LANÇAMENTOS Destaques nacionais
editados nos últimos tempos.
Experiências em várias formas.
Ouça, divulgue, compre os discos.
Por Fabricio Vieira
5218 ****
Dentaduro
Fábrica de Sonhos
Novo trio com uma interessante formação conduzido por Bernardo Pacheco
(baixo elétrico), Victor Vieira-Branco (vibrafone) e Pedro Silva (bateria), o Dentaduro
faz esta sua estreia apresentando oito temas captados em fevereiro de 2018 no
estúdio Fábrica de Sonhos (SP). Se à primeira vista, por sua formação, o Dentaduro remete a um trio
como o "Sun Roons", sua proposta sonora é distinta, parecendo ser menos aberto a solos ou ritmicidades de
linhagem propriamente jazzística. Sua música se compõe de uma interação precisa
e necessária entre os três instrumentistas, criando climas que ora destacam um
elemento (como o pulso repetitivo e percussivo de baixo e bateria em
"Déspota Esclarecido") ora outro (como a melodia quase dançante do
vibrafone em "Curte-Curte"). A grande variação de duração das peças,
que vão de um a dez minutos, aponta para uma concepção sonora na qual o que vale
é o tempo preciso para se desenvolver as
ideias propostas, evitando devaneios desnecessários. O processo "em
crescendo" que marca "Sus(surro)", por exemplo, com a bateria quase
marcial acelerando a cada virada, enquanto o vibrafone passeia sem
necessariamente acompanhar a pulsação cada vez mais intensa, chega a seu pico
exatamente no 1m45 que faz a peça. No outro extremo está "Pai Amiga",
na qual a construção se faz de forma mais dilatada, com as ideias surgindo e
sendo concluídas (ou dando espaço a outras) sem pressa, como em um apanhado
geral das propostas exploradas pelo trio.
Conduction BR#5 ****(*)
SPIO
Sê-lo
Um dos projetos mais interessantes em atividade na cena local, a SPIO
(São Paulo Improvisadores em Orquestra) editou este seu primeiro registro
oficial no fim do ano passado. Fruto de uma gravação ao vivo realizada em
agosto de 2017, "Conduction BR#5" mostra a inventividade
improvisatória deste extenso grupo marcado pela mutação de seus integrantes e,
consequentemente, do que apresentam a cada vez em que se reúnem. Aqui, uma
orquestra de 14 músicos é conduzida por Guilherme Peluci (tendo por base a teoria
desenvolvida por Lawrence Butch Morris em seu trabalho "The Art of
Conduction"), saindo deste encontro as quatro faixas reunidas no álbum.
Tendo alguns dos principais nomes da cena free contemporânea nacional, o
resultado é bastante empolgante, com momentos de muita vibração. Na linha de frente
estão Romulo Alexis e Amilcar Rodrigues (trompetes), Richard Fermino (clarinete-baixo,
flauta), João Ciriaco (contrabaixo), Natacha Maurer (ruídos) e Daniel Carrera
(trombone, que tem assumido o comando da SPIO nos últimos tempos). Vale
destacar a participação do experiente pianista Benjamim Taubikin que, por não
lidar propriamente com a improvisação livre em seu trabalho cotidiano, traz uma
percepção diferentes das possibilidades improvisatórias (além de ser um excelente
pianista, toca um instrumento do qual a nossa cena free carece - e muito!), acrescentando
um colorido distinto ao material, como mostra logo na abertura de "Tríptico
I", com uma melodia sutilmente melancólica, à qual os outros instrumentos vão
se agregando aos poucos, focando a coletividade do conjunto. As três primeiras
peças, "Tríptico I, II e III", podem ser encaradas como uma pequena
suíte, feita para ser ouvida integralmente, com as três partes dialogando diretamente,
tanto em suas sutilezas harmônicas quanto nos momentos de maior destaque
solista de um ou outro instrumento, como Firmino ao clarone em "II".
Já a última peça, "Eric não Morreu", soa como um bis, sendo a mais
curta e talvez a mais intensa do conjunto, com as ideias da SPIO trabalhadas de
forma mais compacta e direta. Participam
também da gravação Filipe Nader e Rafael
Cab (saxes), Martin Herraiz e Daniel Mendes (guitarras), Rafael Ramalhoso (violoncelo),
Edu Varallo (vibrafone), Jorge Amorim (bateria) e Daniel Puerto Rico
(percussão).
Aluê ****(*)
Airto Moreira
Selo Sesc
Este último registro de Airto Moreira tem muitas particularidades. Tendo trocado o Brasil pelos Estados Unidos no fim dos anos 1960, para nunca mais retornar definitivamente, Airto nunca tinha gravado um disco seu em território nacional - apenas fez isso com grupos dos quais participava em seus primeiros tempos, como o Quarteto Novo e o Sambalanço Trio. Captado em novembro de 2016 no Estúdio Gargolândia, em Alambari, interior de São Paulo, Aluê marca o retorno do mais internacional e reconhecido percussionista brasileiro ao país. A seu lado na empreitada estão: Vítor Alcântara (saxes tenor e soprano, flauta), Sizão Machado (baixos acústico e elétrico), Fabio Leandro (piano e teclados), João Neto (violão e guitarras), Diana Purim (voz) e Carlos Ezequiel (bateria). Com oito temas, Aluê soa bastante fresco e atemporal: a deliciosa faixa-título, por exemplo, poderia estar em algum de seus melhores trabalhos da década de 1970. O que o disco traz é música brasileira feita por alguém que esteve ligado ao melhor do jazz fusion, com Airto, no alto de seus 76 anos, soando muito solto e inventivo, explorando a percussão em suas múltiplas possibilidades (ouça a bela introdução de "Rosa Negra", uma das melhores do conjunto), além de tocar bateria em um tema ("Aluê"). Importante destacar a participação de Vítor Alcântara, muito seguro e inventivo, quer seja na flauta (como em "Misturada") quer seja nos saxes. O melhor momento de Airto nos anos 2000.
Onírico ****
Moksha Trio
Moksha Trio
Independente
O Moksha Trio chamou bastante atenção quando lançou seu disco de
estreia, "Introspection", uma década atrás. Depois andaram meio
sumidos, mas nunca deixaram de tocar o projeto. O trio original sofreu uma
mudança no meio do caminho, com a troca de Felipe Alves por Anibal Garcia no
baixo; mas o núcleo se mantém com Gilberto Ferri (piano) e Lauro Lellis
(bateria). Captado em 2014, Onírico dá continuidade à empolgante proposta do
primeiro álbum, de apresentar temas instrumentais com “elementos oriundos do
jazz e da música erudita contemporânea, tendo como suporte estruturas rítmicas
afro-brasileiras”, como explicavam quando surgiram. O disco é composto por seis
novos temas (e mais dois bônus), sendo que o CD é acompanhado ainda por um DVD
ao vivo. A faixa-título abre o conjunto e bem sintetiza o Moksha Trio, com uma
música que extrapola o que se convencionou chamar de instrumental brasileiro,
bebendo bastante no universo jazzístico contemporâneo, com muita liberdade
improvisativa e tendo no inventivo piano de Ferri um de seus pontos centrais de
apoio e ideias. Já a inventiva bateria de Lellis tem seu melhor momento em
"In Música", com um pulso
potente e uma pegada quebradiça vibrando no corpo do ouvinte. O trio voltou ao
estúdio no ano passado, mas saiu de lá apenas com uma seleção de revisitações a
temas da música brasileira (sob o
duvidoso título "Brazilian Jazz"), se afastando de seu
principal diferencial e marca mais forte. Esperamos que voltem ao rumo de onde
extraem seu melhor.
The First! ***(*)
Lilian Carmona
Selo Sesc
Com 45 anos de carreira, a pioneira baterista brasileira Lilian Carmona
ganha apenas agora a oportunidade de editar um disco como líder. Não à toa, o
título escolhido para o especial registro foi The First. Carmona revisita aqui 10 temas de
compositores importantes em sua trajetória, com quem trabalhou nesse seu longo
tempo em atividade. Para a empreitada, convocou um extenso grupo, com um amplo
naipe de sopros. Juntam-se à bateria de Carmona: Paulo Jordão (trompete),
Maycon Mesquita (trompete), Chiquinho de Almeida (flauta e sax tenor), Valdir
Ferreira (trombone), Jorginho Neto (trombone), Daniel D'Alcântara (flugelhorn),
Mauricio de Souza (sax alto e flauta), Bruno Alves (piano), Rodrigo de Oliveira
(baixo) e Marcos Pedro (guitarra e violão). Há na seleção temas pinçados de
Eliane Elias ("Barefoot"), Toninha Horta ("Aquelas Coisas
Todas"), Débora e Dani Gurgel ("Dá Licença"), dentre outros
nomes conhecidos da música nacional. Tudo é muito equilibrado, com arranjos bem
conduzidos, nenhuma nota fora do lugar. Mas talvez falte um pouco de risco, de
faísca...
Brazen Wolf ****
Castro/ Los Santos/ Hill/ Rex
ASREC
Este álbum marca o encontro de músicos brasileiros e britânicos que
resultou em um interessante quarteto. Formado por André de Castro (clarinete,
piri coreano, drones), Leandro De Los Santos (baixo, harpa de metal, drones e
ancinho), Timothy Hill (sax barítono) e
Wayne Rex (bateria), o grupo apresenta três improvisações livres -
infelizmente não é indicado quando e onde foi realizado o registro, mas provavelmente em Porto Alegre,
de onde vem Castro, Santos e o selo ASREC, de Al Sand. O disco começa bastante
climático, com "Howling Lakes of Lakota" em meio a ruídos e sax, como
que em uma introdução, acompanhados logo pela bateria e o clarinete, criando
uma atmosfera soturna que envolve rapidamente os ouvintes e vai crescendo em
densidade. "Carpathian Killing Fields" mantém o esquema, mas
especialmente com o rumo tomado pelos sopros (na realidade, eles estão algo
mais profundos, algo mais contidos), pois Rex leva sua bateria a outras
possibilidades, agora com uma ritmicidade mais marcada, acompanhado por uma
linha de baixo bem definida; os dois sopros dialogam sem embates, entrando ora
um, ora os dois em cena, tudo com muito equilíbrio. Em "Bergmann's
Rule", que fecha o disco, Rex parece ainda mais solto, sendo acompanhado
logo pelos dois sopros, com o clarinete assumindo o primeiro plano em solo de
Castro entrecortado pontualmente pelas intervenções de Hill, que vão crescendo
até termos os dois duelando pelo espaço. O nome do grupo vem dos dois projetos/duos
que unem os britânicos ("Brazen Head") e os brasileiros ("Quinta
do Lobo").
Lenho ****(*)
Honorável Harakiri
Mansarda Records
Passados alguns anos desde que surgiu com sua energy music sem
concessões, o trio Honorável Harakiri, de Porto Alegre, lança mais um título. O
terceiro álbum do grupo formado por Diego Dias (sopros), Marcio Moraes
(guitarra) e Michel Munhoz (bateria) é considerado por eles como uma
"sessão perdida". O registro, realizado em março de 2016 no Musitek
Estúdio, na capital gaúcha, foi considerado por eles insatisfatório por
diferentes motivos e acabou arquivado e esquecido. Mas agora ele é desenterrado
para satisfação de quem havia se empolgado com seus dois discos anteriores
("Honorável Harakiri" e "Os surdos herdarão a terra",
ambos de 2013). Em sete temas, o trio
apresenta sua música de elevada tensão e ruidosidade. "Entalhe" abre
o álbum em movimento aceleradíssimo, com Dias e Moraes como se estivessem em
uma disputa de ataque-resposta, até a guitarra abrir espaço para o sopro (após
pouco mais de 1 minuto) e, na sequência, o sopro ceder às cordas o primeiro
plano, antes de voltarem a duelar. A mais curta "Farpa", na
sequência, traz um esquema diferente, com Dias centrando a peça, atravessando-a
de ponta a ponta. Já "Tora", a terceira faixa, é a mais potente, com
o sax e a guitarra em solos enérgicos, de picos explosivos. Com mais este
título, o Honorável Harakiri marca bem seu lugar na cena free nacional,
com sonoridade e ideias bastante intensas.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de
Ivo Perelman (Leo Records)