CRÍTICAs O grupo comandado
por Fred Frith protagonizou três intensas noites no Sesc Jazz. Um pouco do que vimos por
lá...
Por Fabricio Vieira
O Sesc Jazz teve por esses dias suas noites mais experimentais, com as
apresentações do Fred Frith Trio – quinta e sexta, no Teatro do Sesc Pompeia;
sábado, no Sesc Araraquara. O guitarrista britânico Fred Frith tem nesse trio
um de seus projetos mais novos, tendo sido iniciado em 2012 e estreado em disco
com “Another Day in Fucking Paradise” (2016). O grupo desembarcou no Brasil no
momento em que lança seu segundo álbum, “Closer to the Ground” (quem esteve nas
apresentações do Sesc Pompeia pôde comprar o novo CD e ainda levar um autógrafo
de Frith para casa). Junto a seus dois parceiros, Jason Hoopes (baixo) e o
norte-americano Jordan Glenn (bateria), o guitarrista britânico trouxe como
convidadas a trompetista portuguesa Susana Santos Silva e a artista visual
alemã Heike Liss, formando um verdadeiro quinteto global. Interessante tratar-se
também de um encontro de gerações: Frith tem cerca de cinco décadas de música e
69 anos de idade; Hoopes, Glenn e Susana são artistas que iniciaram suas
trajetórias apenas nos anos 2000. E o que resulta desse encontro é um grupo
coeso e ajustado, pronto para apresentar uma música improvisada de elevada
temperatura e sedutora criatividade.
Fotos: Julay Baretti/Sesc
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O Teatro do Sesc Pompeia foi armado utilizando-se apenas um de seus
lados, como aconteceu em 2014, quando Wadada Leo Smith e HPrizm comandaram um grande
show em que também foram exploradas projeções e imagens em um telão ao fundo. E
o impacto do trabalho visual de Heike Liss, a forma como dialoga com a música
do quarteto, mostrou ter sido muito acertada a disposição do espaço escolhida.
Liss trabalhou com a manipulação de imagens arquivadas (a maioria captada por
ela especialmente para as apresentações, como a cidade vista de um avião, árvores,
ondas no mar, formigas no chão, em meio a cenas de algum filme antigo da Pathé...)
sobre as quais fazia interferências ao vivo, riscos e linhas que iam se
sobrepondo e dialogando com as imagens que se alternavam na tela, em um jogo
improvisativo que ampliava as sensações do público. Aliás, um grande público,
que lotou o teatro na sexta-feira e ficou, em sua maioria, até o fim do espetáculo. E não
poucos presentes devem ter sido atraídos
pelo Fred Frith guitarrista do Henry Cow, mais interessados nele como um ícone
do rock setentista mais inventivo: não faltaram camisetas de Frank Zappa, Pink
Floyd e companhia circulando pelo
teatro...
Frith e seus parceiros levaram ao público na noite de sexta uma
experiência daquelas que não se esquece. Se a duração foi relativamente breve,
o impacto, incisivo e certeiro. Por cerca de 55 minutos, os presentes
permaneceram absortos, sugados por uma apresentação ininterrupta de
improvisação inebriantemente livre, em meio a um trabalho de pontos inesperados
e provocantes. Um momento que mesmo se fosse editado em disco não poderia levar
aos ouvintes as sensações que ficaram daquela noite, com todas as
sutilezas da genialidade de Frith e a tensão do free impro in loco, além do
trabalho imagético complementar.
Frith é um mestre das técnicas expandidas e utilizou toda uma gama de
interventores (pincéis, escovas, arco...) para criar a música que presenciamos,
atacando ou acariciando as cordas, criando sonoridades desconcertantes, que
ganhavam uma expressão ainda mais profunda quando apenas seus dedos conduziam a
guitarra. A interação coletiva é o
núcleo do que o quarteto apresentou, mas é claro que todos os olhos passam
grande parte do tempo atentos a Frith. E, com discreta condução, é ele quem
leva seus parceiros a desbravar as vias que pretende explorar, indo de momentos
de uma música mais fluida, com ideias e rastros de temas desenvolvidos de forma por vezes quase
pontilhística, a picos de intensidade mesmo agressiva, nos guiando por uma
jornada de sons que ganham sentido com seus desdobramentos, uma narrativa
fraturada que aos poucos desvenda seu sentido a quem aceita segui-los até o fim
nessa empreitada de quase uma hora sem cortes. A maior parte do tempo sentado e olhando para
seu instrumento, Frith joga com os pedais e os acessórios dispostos a seu lado
em uma mesa para compor com seus parceiros o extenso painel que vai sendo
construído à nossa frente. Glenn faz de seu aparato percussivo o fiel escudeiro
de Frith, e Hoopes, se o mais discreto do quarteto, mostra que está ali sempre que
o baixo pode crescer, tendo comandado um interessante solo enquanto o
guitarrista parecia necessitar respirar por alguns segundos lá pelo meio da
peça.
Aqueles que já ouviram o trio em ação (em vídeo ou disco mesmo) sabem o
que a adição do trompete de Susana Santos Silva representou para esses
concertos. A trompetista está em um momento iluminado de sua trajetória (basta
ver aonde chegou com seu incrível disco solista “All The Rivers”, editado neste
ano) e não atuou em nenhum momento como uma "convidada": era a quarta
voz do grupo instrumental e somente juntos puderam nos brindar com o que
trouxeram nesses dias. Seu trompete levou a música do trio original a universos
inexplorados por eles antes, em uma simbiose criativa arrepiante. Com ou sem
surdina, destilando longas notas climáticas ou extraindo faíscas de seu sopro,
a trompetista foi muito ovacionada ao fim da apresentação. Não bastasse a
equilibrada comunhão conjunta, Susana protagonizou o mais intenso solo da
noite, lá pela parte final da peça exibida, mostrando o porquê de ser uma
das vozes mais vivas de sua geração.
Quem deixou de ir aos concertos do Fred Frith Trio perdeu um dos
grandes momentos da free music apresentada em nossos palcos em muitos anos. E
sabe-se lá quando poderemos ver esse incrível grupo em ação na nossa frente de
novo...
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi também correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista on-line
portuguesa Jazz.pt. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)