CRÍTICAs O saxofonista
brasileiro radicado em Nova York Ivo Perelman edita, pelo Leo Records, dois
interessantes inéditos duos ao lado de clarinete baixo...
Por Fabricio Vieira
Quem acompanha a trajetória do saxofonista Ivo Perelman sabe que, em
seus mais de 80 álbuns editados, ele praticamente nunca tocou ao lado de outro
instrumento de sopro. Sejam madeiras ou metais, as parcerias com esse tipo de
instrumentista se restringem a dois momentos pontuais: houve a participação do
francês Louis Sclavis (bass clarinet) em “The Ventriloquist” (2002) e do
trompetista Nate Wooley em “Philosopher’s Stone” (2017). Para compensar essa
lacuna, Perelman preparou o lançamento simultâneo de dois novos discos, Kindred Spirits e Spiritual Prayers, ambos pelo Leo Records, como tem sido
costume nos últimos anos.
São dois duos realizados ao lado dos clarinetistas Jason Stein e Rudi
Mahall. Quando começou a trabalhar no projeto, Perelman tinha em mente
encontrar músicos dedicados exclusivamente ao clarinete baixo (ou clarone, como
alguns preferem) para dividir algumas sessões de estúdio. Chegou assim às duas
parcerias de sax tenor/clarinete baixo. Os dois registros são bastante frescos,
tendo sido feitos na sequência, em junho de 2018 no Parkwest Studios, em Nova
York. As gravações são estruturalmente similares, com improvisações variando
entre 2 e 12 minutos, sem títulos (todas contam apenas com uma sequência
numérica que as delimita, 1, 2, 3 etc.), nas quais os duos exibem música de intensa
e ampla inventividade.
O alemão Rudi Mahall, da mesma geração de Perelman, estando na ativa
desde os anos 90 e contando com mais de 100 títulos em sua discografia, foi com
quem o saxofonista deixou um registro mais amplo, em CD duplo titulado “Kindred
Spirits”. Os que foram à apresentação da Globe Unity Orchestra, em agosto de
2017, no Jazz na Fábrica, tiveram a oportunidade de ver Mahall ao vivo e
testemunhar seu talento como improvisador. Mahall viajou direto da Alemanha
para se juntar a Perelman no Brooklin nova-iorquino, em encontro do qual agora
podemos apreciar cerca de 1h40 de música, espalhada por 12 temas. Esta foi a
primeira e única vez que os dois instrumentistas tocaram juntos. E este é um
dos milagres da free improvisation: criar peças de alto valor estético sem que
os envolvidos tenham tido contatos anteriores ou dividido ideias artísticas
prévias. “Kindred Spirits” abre de forma mais contida, como que com os músicos
tateando para encontrar o ponto de equilíbrio e conectividade com o parceiro – soa,
de fato, como se a peça “1” fosse o primeiro encontro entre os dois (talvez
seja, talvez não...) –, sendo este o clima dos primeiros cinco minutos do
registro. O tema “2” abre também em atmosfera mais serena, mas os
instrumentistas já exalam outra sintonia, uma cumplicidade mais latente, como
se estivéssemos em meio a um concerto, sentindo sua evolução com o passar do
tempo. Certa síntese dessa parceria pode ser vista no tema “4”, o maior
registrado, com seus 12m51, em que os músicos têm maior espaço para
desenvolver ideias, quer sejam consonantes, quer sejam conflitantes; adentramos
até, nos últimos dois minutos da peça, um campo quase melódico, com um
fragmento temático alcançando os ouvidos.
O encontro com Jason Stein, apesar de ter a mesma formação (sax tenor/clarinete
baixo) e ter ocorrido com poucos dias de diferença, soa bastante distinto. O
trabalho é mais concentrado e se estende por apenas 1 CD, em menos de uma hora
de música. O título (“Spiritual Prayers”), apesar de dialogar com a outra
gravação, é simbolicamente mais expressivo. Perelman conta que houve certa
conexão espiritual entre os dois, ambos de origem judaica, soando a música
criada na sessão como uma espécie de diálogo religioso, uma oração quase, um
encontro de vozes com ecos ancestrais. A atmosfera gerada pelas oito peças
registradas é bastante particular e talvez valha à pena voltar a “En Adir” – disco
de duas décadas atrás no qual Perelmam revisita temas tradicionais judaicos –
para ver até onde uma possível conexão free-judaica pode ser estabelecida, lá
mais explícita, aqui mais íntima. Um disco para ser ouvido no tempo e clima
certos.
Para a sonoridade de Perelman, esses encontros com outros sopros trouxeram palpáveis
possibilidades novas; vemos o sax-tenorista percorrer vias que trazem surpresas
mesmo para quem acompanha sua obra, o que mostra que grandes artistas sempre
podem desvelar a seu público algo surpreendente, no sentido de ainda não
exibido anteriormente. E a abertura de novos rumos, a expectativa de se deparar
com o expressivamente inesperado, é um dos pontos que movem o interesse,
renovado continuamente, pelo universo da improvisação livre.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)