LANÇAMENTOS Novidades de (ou
projetos com) músicos japoneses.
Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Bright Force ****(*)
Kira Kira
Libra Records
O casal japonês Satoko Fujii (piano) e Natsuki Tamura (trompete) surge com novo projeto, o quarteto Kira Kira. A eles se junta o jovem baterista Ittetsu Takemura e o australiano Alister Spencer (rhodes eletric piano, effects), conhecido da dupla de outros projetos. Bright Force, primeiro registro do quarteto, foi captado em setembro de 2017 em Tóquio e traz três temas. “Because of the Sun”, composta por Spencer, abre o álbum e mostra um free jazz de elevada intensidade, com Takemura exibindo uma firme pulsação sobre a qual os teclados criam um clima inebriante, com o trompete perpassando o espaço com vigorosa intromissão nos primeiros dois minutos, antes de abrir os caminhos para o piano assumir primeiro plano. O tema seguinte, “Nat 4”, de Tamura, mantém a temperatura elevada, com o trompetista dominando os espaços e centrando as atenções – há também um magnífico diálogo de piano e bateria entre os 4 e 6 minutos. O disco fecha em outro modo, com a suíte “Luna Lionfish”, peça de Fujii desenvolvida em três partes, totalizando mais de 30 minutos de uma música que abre uma seara mais reflexiva, quase uma paisagem sonora de intromissões por vezes sussurrantes dos instrumentos em meio aos efeitos de Spencer (a voz mais discreta do grupo), em texturas singulares, característica que marca outros trabalhos de Fujii/Tamura. As intromissões solísticas pelo percurso quebram a uniformidade possível, iluminando o trabalho. Expectativa: que o quarteto se mantenha ativo e produzindo mais desses momentos inspiradores.
Ninety-Nine Years ****(*)
Satoko Fujii Orchestra Berlin
Libra Records
Este projeto não traz a pianista Satoko Fujii em ação, apesar de seu nome na capa – dela são as composições e arranjos. A Orchestra Berlin faz parte de um conjunto de cinco big bands comandadas por Fujii, cada uma associada a uma localidade: Tóquio, Nagoya, New York e Kobe, sendo que às vezes ela toca piano, às vezes apenas cuida das composições e condução. Essa versão Berlin (a última a ser criada desse conjunto, em 2015) é centrada em músicos europeus – exceção ao trompetista Natsuki Tamura –, sendo dez os instrumentistas, com duas baterias, baixo, trombone, três saxes e três trompetes, entre nomes veteranos, como o alemão Gebhard Ullmann, e outros mais jovens, como a sax barítono Paulina Owczarek. Toda a intensidade que o grupo pode alcançar está centrada na explosiva peça de abertura, “Unexpected Incident”, referência à expressão usada pelo governo para falar sobre o acidente nuclear de Fukushima. Os sopros são especialmente implacáveis. Na sequência de faixas, a sonoridade e sua inspiração mudam completamente; o tema “Ninety-Nine Years” é dedicado à falecida sogra de Fujii e apresenta uma fatura mais contemplativa, abrindo com uma reflexa linha de baixo que altera nossa percepção após a impetuosa primeira peça. Depois vem “On the Way”, swingada até em seu desenvolvimento melódico e marcada por solo de Tamura, que centra o núcleo da peça. A temperatura volta a crescer com “Oops!”, com solo de tenor incendiário em seu início, e a intensidade se mantém por “Follow the Idea”, concluindo o álbum com um desfecho arrepiante.
Essas duas gravações da Libra Records fazem parte dos lançamentos em
comemoração aos 60 anos de Satoko Fujii, a serem celebrados no dia 8 de
outubro.
19th of May 2016 ****
Otomo Yoshihide / Paal Nilssen-Love
PNL
O mago japonês Otomo Yoshihide, que esteve no Brasil no fim de 2017, se encontra com um antigo conhecido seu (e nosso) neste registro captado no Dom Cultural Center, em Moscou, dois anos atrás (como está marcado no título). Yoshihide se junta ao sempre genial Paal Nilssen-Love nesta parceria onde guitarra e percussão investigam searas surpreendentes que se revelam em dois extensos temas, de 16 e 28 minutos. Chamados de “Cat” e “Dog”, os dois produtos dessa apresentação são fruto de um desenvolvimento contínuo de ideias em alta voltagem. A dupla já esteve junta em diferentes oportunidades, com outros parceiros (como em “Shinjuku Crawl”, do The Thing, ou em trio com Lasse Marhaug, em “Explosion Course”) ou em duo mesmo (soltaram um álbum no formato em 2014) – interessante notar que, em todos encontros com Nilssen-Love, Yoshihide se foca na guitarra. A intimidade sonora entre eles é potente e fluida, parece até que tocam juntos rotineiramente. A música oscila entre diferentes potencialidades, abrindo com ruídos esparsos na percussão e nas cordas, entrecortados por pontos de quase silêncio (cada vez mais escassos com os ataques ganhando corpo); pouco mais de dois minutos são suficientes para o duo engatar “Cat” e seguir entre picos explosivos e pontuais baixas de temperatura. “Dog” segue esquema similar, mas soa diferente; temos aqui uma exploração distinta de guitarra/bateria, soando algo mais rock em sua primeira etapa; Nilssen-Love apresenta um pulso mais constante, de vigor revigorado nos primeiros cinco minutos, até desaguar em uma passagem reflexiva, uma espécie de intermezzo até a explosão dominar os espaços lá pelos 10 minutos. Encontro de dois mestres do nosso tempo.
Ramen en los Parlantes ***(*)
Anla Courtis / Kawaguchi Masami / Fukuoka Rinji
Pataphysique Records
O artista argentino Anla Courtis se uniu a dois nomes fortes da cena underground do Japão para este interessante registro: o baixista Kawaguchi Masami e o guitarrista Fukuoka Rinji. O encontro aconteceu em um estúdio em Tóquio, em janeiro de 2015, e agora chega ao mercado pelo selo japonês Pataphysique Records. Noise, psy rock, improvisação, o trio aproveita diferentes vias de radicalidade para criar uma música intensamente executada em oito temas. Duas das faixas são mais extensas – “Roperos de Luz”, com 14 minutos, e “Hasta los Lancheros Siembran”, com mais de 17 minutos, que apresentam as ideias do trio de forma mais ampla –, em meio a outras de desenvolvimento mais direto. A breve “Los Glóbulos Necios” abre o trabalho funcionando como uma introdução, dando uma ideia do que o grupo vai apresentar. O resultado não é de apenas ruidosidades e faíscas. E em meio ao abstracionismo por vezes de tortuosa contemplação há espaço até para uma canção desconstruída, “Un Algoritmo Boogie”, com algo blues e pontuais intervenções vocais de Masami. Curiosa a opção de, mesmo sendo um disco editado no Japão, trazer os títulos das faixas e do álbum em espanhol – talvez exatamente como forma de manter o estranhamento, inerente ao trabalho do trio.
Mannyoka *****
Kaoru Abe / Sabu Toyozumi
NoBusiness Records
Mannyoka vem engrossar a discografia do mito Kaoru Abe (1949-1978),
saxofonista japonês morto precocemente e que, se editou poucos álbuns em vida,
tem tido resgatado, especialmente em gravações ao vivo, diferentes registros
que deixou pelo caminho. Realizado em seu último ano de vida, este Mannyoka
traz cinco extensas faixas captadas em janeiro e julho de 1978, em Tóquio,
sendo uma continuidade do já clássico “Overhang Party”, álbum anterior do duo, ao lado do percussionista Sabu Toyozumi. Mannyoka
é dividido em duas partes. A primeira metade traz gravação ao vivo realizada em
Minor, Kichijôji, no dia 7 de julho de 78, dois meses antes da morte de Abe.
Com duas longas faixas (21 e 14 minutos) chamadas “Song for Mithue Totozumi
(I/II)”, mostra a inventividade improvisativa da dupla em alta potência. A
segunda parte foi captada em encontro anterior, em 13 de janeiro de 78, no
Gaya, em Shibuya (Tóquio), e apresenta a peça “Song for Sakamoto Kikuyo
(I/II/II)”, em três partes (4, 14 e 18 minutos). O palco do Gaya foi a casa de
Kaoru Abe em 1978. Ele tocou lá em todos os meses entre janeiro e agosto
daquele ano, sendo a maioria das apresentações em formato solista, reunidas
postumamente no box “Solo: Live at Gaya”, com nada menos que dez CDs! Fora os
concertos solistas, houve diferentes encontros com Toyozumi naquele palco, a
começar em novembro de 77 e seguir pelos meses seguintes, em um total de pelo
menos oito encontros do duo – algo editado anteriormente, algo editado agora.
No concerto de Gaya que aparece neste novo álbum, Abe toca apenas os saxes
soprano e sopranino; no de Minor, foca o sax alto, seu veículo mais importante.
A fase final de Kaoru Abe costuma ser lembrada como um período de menor
intensidade, com solos mais contemplativos que as explosões ruidosas que marcavam
suas primeiras investidas no início dos anos 1970. Isso em parte é verdade, mas
há momentos de maior energia, sim, a destacar, por exemplo, seu solo ao soprano
em “Song for Sakamoto Kikuyo II”. Para os entusiastas, sai também uma versão em
vinil (com o título “Banka”), em edição limitada de 300 cópias, que traz apenas
o concerto do dia 13 de janeiro. Documento de importância indiscutível de um dos
maiores nomes da história do free.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi também correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente
escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para
os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)