SONS de PORTUGAL







LANÇAMENTOS  Novidades vindas da intensa cena de Portugal.
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Por Fabricio Vieira



Rajada  ****(*)
Pedro Sousa / Miguel Mira / Afonso Simões
Multikulti Project

Uma das acepções de Rajada, segundo o dicionário Aurélio, é “aumento repentino, temporário e forte de intensidade com que o vento sopra”. E é isso que buscamos neste álbum ao ver os nomes dos participantes: Pedro Sousa (sax tenor), Miguel Mira (violoncelo) e Afonso Guimarães (bateria). O trio gravou este “Rajada” em agosto de 2015, no Estúdios Interpress, mas só neste ano o registro chegou aos ouvintes pela “Spontaneous Music Tribune Series”. O álbum é bem o que quem conhece o trabalho desses instrumentistas pode esperar: grandes momentos de vivo free impro, com muita inventividade de sax e violoncelo, conduzidos por dois dos nomes mais fortes da atual cena europeia. O disco traz apenas dois extensos temas, “Atazana” (22 minutos) e “Desata” (36 minutos), o suficiente para demarcar a excelência criativa do trio. Guimarães consegue imprimir o pulso perfeito para Sousa e Mira travarem brilhantes intensos diálogos, em que o ataque de um é respondido com impetuoso contragolpe do outro, ora um assumindo o primeiro plano, ora cedendo o espaço ao outro, em uma disputa amigável mas tensa, em que rajadas de energia (especialmente na mais quente “Desata”, que traz ainda tocante solo de sax), inventividade e picos de inspiração vão trilhando os caminhos abertos pelo trio. Vibrante encontro.







Space Quartet  ****
Rafael Toral / Antunes / Pais Filipe / Webbens
Clean Feed
Rafael Toral é um artista de Lisboa que trabalha com guitarra e eletrônicos, circulando por diferentes gêneros (rock, ambiente, música eletrônica, free jazz) desde meados dos anos 90. Em seu percurso ocupa ponto central o projeto “Space Program”, criado em 2003 com a ambição de fazer música eletrônica “com um toque humano”. Nos 13 anos em que esteve em atividade, o “Space Program” rendeu frutos em concertos e discos desdobrados nas séries “Space Elements” e “Space Solo”. Agora, uma próxima etapa neste processo leva Toral a um novo grupo, o Space Quartet, formado ao lado de Hugo Antunes (baixo acústico), João Pais Filipe (bateria) e Ricardo Webbens (modular/network synthesizers). Toral (modular feedback circuit, modified MS2/MT10 amplifiers) rotula o som do grupo de pós-free jazz e apresenta nesta estreia quatro extensos temas. As peças foram captadas em diferentes ocasiões em novembro de 2017, no Estúdio 15A (Lisboa), no Sonoscopia (Porto) e no Salão Brazil (Coimbra) – os nomes das faixas se referem às cidades onde foram realizadas. Antunes e Filipe de fato conseguem imprimir uma base free jazzística (em especial nos temas “Lisboa I/II”), por sobre e entre a qual se embrenham as intromissões e divagações eletrônicas, em uma curiosa simbiose onde certo abstracionismo eletrônico dialoga de forma ora coesa, ora contrastante com a instrumentação acústica (sim, electronic music with a human touch!). Esta não é uma música de improvisações solísticas, tendo muito mais no clima/ambientação do conjunto e nas texturas proporcionadas pelas investidas eletrônicas, em meio a um fluxo contínuo de ideias surgidas ali, no desenvolvimento de cada peça, suas marcas mais palpáveis. Um universo sonoro de muito frescor expressivo.







Pele de Papel ***(*)
pLoo
Carimbo Porta-Jazz
Esse quinteto do Porto comandado pelo baterista Paulo Costa mostra uma música mais centrada na composição e em elementos propriamente jazzísticos. A abertura com um didgeridoo conduzido por Costa nos leva a certo sabor world jazz/fusion, mas não que o álbum em seu todo seja propriamente devedor dessas searas. Este tema inicial, “Epitáfio de Seikilos”, se revela ao fim da audição como um dos temas mais interessantes, com suas alterações de ritmicidade e ar inebriante. “Pong”, na sequência, talvez ilustre melhor o tom geral do pLoo, com destaque para a limpa guitarra (de Eurico Costa) e o solo de sax sem faíscas (de João Mortágua) – o grupo é completado por Diogo Dinis (baixo) e Daniel Dias (trombone). O álbum registrado em novembro de 2017 traz um total de oito agradáveis e convidativos temas – destaque para “Reta da Meta” e “Bêbado das Onze I” –, com uma intensidade e temperaturas relativamente controladas. Uma boa amostra de outra face da cena jazzística portuguesa.







Event Horizon / Redshift  ****
Dead Vortex
A Besta
Dead Vortex é um novo quarteto que mergulha no free impro reverberando ecos de psy-rock, fusion, post-rock, em uma viagem encantatória onde se misturam distintas sonoridades e possibilidades destiladas por Jorge Nuno (guitarra), Luís Guerreiro (trompete, sintetizador e eletrônicos), André Calvário (bass guitar) e Pedro Santo (bateria). Duplo, este seu álbum de estreia apresenta duas sessões captadas no começo deste ano, em 7 de janeiro (“Event Horizon”) e 3 de fevereiro (“Redshift”). Com 4 faixas saídas de cada sessão, seus títulos vão de -3 a 0 no primeiro disco e de +1 a +4 no outro. Como a capa do álbum indica, aqui o convite é para adentrar uma esfera lisérgica de mergulhos que podem ser desconcertantes (especialmente se acompanhados da luz e da bebida certas...). Há temas (ou passagens, nada é amarradamente alinhado) mais rocker, outros mais jazzy, com os improvisos atravessando texturas que nos emaranham em caminhos desconhecidos. O trompete, mesmo que uma dentre quatro vozes, que não está aqui para ser protagonista, exerce inevitável sedução, quer seja em temas onde seu toque mais profundo ecoe no tímpano (como em "-1"), quer seja quando esbraveja potência quase bailante (como em "0" ou "+2", esta com bateria e guitarra nervosíssimas, com uma pegada vigorosa marcadamente rock).
   




Gancho  ****
Uivo Zebra
A Besta
Power trio que reúne Jorge Nuno (guitarra), Hernâni Faustino (baixo elétrico) e João Sousa (bateria), o Uivo Zebra solta agora este intenso Gancho. Free impro de combustão rocker, o álbum apresenta três longas faixas em que cordas e percussão destilam uma vigorosa música, em meio a ruidosidades que emanam as diferentes bagagens estéticas de seus integrantes: Nuno tem como seu principal projeto o psy-free-rock do Signs of the Silhouette; Faustino é um dos nomes centrais do free impro/free jazz português, sendo membro de grupos vitais da cena como o Red Trio; e Sousa, que conhecemos mais de seu energy duo heavy jazz ParPar. A “Faixa 1”, mais breve com seus oito minutos, concentra a energia de ponta a ponta, sendo um cartão de visitas ideal ao som do trio; a guitarra, amparada pelo pulso constante de Sousa, demarca as trilhas por onde a peça se desenvolve, com o baixo dando suporte às ideias de Nuno, que se espraiam por feedbacks uivantes. A “Faixa 2” traz um respiro, com as notas chegando esparsas, enchendo o espaço com vagar, para somente lá pelos sete minutos alcançar sua amplitude total, com o ritmo mais marcado e a guitarra falando mais alto. Encerrando o percurso estão os 22 minutos que formam a “Faixa 3”. Abrindo com a bateria em potente toque roqueiro, guitarra e baixo assaltam nossos ouvidos com uma combinação de ritmados ataques certeiros e divagações que nos transportam em alguns momentos à seara do post-rock. Sai em edição limitadíssima em K7, com apenas 75 cópias. 







Praise of Our Folly  ****(*)
LFU: Lisbon Freedom Unit
Clean Feed
Em 4 e 5 de novembro de 2015, no lisboeta Namouche Studios, nove dos mais interessantes nomes da cena free/jazzística de Portugal se uniram para uma sessão de música livre. O noneto Lisbon Freedom Unit, reunido para sua primeira gravação, contava com Rodrigo Amado, Pedro Sousa e Bruno Parrinha (saxes); Luis Lopes (guitarra); Rodrigo Pinheiro (piano, rhodes); Ricardo Jacinto (violoncelo); Hernâni Faustino (baixo); Pedro Lopes (electronics); e Gabriel Ferrandini (bateria). O encontro rendeu quatro intensos temas, chamados apenas de I, II, III, IV, que funcionam como uma extensa criação dividida em quatro partes de tamanhos equilibrados, indo de 12 a 14 minutos cada. Nas trilhas abertas por “Ascension” cinco décadas atrás, temos improvisação coletiva de elevadíssima temperatura criativa. ‘I’ abre o conjunto em modo mais introdutório, em sombria atmosfera, com os instrumentistas entrando em cena sem afobação, com as notas chegando a conta-gotas e a intensidade subindo gradualmente. Em ‘II’, após uma extensa abertura comandada por Pinheiro, Lopes e Faustino, por cerca de 4 minutos, entram em cena bateria e sopros para sem demora mergulhar os ouvintes em um explosivo caldo sonoro, de arrepiar os tímpanos, antes de o tom baixar novamente para fechar a peça. Em ‘III’ sentimos a presença mais viva da guitarra e eletrônicos, com cortes precisos dos saxes sobre uma murada de ruidosidades, tudo impulsionado pelo toque vibrante de Ferrandini, em uma linha impetuosa que marca os primeiros seis minutos, antes de adentrarmos esferas mais relaxadas. ‘IV’ segue um esquema parecido, mas com o piano em maior destaque, e encerra a sessão nos deixando com os ouvidos cheios, com a impressão de termos navegado por algo de expressividade maior, com o qual não nos deparamos sempre.







A History of Nothing  *****
Rodrigo Amado / Joe McPhee / Kessler / Corsano
Trost Records
Após o muito bem recebido “This is Our Language” (2015), o quarteto formado por Rodrigo Amado, Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano lança seu segundo título. A History of Nothing mostra este sensacional supergrupo em sessão novamente registrada no Namouche Studios, em Lisboa, no dia 5 de março de 2017. Alguns anos se passaram desde a gravação do primeiro registro do quarteto, que se deu em dezembro de 2012. Mas a conexão entre as duas datas é muito clara e palpável. Ambos discos trazem cinco faixas (ou quatro na versão LP que sai junto agora) em que o dinamismo e a maturidade expressiva dos músicos conduzem o ouvinte por uma fantástica jornada sonora. Curioso que “A History of Nothing” tenha algumas pontuações, planejadas ou não, que o une em linha direta a “This is Our Language”. Ambos começam com uma peça em torno de 6 minutos, de caráter introdutório, mais contemplativa; novamente, à sequência vem a faixa-título, com aproximados 11 minutos; há ainda a continuação do tema “Theory of Mind (for Joe)”, que aparece cá e lá, parte I e II... Mas aqui estamos no universo free jazzístico, no campo da improvisação mais livre onde o novo é imperativo. McPhee traz possibilidades realmente frescas, tocando pocket trumpet e sax soprano (à outra sessão, levou o sax alto. Interessante que ele tenha preferido deixar seu tenor em casa, ofertando uma voz contrastante, afora suas particularidades estéticas, à de Amado, centrado exatamente no tenor). E com o soprano produz alguns de seus melhores momentos, em diálogos de intensidade elevada, como já aponta a conversação da dupla, sobre um quebradiço toque da bateria de Corsano, na abertura do segundo tema, que deságua em solos de McPhee (aos 4 minutos) e de Amado (incrivelmente explosivo logo entrado os 5 minutos), dinâmica que se estende pela peça, a mais potente do conjunto. “Theory of Mind II (for Joe)”, a terceira faixa, começa com baixo e bateria até a entrada do sax tenor, em modo melódico, baixando as fuligens erguidas em sua antecessora; aqui o baixo de Kessler tem seu espaço solista, que antecede a volta, em modo mais faiscante, de Amado. Já o pocket trumpet de McPhee mostra mesmo a que veio em "The Hidden  Desert", explorando técnicas amplas e executando ecos de um melancólico tema, respondido depois pelo sax, que parece nos avisar que até tão excitante sessão encontra seu fim em algum momento.   








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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi também correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista on-line portuguesa Jazz.pt. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)