PERFIL Henry Threadgill, um dos
nomes maiores da free music, vem pela primeira vez ao Brasil apresentar sua música, no Sesc Jazz. Em três concertos
imperdíveis, mostrará um pouco de sua inventiva arte, ao lado do quinteto
Zooid...
Por Fabricio Vieira
Seu nome já estava cotado para vir ao país no ano passado, não deu certo.
Mas desta vez não falhou. Henry Threadgill desembarca pela primeira vez por
esses lados para três apresentações em São Paulo, capital e interior, com seu
quinteto Zooid. Quem acompanha o free jazz com interesse aguardava ansioso por
este momento, tão marcante quanto as vindas de Anthony Braxton, William Parker
e Muhal Richard Abrams.
Henry Threadgill, músico de Chicago de 74 anos, é um dos expoentes da
AACM e tem desenvolvido um ininterrupto trabalho de importância fundamental
para a música criativa desde meados dos anos 1970. Aliados a seu nome estão
projetos que todos entusiastas da free music conhecem e admiram – Air, Sextett,
Very Very Circus, Make a Move, Zooid – e poder ver um pouco disso ao vivo é
algo histórico e de relevância indiscutível. Como sideman, participou do Octet
de David Murray, tendo aparecido também em discos de Muhal Richard Abrams,
Roscoe Mitchell (“L-R-G / The Maze”, “Nonaah”), Billy Bang (“Vietnam:
Reflections”), dentre outros mais. Saxofonista (focado no alto) e flautista, Threadgill
é um dos grandes compositores de sua geração, tendo sido um dos três únicos
jazzistas, ao lado de Ornette Coleman e Wynton Marsalis, a receber, em 2016, o
Prêmio Pulitzer de Música.
O início da trajetória de Henry Threadgill, nascido em Chicago em 15 de
fevereiro de 1944, está intimamente ligado ao pianista Muhal Richard Abrams
(1930-2017). Ele se aproximou de Abrams quando
tinha apenas 17 anos, no começo dos anos 1960, entrando para a sua Experimental
Band. Permaneceu em seu entorno nos anos seguintes e viu nascer, em 65, a AACM
(Association for the Advancement of Creative Musicians), a qual se associou
desde seus primeiros tempos. Seu percurso seria interrompido em 67, quando foi
convocado para o exército, onde entrou para a banda militar, tocando clarinete
e sax. Inevitavelmente, considerando o que se vivia naqueles tempos, acabou sendo
enviado para o Vietnã, onde os Estados Unidos alimentavam uma insana guerra que
se estenderia ainda por muitos anos. Threadgill se feriu em combate em 68, podendo
assim retornar a Chicago, ser dispensado da vida militar e passar a se focar
integralmente na música.
Air |
O percurso de Threadgill na música foi engrenando aos poucos: quando
seu primeiro importante grupo, o Air, gravou o disco de estreia ("Air
Song"), em setembro de 75, o músico já tinha adentrado os 30 anos de
idade... Antes do Air, o saxofonista fez sua estreia em gravações participando
das sessões que renderam o álbum "Young at Heart/Wise in Time", de
Abrams, realizadas em julho e agosto de 69. Depois disso, teve de esperar o
surgimento do Air para voltar aos estúdios. E o próprio estabelecimento do Air
foi relativamente lento. O primeiro encontro entre Threadgill, o baixista Fred
Hopkins (1947-1999) e o baterista Steve McCall (1933-1989) se daria em 71,
quando foram convidados pelo Columbia College para apresentar um concerto com
releituras de peças do pioneiro Scott Joplin (1868-1917). Mas McCall partiu
depois para uma temporada na Europa e o grupo teve de esperar para se
estabelecer. O interessante desse processo é que o trio já apareceu com uma
sonoridade muito definida, precisa e solidamente inventiva. O free jazz do Air,
se se aventurava pela improvisação mais livre, também tinha um respeito pela
melodia e pelo lado composicional. Neste projeto vital para Threadgill se
estabelecer como um nome forte do free, ele inicialmente variava mais os
instrumentos: da família de saxes, partindo do alto, no qual se especializaria,
também costumava tocar o tenor e o barítono; da flauta, sua outra base, ia até
a flauta-baixo; passava pelo clarinete; e ainda explorava o musette e um particularíssimo
instrumento de percussão metálica formado por calotas, o hubkaphone. Algumas
dessas investigações ele levaria para a vida toda; no caso do sax, seria o alto
que se tornaria sua voz central. É difícil dissociar o Air de Threadgill por
mais que ele tenha buscado e produzido tantas coisas diversas incríveis depois.
Tendo encerrado suas atividades em 1986 e deixado 11 álbuns, o Air é um dos
marcos maiores do free setentista.
As ideias de Threadgill extrapolavam o veículo representado pelo Air
bem antes deste se desintegrar. Ansioso por explorar novas possibilidades
sonoras, o músico não demorou a começar
a desenvolver projetos paralelos. O primeiro fruto desse processo está
registrado no álbum “X-75 – Volume 1”, de 1979. Sob seu nome, Threadgill juntou
um grupo heterogêneo para realizar a obra, tendo por base quatro baixos e
quatro flautas! A eles se juntou em algumas peças a voz de Amina Claudine Myers,
em uma experiência bastante singular. Esse seria apenas o primeiro passo de Threadgill
fora do Air. A fórmula de “X-75” não foi repetida – nunca houve um Vol. 2 –,
mas a experiência abriu de vez a inventividade de Threadgill, que nunca deixou
de testar possibilidades novas dali para frente.
Os anos 1980 marcam a estruturação de seu Sextett – com dois “T” no
final, indicativo da formação do grupo: um sexteto + Threadgill... Esse grupo
também tinha uma formação bastante particular, com duas baterias, baixo,
violoncelo, trombone e trompete – além de sax e flauta do líder. Sob a
assinatura do Sextett, ficaram algumas de suas obras mais incríveis, como “You
Know the Number”, “Easily Slip Into Another World” e o derradeiro "Rag,
Bush and All". Fred Hopkins e seu fantástico baixo sempre estiveram
presentes nessa fase, além de Pheeroan akLaff, que havia assumido as baquetas
no Air em seus últimos anos (quando foi renomeado como New Air). O violoncelo
de Deidre Murray, que se juntou ao grupo em 83, é uma peça de destaque
indiscutível ao colorido do sexteto, marcado pelas diferentes possibilidades
oferecidas pelos múltiplos sopros.
O próximo passo na obra do saxofonista foi a criação do Very Very
Circus. Interessante notar que esses projetos vão se estruturando muito mais
como um desdobramento de um a outro do que uma ruptura, sempre com mudanças de
formação, mas mantendo uma linha onde podemos acompanhar a evolução da
linguagem de Threadgill, sendo que em todos eles sua face de compositor ocupa
primeiro plano. O que vemos em todos esses trabalhos é a criação de uma mistura
ideal de espaços amplos para a improvisação em meio à complexidade de arranjos
nos quais Threadgill consegue levar ao limite as habilidades de seus parceiros.
Como na maioria do trabalho dele, não se trata de energy music nem de free
impro, mas de algo capaz de ir de elevada intensidade improvisativa a
equilíbrio de perfil quase camerístico, sempre em um espaço jazzístico
detectável, absorvendo elementos de origens variadas, que podem ir da música de
rua de New Orleans ao calipso ou mesmo o erudito, em um caldeirão sempre muito
bem conduzido. Vale dizer que, desde os anos 90, ele sempre gostou de
recarregar as ideias passando temporadas em Goa, ilha da Índia que foi colônia
de Portugal por algum tempo... O Very Very Circus também é um septeto, mas com
uma formação bastante diversa do Sextett: ao lado do saxofonista estão
(inicialmente, algumas mudanças ocorreram pelo caminho) duas guitarras, duas
tubas, trombone e bateria, sendo a marca principal da obra do artista na
primeira metade dos anos 90. A entrada da guitarra elétrica muda bastante a
sonoridade buscada por Threadgill, que até então trabalhava centrado em sons
acústicos, oferecendo algo que dialoga com o Prime Time de Coleman. O grupo é
testado no palco logo de cara, rendendo o intenso disco “Live at Koncepts”,
captado em maio de 91. É nessa época que Threadgill assina com uma grande
gravadora, a mesma Columbia que tinha colocado em suas fileiras David S. Ware,
Arthur Blythe e Tim Berne – tempos interessantes... Em não muitos anos, o Very
Very Circus se desdobraria no Make a Move, um quinteto com baixo, guitarra, acordeão
(vibrafone depois) e bateria, que o acompanharia até o novo milênio.
Os anos 2000 marcam o surgimento de seu mais longo e, em certo aspecto,
sólido grupo, o Zooid – com quem virá ao Brasil no próximo mês. Em sexteto,
estreia em álbum com “Up Popped the Two Lips”, de 2001, que o artista considera
como um registro de transição, ainda com elementos do Make a Move. O grupo era
formado por tuba (com o sempre presente desde então José Davila), guitarra (Liberty
Ellman, outro destacado parceiro contemporâneo), violoncelo, bateria e
sax/flauta do líder – no começo, havia também o oud de Tarik Benbrahim,
formando um sexteto; com a saída dele, o Zooid virou quinteto. Mais do que
nunca, o processo composicional de Threadgill se refinou, com a estética do
Zooid passando a trabalhar com elementos seriais (sem ser dodecafônico) e as
composições se tornado mais estruturalmente complexas. Espalhada
por seis álbuns, a criação feita para o Zooid atingiu seu ápice no último
registro do grupo, “In for a Penny, In for a Pound”, de 2015, que rendeu ao
músico o Pulitzer.
(Photo:
Peter Gannushkin)
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Threadgill tem comandado dois novos projetos, pós-Zooid. Um deles é o Ensemble Double Up, criado em
2015 para apresentar uma composição do músico feita em homenagem ao trompetista
Butch Morris (1947-2013). Em septeto (um de seus formados favoritos), o
Double Up conta com piano, sopros, celo e percussão – aqui Threadgill participa
do projeto apenas como idealizador, compositor e condutor –, tendo rendido os
álbuns “Old Locks and Irregular Verbs” (2016) e “Plays Double Up Plus” (2018).
A outra novidade é o 14 or 15 Kestra: AGG, uma big band que estreou com
“Dirt... and More Dirt” (2018), onde Threadgill toca sax e flauta e apresenta
novas peças em que integra seu processo de composição e improvisação grupal,
seguindo o sistema criacional baseado em séries intervalares, como vem fazendo
também com o Zooid.
“See this language affords people to play in such a way where they're
forced to play ideas rather than play licks and patterns and things like that,
because the traditional harmonic stuff from the major/minor language is not
there, so you can't play all that stuff that people generally play, so you have
to create more in the moment, really fresh ideas in the moment, there's no
formulas that you can apply in the moment. Playing formulas and stuff is one
thing but that is not playing a musical idea, it's playing formulas and playing
a whole lot of quasi-exercises and a lot of other things of that nature, and
things that you've already been playing over and over, rather than being able
to play right in the moment from your ear, based on the intervallic information
available”, explicou Threadgill, em entrevista a The Wire, a linguagem
trabalhada com o Zooid.
Nos concertos que fará no Brasil, o músico apresentará o projeto Zooid,
provavelmente em quinteto com Threadgill (sax alto, flauta, condução), José
Davila (trombone, tuba), Liberty Ellman (guitarra), Christopher Hoffman
(violoncelo) e Elliot Kavee (bateria). Precisa dizer que é imperdível?
*5 discos essenciais de Henry Threadgill*
Air Time (1977)
Air
O trio Air se tornou um grupo icônico do free setentista, sendo formado
por Henry Threadgill, Fred Hopkins e Steve McCall (substituído depois por Pheeroan akLaff). Desde sua estreia em 75, o grupo enfileirou uma sequência de clássicos
do free jazz. Air Time é o terceiro título do trio. Não se trata aqui de energy
music, apesar da alta voltagem de alguns temas, e a base composicional já é
relevante. A gravação mostra bem a filosofia do trio, onde não havia
protagonistas: a música só existia a partir da conexão entre os três. Um dos
maiores grupos do free em qualquer tempo. Destacamos este, mas é difícil
escolher uma dentre as gravações do Air, especialmente as primeiras, todas
excelentes e obrigatórias.
Just the Facts and Pass the Bucket (1983)
The Henry Threadgill Sextet
Este sexteto ainda não é oficialmente o "Sextett" que faria o
principal da música de Henry Threadgill durante os anos 80, mas já carrega os
mesmos elementos. Aqui está o onipresente Fred Hopkins ao lado de Olu Dara
(corneta), Deidre Murray (violoncelo), Craig Harris (trombone) e Pheeroan
akLaff e John Betsch (baterias). Um dos atrativos é Threadgill passeando por
vários sopros, saxes alto e barítono, clarinete e flauta. É seu terceiro
registro solo e traz seis temas próprios, em um total de apenas 39 minutos.
Rag, Bush and All (1988)
Henry Threadgill Sextett
O “Sextett”, que marcou a obra de Threadgill nos anos 80 e deixou alguns
de seus melhores momentos, apresentava uma espécie de avant-jazz camerístico.
Em meio a grandes álbuns que editou com o grupo, com algumas variações de
formação, Rag, Bush and All (com violoncelo, trompete, trombone, sax, baixo e duas
baterias) tem um brilho especial. Com apenas quatro temas, mostra o grupo em
equilíbrio perfeito, sintetizado em sua melhor faixa, “Sweet Holy Rag”. Foi o
último registro realizado pelo Sextett, tendo sido captado em dezembro de 1988.
Spirit of Nuff... Nuff (1990)
Very Very Circus
Nesta sequência, vemos a rápida transição de ideias que marca a virada
do “Sextett” para o “Very Very Circus”. O septeto apresenta aqui uma nova
sonoridade e novas possibilidades harmônicas, sendo formado por duas tubas,
trombone, duas guitarras e bateria, além de sax/flauta. O primeiro disco com
esse grupo é este intenso Spirit of Nuff... Nuff, que mostra uma nova visão de Henry
Threadgill sobre o rumo de suas composições. A entrada da guitarra elétrica é
um ponto fundamental para a nova proposta estética apresentada.
In for a Penny, In for a Pound (2015)
Zooid
O Zooid marca o trabalho de Threadgill nos anos 2000. Em quinteto, estão, ao lado
de sax e flauta, José Davila (tuba e trombone), Liberty Ellman (guitarra),
Christopher Hoffman (violoncelo) e Elliot Kavee (bateria). São seis composições
de Threadgill, reunidas sob o nome de “Epic”, com algumas delas dedicadas
especificamente a um instrumentista, como “Tresepic (for trombone)" ou “Unoepic
(for guitar)”, em um conjunto que representa o ápice de seu processo composicional
para o grupo – é o último registro do Zooid até o momento. Foi exatamente por este
álbum que Threadgill ganhou o Pulitzer de Música em 2016, consagração de
uma inventiva trajetória de quatro décadas.
*HENRY THREADGILL ao vivo no Sesc Jazz*
Quando: 16 (qui) e 17/8 (sex), às 21h
Onde: Sesc Pompeia (Teatro)
Onde: Sesc Pompeia (Teatro)
Quanto: R$ 12 a R$ 40 (inteira)
Quando: 18/8 (sab), às 20h
Onde: Sesc Ribeirão Preto (Galpão)
Quanto: R$ 15 a R$ 50 (inteira)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi também correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)