PLAY IT AGAIN... (trompetes!)





LANÇAMENTOS  Apanhado de novidades da free music.
Em destaque: trompetistas.
Experiências em diferentes possibilidades. 
Ouça, divulgue, compre os discos.






Por Fabricio Vieira





Weatherbird  ****
Peter Evans / Cory Smythe
More is More
Peter Evans mostra neste seu primeiro lançamento do ano um encontro com o pianista Cory Smythe. A parceria foi concebida em 2014 e teve como inspiração de partida o clássico e pioneiro duo de Louis Armstrong (1901-1971) e Earl Hines (1903-1983), que deu origem a “Weatherbird” em 1928. A gravação de Evans e Smythe, registrada em setembro de 2015, abre exatamente com uma releitura do tema de Armstrong que nomeia o álbum; seu sabor jazzístico é atravessado pela particular pegada de Evans, em uma revisitação revigorante em seus 3m25 (há ainda uma segunda interpretação da peça, fechando o disco, um pouco mais extensa, com 4m17, e com um trompete ainda mais potente). O álbum é completado com mais dois temas do trompetista e dois do pianista, em um conjunto de seis faixas com muito lirismo e inventividade improvisativa. “BIs”, de Evans, é uma das mais fortes e expressivas, com o sopro, após uma entrada vigorosa, passando a divagar como que procurando uma melodia perdida, que nunca chega a ser propriamente desenvolvida, enquanto o piano, em toques espaçados, parece tentar engatar um diálogo, algo que só vai se concretizar nos últimos (e mais intensos) dois minutos da peça. Pena o álbum ser relativamente breve, com menos de 30 minutos, pois o saboroso encontro deixa no ar a vontade de ouvir mais... A dupla se apresenta, para celebrar o lançamento do disco, no dia 12 de junho, no Jazz Gallery (NY).








Live at Ljubljana  ****(*)
Luís Vicente/ Seppe Gebruers/ Onno Govaert
Multikulti Project
Muito frescor imaginativo é o que emana deste trio europeu formado pelo português Luís Vicente (trompete) ao lado do belga Seppe Gebruers (piano) e do holandês Onno Govaert (bateria). Fruto de uma apresentação na edição de 2017 do Sound Disobedience Festival, na Eslovênia, Live at Ljubljana traz três temas de uma música envolvente e de grande beleza improvisativa, com o trio em sintonia perfeita. Vicente e Govaert têm trabalhado bastante juntos, tocando outros destacados projetos, como os quartetos "In Layers" e "Twenty One", e Gebruers se integrou com perfeição a eles. O álbum traz três temas, todos chamados "Spanski Borci" (nome do local onde tocaram), e as peças se desenvolvem de forma bastante equilibrada e focada, como se tudo ali fosse milimetricamente pensado, gerando um todo final de refinada elaboração: improvisação livre feita com consciência máxima. Vicente é um dos grandes do trompete atual, soando cada vez mais impressionante (seu solo no segundo tema é de uma força incrível). Merece atenção o jovem Gebruers, de 28 anos, muito inventivo em suas linhas e que promete surpresas à frente encarando um instrumento que conta hoje com uma fantástica geração de músicos que começou a aparecer na última década.







Atody Man  ****
Kaze
Circum/Libra
O quarteto Kaze é composto pelos japoneses Satoko Fujii (piano) e Natsuki Tamura (trompete) ao lado dos franceses Christian Pruvost (trompete) e Peter Orins (bateria). Criado em 2010, o grupo apresenta este seu novo registro, captado em junho de 2017 no Firehouse 12 – Warehouse Studio. São seis extensos temas, que vão de 7 a 17 minutos, em que a improvisação é desenvolvida tendo a coletividade como foco, sem estrelismos ou lideranças (Fujii deu uma curiosa declaração sobre o projeto, destacando que ela e Tamura não falam francês, e Peter e Christian não falam japonês: but we can talk in music...). Apesar de as composições serem divididas por todos os instrumentistas (um ou dois temas por músico) há uma unidade sob a rubrica “Kaze” que mantém a coesão do material. Logo na faixa de abertura, “Hypnotique Sympathie”, podemos sentir a relaxada tensão que caracteriza o som do quarteto, com os dois trompetes trabalhando ora em diálogo ora em oposição, mas sem chegarem a faíscas. Fujii exibe sua apurada técnica, tratando o piano como elemento percussivo – em complemento direto ao toque de Orins – quando necessário, explorando as cordas do instrumento (como na faixa inicial) ou impregnando a peça com seu lirismo abstrato (como na tocante abertura de “Morning Glow”). A faixa-título, assinada por Pruvost, leva o free impro a esferas mais áridas, com ruidosidades entrecortadas pelos trompetes, que destilam uma melodia de atmosfera quase fantasmagórica para fechar o álbum.






Of Echoing Bronze  ***(*)
Nate Wooley / Torben Snekkestad
Fundacja Sluchaj
Esta gravação marca o encontro entre Nate Wooley (trompete) e o norueguês Torben Snekkestad (sax soprano e trompete). Captado ao vivo em julho de 2015, em Copenhagen, o álbum traz três temas (dois mais extensos e um mais breve) e apresenta uma música bastante pontilhística, detalhista, que deve atingir seu máximo apenas no palco, com o ouvinte podendo ver a ação, cada gesto dos músicos construindo os sons. Há momentos de empolgante fritação, com os dois instrumentos duelando em alta voltagem (como aos 10 minutos e aos 16 minutos da faixa-título, que abre a apresentação), mas este não é o tom que rege o álbum de um modo geral.  Utilizando técnicas expandidas e um vasto arsenal improvisatório, recursos que vêm sendo desenvolvidos por ambos, artistas da mesma geração que são, desde meados dos anos 90, Wooley e Snekkestad exibem uma música complexa e que requer atenção redobrada para ser apreciada em suas nuances. Apesar de ser um sólido disco de improvisação livre, não chega a ser um item obrigatório (como "High Society", gravação nos mesmos moldes feita por Wooley ao lado de Peter Evans alguns anos atrás). Mas vale uma conferida, claro, até porque está facilmente à disposição no Bandcamp.







All The Rivers - Live at Panteão Nacional  *****
Susana Santos Silva
Clean Feed

Quem acompanha o trabalho da trompetista portuguesa Susana Santos Silva já deve ter se deparado com algum vídeo dela tocando sozinha. Há um em especial que merece ser conhecido, disponível no Youtube, captado em 2015 no Stedelijk Museum voor Actuele Kunst Gent (Bélgica), que mostra ela tocando em um amplo cenário, com a música dialogando inventivamente com o espaço. Agora a trompetista lança um álbum solo, belíssimo exemplar que bem ilustra o ponto elevado que sua trajetória alcançou. A impressionante sonoridade apresentada deve parte de seu vigor à escolha do espaço onde a música foi captada. Quem já teve a oportunidade de visitar o imponente edifício do Panteão Nacional, em Lisboa, poderá imaginar melhor o que deve ter sido a apresentação, com a música reverberando pelos amplos espaços do prédio. No disco, algo dessa sensação se mantém e enche os ouvidos: a forma como as notas flutuam e ecoam pelo singular edifício levam nossos sentidos a um ponto de embriaguez e deslumbramento; somente ali aquela música criada por Santos Silva poderia soar daquela forma, um momento único. Centrada em apenas um extenso tema, “All the Rivers”, a trompetista nos mostra o quanto a improvisação livre pode ser encantatória e surpreendente.  






Emerge  ****
Big Bold Back Bone
Wide Ear Records
O Big Bold Back Bone é um intenso quarteto europeu de free impro que reúne os suíços Marco Von Orelli (trompete) e Sheldon Suter (bateria) e os portugueses Luís Lopes (guitarra) e Travassos (eletrônicos). Neste seu terceiro álbum, o quarteto apresenta material captado em novembro de 2015, à mesma época do trabalho editado no ano passado por eles. A propósito, este novo álbum dialoga diretamente com o anterior (poderiam formar até um álbum duplo, com cada um em um disco). Se no anterior “In Search of the Emerging Species” o quarteto optou por desenvolver apenas uma extensa improvisação livre, aqui a proposta se altera, com o álbum sendo formado por 7 temas entre três e oito minutos. Lá, a peça executada chama “Immerge”. Aqui, o título do álbum é “Emerge”. Em meio a tais conexões, porém, o álbum é independente, podendo ser apreciado sem seu par. O disco começa com a viajante “Silent Stream”, marcada por um trompete relaxado, de notas mínimas, atravessando com vagar as texturas criadas por cordas e eletrônicos (que ganham protagonismo entre os 4 e 5 minutos). Essa peça funciona como uma preparação para os momentos mais intensos que vêm depois, como em “Facing Extinction”, bem alinhada ao tema de abertura, mas mais potente. Outros temas, como a intensa “Tentaculita” e a quase sombria “Ground Found”, trazem possibilidades variadas que bem ilustram a versatilidade do grupo.








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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)