CRÍTICAs Um breve
passeio pela free music gestada por latino-americanos de diferentes partes
desse nosso canto no mundo...
Por Fabricio Vieira
Desde o pioneiro argentino Leandro Gato Barbieri (1932-2016), que caiu no mundo na década de 1960 para desenvolver seu próprio free jazz repleto de elementos latino-americanos, músicos de diferentes países da nossa região surgiram (e surgem!) interessados em criar e levar a música livre adiante.
Há cenas locais
dedicadas à free music já reconhecidas no exterior, a destacar a
da Argentina; há outras que pouco conseguimos ter acesso, mesmo que vozes
pulsem inevitavelmente. Fato é que existem artistas ligados ao free jazz e à
improvisação livre em diferentes cantos da América Latina, mas que,
infelizmente, muitas vezes tocam somente para seus pares. Olhando para figuras um
pouco mais conhecidas e outras que podem ser verdadeiras novidades, destacamos
aqui músicos de diferentes países que têm ajudado a fomentar a free music em pontos diversos da América Latina. Selecionamos discos relativamente novos de
nomes (um ou dois por país, como forma de mostrar que o free está vivo e presente
em muitas paradas) de diferentes lugares.
Alguns deles partiram de suas terras em busca de possibilidades de expandir sua arte; outros ficaram em seus países, mesmo com as restrições que isso impõe. Mas o mais importante, no fundo, é continuarem a criar sua música, a viver por aquilo que os move. Com tantos sons na vizinhança, o que falta mesmo é uma integração latino-americana... Free the Jazz!
Alguns deles partiram de suas terras em busca de possibilidades de expandir sua arte; outros ficaram em seus países, mesmo com as restrições que isso impõe. Mas o mais importante, no fundo, é continuarem a criar sua música, a viver por aquilo que os move. Com tantos sons na vizinhança, o que falta mesmo é uma integração latino-americana... Free the Jazz!
* CHILE *
Luis Toto Alvarez/ Edén Carrasco/ Martín Escalante
Ñaca Ñaca
Sploosh Records
Este explosivo registro reúne dois dos nomes centrais da free music do
Chile: Luis Toto Alvarez (guitarra) e Edén Carrasco (sax tenor). A eles se
junta o sax alto de Martín Escalante, natural de Los Angeles, mas que passou
grande parte da vida no México, estando sempre dividindo parcerias com músicos
da América Latina. Toto Alvarez desenvolve um importante trabalho de divulgação
e desenvolvimento da música livre em seu país há quase duas décadas, tendo
criado em 2001 o selo Acefalo Records e comandado festivais e apresentações de
free music nesse tempo. Também tem firmado parcerias com músicos de outras
paradas latino-americanas, como os argentinos Cecilia Quinteros e Leonel
Kaplan. Este Ñaca Ñaca foi registrado ao vivo no Bob Rose, em Valparaíso (terra de
Toto e Carrasco), em setembro de 2014. Distribuído em vinil limitado (250
cópias numeradas, 45 rpm), o álbum é composto apenas por um tema de cada lado.
A faixa-título mostra cerca de nove minutos de sopros faiscantes, que deslizam
sobre ruidosas intervenções da guitarra, em um processo que adentra a esfera
noise, em improvisos rascantes e de alta tensão. No lado B, “Mina Evangelista”
traz mais 11 minutos de elevada ruidagem, com o tenor abrindo os trabalhos como
que chamando os outros, que em instantes se juntam e esquentam nossos tímpanos.
Furioso encontro.
Felipe Araya
Solo: Cajón
Independente
Percussionista nascido em Santiago, Felipe Araya tem desenvolvido um pulsante projeto de estudos do cajón peruano (afora a bateria, seu instrumento base), com o qual tem criado verdadeiras investigações de possibilidades sonoras. Trabalhando com artistas de seu país (como o saxofonista Edén Carrasco, com quem tem o trio Fuerza Labor, e o trompetista Benjamín Vergara), mantém também parcerias estrangeiras, sendo a principal o duo Réplica, ao lado da trompetista alemã Birgit Ulher. Ativo na bateria e na percussão pelo menos desde 1998, passou a centrar suas investigações no "cajón" há cerca de uma década. Esse trabalho é bem apresentado no álbum Solo: Cajón, captado em 2013 e que mostra suas inquietantes explorações, que podem ir de ruídos mínimos a pancadas ásperas, de passagens de sons ininterruptos a períodos entrecortados por quase silêncios, em um processo que cria estranhas texturas e desconcertantes possibilidades.
* PERU *
Manongo Mujica
Huaca Sonora
Independente
Este é o cume do trabalho do percussionista Manongo Mujica, pioneiro da
free improvisation no Peru. Em atividade desde os anos 70, Mujica fez parte do
seminal grupo "Perujazz", que ainda na década de 80 criou fama ao unir o
jazz contemporâneo a elementos musicais peruanos. Neste Huaca Sonora, o percussionista apresenta sua
obra em evolução, reunindo um conjunto de sete CDs e dois DVDs, captados em
diferentes momentos de sua carreira, desde meados dos anos 90, englobando mais
de duas décadas de pesquisa sonora na qual apresenta sua concepção de free
impro ritualístico, repleto de elementos, sonoros e espirituais, da cultura
popular. Vale destacar a explicação que acompanha o trabalho: “Huaca quiere
decir cosa sagrada. La huaca es un objeto, fenómeno, lugar o ser en la cual se
han concentrado las fuerzas de lo sagrado”. Nesta retrospectiva de sua arte, há
discos solistas ("Ceremonia para Nadie", onde ele explora elementos
percussivos de África, Índia e Austrália) e outros com parceiros, que podem ir
de duos com piano – como "Poemas Instantáneos", ao lado de Martin
Joseph, ou "Aeolico", com Mariano Zuzunaga – a trabalhos com sopros,
cordas, voz e percussão (como "Zona Neblina" e "Autorretrato
Sonoro"). Uma longa e instigante viagem pela inventiva história deste
artista infelizmente pouco conhecido por aqui.
* CUBA *
Aruán Ortiz
Cub(an)ism
Cub(an)ism
Intakt Records
O pianista cubano Aruán Ortiz é o nome mais conhecido desta lista
latino-americana. Tendo já trabalhado ao lado de Wadada Leo Smith, Chad Taylor,
Gerald Cleaver, Nicole Mitchell, quem se interessa por free jazz deve tê-lo
ouvido por aí. Nascido em 1973 em Santiago de Cuba, vive hoje no Brooklyn
nova-iorquino e tem cada vez mais direcionado seus interesses à free music. Ele
gravou pela primeira vez ainda nos anos 90, quando se mudou para a Espanha para
prosseguir com sua formação pianística. Mas passou a aparecer mesmo apenas em
meados dos anos 2000, quando já estava em Nova York, em meio a incursões por variadas
vias jazzísticas. Nesse percurso, inegável a importância do ano de 2006, momento
em que tocava com o trio de Esperanza Spaulding, quando ela era mais ligada ao
jazz, participando de seu elogiado álbum “Junjo”. Daí começaria a desenvolver
de forma mais centrada sua própria música e a ter sua voz crescentemente ouvida.
Seu álbum “Cub(an)ism”, lançado no ano passado pela Intakt Records, é um belo
exemplar do atual ponto da carreira deste vigoroso e inventivo pianista.
Registro em piano solo, “Cub(an)ism”
mostra um Ortiz no auge da maturidade e da inventividade, apresentado uma sonoridade
própria e muito livre, mas sem ignorar suas raízes cubanas e seus estudos na música
erudita. "Louverture Op1 (Château de Joux)" abre o álbum de forma
contundente, difícil escapar ileso e não querer prosseguir nessa descoberta.
* ARGENTINA *
Haiti
Haiti
Independente
Haiti é um potente trio de improvisação livre de Buenos Aires formado
por Cecilia Quinteros (violoncelo), Sergio Merce (sax tenor) e Marcelo von
Schultz (bateria). Essa formação em trio com um violoncelo no lugar do baixo tem
gerado destacados projetos em tempos recentes (como o Motion Trio e o
Ballister), e o Haiti mostra com este trabalho que deve ser juntado a tal lista
de revelações. Cecilia Quinteros, que esteve no Brasil para o FIME
2015, tem desenvolvido um trabalho cada vez mais sólido e sua voz é vital neste
projeto (quem quiser entender o porquê, vá direto ao minuto cinco do segundo
tema e verá as assombrosas camadas de densidade criadas por ela; ao vivo deve
vibrar nos ossos!). Com a firmeza e inventividade mostradas também por Merce e
von Schultz, o Haiti se revela nesta estreia como um projeto pronto para estar
em qualquer palco dedicado à free music, seja onde for. Os quatro temas
apresentados no álbum se chamam “Region” (1, 2 etc.) e formam um conjunto uno,
uma longa peça dividida em quatro seções. Mas o núcleo do álbum é “Region 3”, a
mais extensa com seus 21 minutos e a peça na qual os músicos não só têm mais
folga para desenvolver suas ideias improvisativas como para exibir a elevada
comunicação que caracteriza o trio, além dos momentos mais ariscos e
explosivos. A unidade do trio é “invadida”, mas sem choques, em dois dos temas
registrados que contam com a participação do suíço Christoph Gallio (saxes
alto e soprano), que estava de passagem pela Argentina quando a gravação
ocorreu. O registro foi feito em abril de 2017, no Estudio Libres (BsAs), e é
obrigatório para quem quiser conhecer um pouco mais da cena free argentina.
Roi Maziaz
Xaxaxaxax
Adaptador Records
O saxofonista Roi Maziaz tem desenvolvido sua música distante da capital argentina, onde está o núcleo da free music do país. É em San Luis que Maziaz tem reunido seus grupos e criado seus esteticamente variados projetos, com algumas dezenas de títulos já editados. Além de saxofonista, ele também toca guitarra e piano, sendo um verdadeiro adepto da cultura DIY. Nesta gravação realizada em fevereiro de 2017, Maziaz, que toca saxes barítono e soprano, clarinete baixo e piano, é acompanhado por Yon Manuell (baixo), Emilius Bertha (percussão) e Nando Csiama (teclados) para explorar seis novos temas. O som apresentado, de um modo geral, é um pouco mais contido, diferente da energy music que marca boa parte da produção de Maziaz – isso fica bem marcado em temas como “Santos-Locos” e “Gnitaheidr”. A versão mais pulsante do instrumentista aparece na faixa-título, com o baixo em ondulante linha entrecortada pelo sopro crescentemente arisco.
* URUGUAI *
Alvaro Rosso (Basso 3)
Meia Catorze
Pássaro Vago
Da pequena e sempre agradável Montevidéu vem um baixista que tem se
destacado nesses tempos na intensa cena portuguesa: Alvaro Rosso. Vindo da
capital do Uruguai, Rosso primeiramente estudou baixo na Escuela Universitaria
de Musica de Montevideo. Formado, decidiu aprofundar seu conhecimento técnico
do instrumento na Europa, a partir de 2006, chegando primeiro à França – onde
se aproximou mais intensamente da improvisação livre –, indo depois para a
Espanha fazer mestrado e, finalmente, desembarcando em Portugal. Vivendo em
Lisboa há alguns anos, tem tocado com importantes instrumentistas locais, em
projetos de variados enfoques, que o levaram a participar de vários discos, a
maioria editado pelo selo Creative Sources.
É membro do Lisbon String Trio, ao lado de Ernesto Rodrigues e Miguel
Mira, tendo também já gravado com Carlos Zíngaro, Blaise Siwula e a Variable
Geometry Orchestra. Rosso aparece neste "Basso 3" junto a dois outros
contrabaixistas (como sinaliza o nome do grupo), os portugueses José Miguel
Pereira e Miguel Campos. Os três criam música de alta categoria, feita para ser
ouvida com atenção aos detalhes e à rica harmonia, desenvolvida em seis temas
de colorações variadas. Já muito integrado à cena portuguesa, Rosso é uma voz que
encontrou seu espaço na Europa e será muito bom se gerar (já estaria?) ecos em sua
terra natal.
* COLÔMBIA *
Duo Brutus
Libre de Soya
MitHFotU Records
Grupo colombiano formado por Jairo Rodriguez (sax alto) e Santiago de Mendoza
(bateria), o Duo Brutus retoma esse clássico formato do free em um encontro por
vezes bem intenso. Rodriguez também é baixista (curiosamente tendo feito
mestrado em música focado em baixo elétrico no jazz), mas não traz esta sua
faceta ao Duo Brutus. Em atividade, ao que parece, há quase uma década (não há
muitas informações por aí), o duo colombiano parece ter apenas este álbum,
registrado em 2015 no Ahum Studio (Bogotá). Há vídeos de outras sessões,
inclusive com a adição de outros parceiros, como uma curiosa participação de Sebastian
Rozo no eufônio. Libre de Soya tem nuances variadas, sendo a intensa “Escaleras
& Toboganes” o melhor cartão de visitas ao duo. “Para Albert”,
provavelmente uma homenagem ao mítico saxofonista, já é mais melancólica, com algo que
remete até a uma marcha fúnebre. “Siglo XXII” tem um clima diferente, com Rodriguez
tirando sons também de um sintetizador, que dão um outro tom ao duo. O disco
fecha com a faixa-título, de forma quase relaxada, nos afastando dos momentos
mais ariscos do duo. Um projeto interessante que vai além da energy music que
bem caracteriza muito da música criada neste formato.
Pacho Dávila
Invisible Fire Multitongues
Independente
* MÉXICO *
Germán Bringas
Tank Tromp
Jazzorca Records
O saxofonista Germán Bringas (Cuidad de México, 1965) é um dos nomes
centrais da cena free jazzística mexicana. E não apenas por seu trabalho como
músico: Bringas está por trás do café
Jazzorca, pico onde acontecem apresentações de free music desde os anos
90, sendo também criador do selo Jazzorca Records, responsável pela edição de
algumas dezenas de títulos de free, com destaque para músicos locais. Bringas,
em atividade desde os anos 80, tem levado sua música para além fronteiras, com
sua trajetória trazendo parcerias com Evan Parker, Chris Corsano, Akira Sakata,
dentre outros. Seu projeto mais conhecido é o Zero Point, trio que conduz ao
lado do baixista também mexicano Itzam Cano e do baterista suíço Gabriel Lauber, com
quem editou na Europa o álbum "Plays Albert Ayler" (2006), pelo selo Ayler
Records, sendo um grupo no qual a herança free jazzística é basilar. Tank
Tromp, projeto originalmente registrado em 2009, é uma investida solo de
Bringas na qual, além do sax, toca trompete e objetos percussivos desenvolvidos
por ele, como o criado a partir de botijões de gás. O registro foi feito em uma
ponte, sendo que sons da cidade acabam se integrando às
composições. Bringas é uma figura fundamental não só em seu país, mas na cena
free latino-americana como um todo.
Remi Álvarez
Intuición y Resistencia
Lengua de Lava
Lengua de Lava
Na ativa desde os anos 80, o também saxofonista mexicano Remi Álvarez tem em sua trajetória parcerias com grandes baixistas como Mark Dresser (com quem gravou em duo "Soul to Soul"), Joe Fonda e Ingebrit Haker-Flaten, além de ter estudado com Steve Lacy e Evan Parker. Ao lado de German Bringas e da pianista Ana Ruiz, é um dos mais antigos e ativos músicos ligados à improvisação livre em seu país. Dentre os destaques de seu currículo, vale citar que em 2006 participou do Vision Festival, em grupo comandado por Dennis González. Nascido na Cidade do México, Álvarez toca grande parte da família dos saxofones, partindo do tenor e passando por alto, barítono, soprano, além de flauta, instrumento que estudou na universidade. Sua primeira incursão solo é este Intuición y Resistencia, que apareceu em 2015. Com 10 temas, vai de faixas com traços melódicos mais explícitos (como "A la Resistencia") a outros em que explora ruidosidades improvisatórias mais extremas, como nas seis partes chamadas "Intuición".
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente
escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para
os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)