em outubro passado no Stone. Um registro intrigante e um dos
raros duos de trompete/trompa.
Seguindo no esquema duo, Evans lança outra parceria de sonoridade
inusitada,Q.
Gravado ao lado do filipino-americano Levy Lorenzo, temos aqui o
trompete em explorações ao lado de eletrônicos e percussão. Lorenzo, performer
que trabalha também com instalações sonoras, traz um outro universo de
possibilidades à música de Evans. Entre marimbas e teclados de sonoridades
arcaicas, saltamos de resultados bastante distintos, de "The Stone
Cauldron" a "Pulsar", deixando pelo caminho uma impressão de que
estamos diante de um álbum realmente diferente. O último duo dentre esses
lançamentos nos conduz a um diálogo ao qual já estamos mais acostumados: Peter
Evans e Weasel Walter. O baterista da cultuada banda de jazzcore The Flying
Luttenbachers já dividiu palcos e estúdios em diferentes oportunidades com o
trompetista na última década. Este novo título, Poisonous, traz registro feito
em janeiro de 2018. Com sete faixas, apresenta temas não muito extensos, entre
4 e 9 minutos, mostrando uma gama de possibilidades expressivas bastante ampla,
extrapolando o que podemos esperar inicialmente de um duo de trompete e
percussão. Em "Verpa Bohemica", por exemplo, os sons ligeiramente
cortam o espaço de forma dilacerante, nos primeiros minutos da peça, como se
estivéssemos sendo atacados por todos os lados ou sob uma chuva de granizos. Efeito
tão desconfortável quanto pode ser sentido em "Sulfur Tuft", em
contraste com "Bisporigera", onde o trompete sola de forma mais
direta sobre as camadas percussivas criadas por Walter.
Esse grupo de lançamentos fecha com o aguardado segundo título do
genial trio "Pulverize the Sound". Sob o título Sequel, o trio
formado por Evans ao lado de Tim Dahl (baixo) e Mike Pride (percussão) traz
seis novos temas, frutos de sessões realizadas na primavera de 2018 no Seizures
Palace, no Brooklyn (NY). Quem sentiu os ouvidos chacoalhados em 2015 com o
disco de estreia do Pulverize the Sound (a melhor surpresa daquele ano para o FreeForm, FreeJazz),
não irá se decepcionar aqui. O trio mostra toda sua amplitude artística indo de
um tema que apresenta até certas linhas melódicas, em uma trilha free jazzística
mais palpável, como "Athena", a explorações de viés rocker mais
marcado, como "Appropriating Suffering" e "Pulsar", com o
baixo elétrico em efeitos e distorções que elevam a energia a outro nível
– sempre com o trompete em primeiro
plano, funcionando como instrumento solista e voz condutora. Há ainda algo como
"Convent of the Sacred Beast", que destila certo ar irônico em sua
primeira parte, com a percussão sutil e repetitiva como que ecoando um toque
ritualísitco, que é atacado por baixo e sopro pontualmente. A música do Pulverize
the Sound não é apenas fruto de improvisação livre, sendo os temas criados e
desenvolvidos em diferentes escalas, parecendo alguns deles peças pensadas em
cada um de seus passos, mas sempre de forma criativa e aberta. Sem dúvida, um
dos grandes grupos de nosso tempo.
The Veil ****(*)
Peter Evans
More is More
Syllogistic Moments ****(*)
Peter Evans/ Barry Guy
Maya Recordings
Eye of the Mind ****
Peter Evans/ David Byrd-Marrow
More is More
Q ****
Peter Evans/ Levy Lorenzo
More is More
Poisonous ****(*)
Peter Evans/ Weasel Walter
ugEXPLODE
Sequel *****
Pulverize the Sound
More is More
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; e foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; e foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)