A ARTE MÚLTIPLA DE MATTHEW SHIPP







CRÍTICAs  O pianista Matthew Shipp chega com cinco diferentes lançamentos, em formatos variados, mostrando um pouco da amplitude e intensidade de sua arte pianística...









Por Fabricio Vieira

Desde os anos 1990, Matthew Shipp vem sedimentando seu nome como um dos grandes pianistas de sua geração. Hoje, aos 57 anos, com dezenas de álbuns editados e variados geniais projetos em sua trajetória, o pianista nascido em Wilmington (Delaware) e radicado em Nova York se firma como figura central de seu instrumento. Poderíamos dizer mais: com a morte do mito Cecil Taylor, Shipp pode começar a ser citado, sem exagero, como o mais importante pianista da free music em atividade. Uma série de novos discos lançados, em solo, duo, trio e quarteto, com colaboradores de diferentes épocas, vem atestar a grandeza da arte desse fundamental músico. Ao vivo ou em estúdio, Shipp tem feito sua conexão com o cosmos, de onde vem e para onde vão suas ideias ("Sou um pianista cósmico", já disse em entrevista). Nós, brasileiros, tivemos a oportunidade de vê-lo em ação no palco e presenciar um pouco da magia que é sua música nascendo: em 2010 e 2013, como parte do quarteto de Ivo Perelman; e em 2016, em irretocável apresentação solo.
Um ano atrás, Shipp afirmou à Village Voice que iria parar de gravar e se concentrar nos palcos, que faltava apenas algumas pendências com a ESP-Disk e a Rogue Art - exatamente de onde vem alguns dos lançamentos de agora. O pianista já tinha dito em outra oportunidade que deixaria de lançar discos, o que até o momento, para nosso alívio, não aconteceu. É claro que continuamos torcendo para que isso seja falado apenas de impulso em um momento de esgotamento ou desilusão: Shipp, a cada novo registro, mostra que ainda tem muito de relevante a nos dizer. Que venham muitos mais álbuns...





Accelerated Projection  ****(*) 
Matthew Shipp/ Roscoe Mitchell
Rogue Art
O formato de duo de piano e saxofone é um dos prediletos de Matthew Shipp. E foi  exatamente com Roscoe Mitchell que ele fez um de seus primeiros registros dessa forma, "2-Z", lançado em 1996. Os dois geniais artistas retomam esta parceria com Accelerated Projection. Na realidade, a gravação é um registro relativamente antigo, apesar de inédito até então, tendo sido feito ao vivo em agosto de 2005 em Sant'Anna Arresi, na Itália. São sete improvisações livres, chamadas todas de "Accelerated Projection". Mitchell explora os saxes alto e soprano, além de flautas. Em "Accelerated Projection I", o sax alto é quem dá as cartas, com  Mitchell mergulhando logo em um solo sobre as notas em crescendo de Shipp, que assume a sequência ("II") sozinho por seus 2m22. Mitchell retorna em "III" novamente ao sax alto, com a dupla elevando a potência no minuto final da peça; "IV" já começa em alta voltagem, de um ponto onde a anterior terminou, levando, especialmente com o faiscante solo de Mitchell, os ouvidos a outras alturas. Em "V" os músicos dão um respiro, baixando o tom e adicionando a flauta, levando-nos por caminhos mais contemplativos. "VI" abre com Shipp tocando notas esparsas, mas quase percussivas entre pausas que vão sendo gradualmente tomadas pelo soprano, que entra no jogo como que ecoando as pegadas das teclas; esse esquema se mantém pelo menos durante três minutos, até que Shipp adentra novos territórios e o diálogo com o sax ganha mais ímpeto. Já "VII" é a que permite ouvirmos de forma mais centrada o piano, com Shipp dominando os minutos iniciais do tema, que tem Mitchell novamente ao alto e traz alguns dos momentos mais delicados do encontro.    







Oneness  ****(*)
Matthew Shipp/ Ivo Perelman
Leo Records
É ao lado do sax de Ivo Perelman que Matthew Shipp mais tem produzido em anos recentes. Essa parceria teve seu primeiro capítulo com a edição de "Bendito of Santa Cruz", em 1997, mas passou vários anos silenciada, para ganhar novo fôlego a partir de 2010. Desde então, Perelman e Shipp têm criado uma série de importantes registros (a destacar "Callas" e "Corpo"), levando ao limite as possibilidades do diálogo entre eles. Ou melhor: testando limites, já que este novo Oneness mostra que o duo ainda tem muito a dizer. Álbum triplo, Oneness foi registrado em setembro de 2017 durante cinco sessões no Parkwest Studios (NY), entre uma segunda e uma sexta-feira, e apresenta um resultado muito distinto do encontro de Shipp com Roscoe Mitchell. E não apenas por Perelman e Mitchell serem saxofonistas de propostas bastante diversas: Shipp soa diferente ao lado de um ou de outro. Apesar das grandes variações exploratórias que emanam de Oneness, a sonoridade é marcada pela coesão, sendo um grande painel que parece ter sido captado sem interrupções - se houve uma quebra entre as sessões, o fluxo de ideias se manteve uno pelos cinco dias de gravação. Os 33 temas apresentados não têm títulos, sendo chamados de "Part 1", "Part 2" e assim sucessivamente a cada CD, opção que potencializa a ideia de uma obra una dividida em vários segmentos. Para quem tem acompanhado o desenvolvimento do som da dupla nos últimos anos, esta é uma oportunidade de vê-los em um tour de force improvisativo, uma investigação ampla e profunda das possibilidades de um duo de sax e piano.     





Sonic Fiction  **** 
Matthew Shipp Quartet
ESP-Disk
Matthew Shipp aparece aqui em quarteto, ao lado de dois antigos parceiros, Michael Bisio (baixo) e Whit Dickey (bateria), e um mais recente, o saxofonista polonês Mat Walerian. Shipp começou a tocar com Walerian há poucos anos, mas já gravaram em duo ("Live at Okuden") e em trio (acompanhados por William Parker e Hamid Drake). Walerian, de 33 anos, que toca sax alto, clarinete e clarinete baixo, é muito ligado à filosofia oriental e à cultura japonesa, focos perceptíveis em sua música de pegada que evita picos explosivos e não ignora a relevância dos silêncios. Sonic Fiction foi captado em  dezembro de 2015, no Parkwest Studios (NY), sendo o trio de Shipp à época com a adição do saxofonista. O disco começa muito relaxado ("First Step"), com Walerian tirando algo quase bluesy de seu sax e Shipp o acompanhando em densas notas espaçadas que pegam em cheio nossos sentidos, com uma quase melodia se formando e se perdendo no espaço, preenchido por tons metálicos, com Dickey conduzindo os pratos como só ele sabe fazer. A sensação se mantém no segundo tema, que se chama, não por acaso, "Blues Addition", mas aqui com o piano cantarolando logo de início e nos levando a algo mais swingante acompanhado pelo clarinete. Já "Lines of Energy" é, como indica o título, a mais vibrante; mesmo que não faiscante, o sax alto de Walerian responde com maior intensidade, dando uma pegada mais firme à peça. À sequência vem uma peça de piano solo ("Easy Flow"), antes de Bisio assumir o centro com uma breve introdução solo de baixo abrindo "The Problem of Jazz", cortado momentaneamente por sopro e bateria, esquema repetido algumas vezes em uma interessante dinâmica. "3 by 4" traz novamente Shipp ao primeiro plano, com um longo desenvolvimento apenas em trio. A faixa-título fecha o trabalho, uma vez mais iniciando em tom contido; sendo a mais extensa do conjunto, traz diferentes viradas, ganhando intensidade e entrando em seus minutos finais em uma seara mais marcadamente jazzística. Um agradável registro de um grupo que tão cedo não deve ter um novo capítulo, se considerarmos que Dickey não é mais o baterista do trio do pianista...





Seraphic Light   ***** 
Matthew Shipp/ Daniel Carter/ William Parker
Aum Fidelity
Ainda inédito, este registro vai ser lançado em CD apenas no dia 18 de maio pelo selo Aum Fidelity. Aqui vemos o encontro de três dos mais importantes nomes do free, fundamentais para a estruturação da música livre dos anos 90. Matthew Shipp se uniu a dois antigos parceiros, William Parker (baixo) e Daniel Carter (saxes), no palco do Distler Performance Hall, na Tufts University (Massachusetts), em abril de 2017. Esses geniais instrumentistas já tocaram juntos em diferentes contextos nas últimas três décadas e mostram aqui uma mágica química comunicacional, que se espraia por três extensos temas (Seraphic Light - Part I, II, III), em pouco mais de cinquenta minutos de música. Carter, que toca saxes alto, soprano e tenor, além de clarinete, trompete e flauta, cria uma ampla gama de possibilidades de sopros, ampliando em muito o colorido que poderíamos esperar de um trio com esta formação. Em "Part I", por exemplo, enquanto Shipp e Parker desenvolvem a estrutura por meio da qual a peça vai lentamente se desenvolvendo, Carter surge, em entradas e saídas certeiras, inicialmente com a flauta, depois o trompete (que acende de vez Shipp, que toca de forma percussiva e martelante), indo finalmente para o sax alto (silenciando pela primeira vez o piano, em uma linda passagem baixo-sax), que o leva até o tenso fim, com o baixo já em arco e o piano em robustez crescente.  Só esta peça já valeria o show (ou o CD), mas eles tinham mais a ofertar. "Seraphic Light - Part II" é uma continuação do primeiro tema, com o piano em pulsação aceleradíssima desde o início, sendo respondido pelo sax tenor, que ressoa uma quebradiça melodia que se opõe ao que emana das teclas -Shipp cria aqui uma linha vibratória circular, sem brechas, que entorpece nossos sentidos e nos faz sentir prazerosamente perdidos durante os três minutos iniciais, antes de um martelante tema fazer o corpo vibrar. O profundo lirismo de Carter se contrapõe a um Shipp com uma robustez que não temos visto muito nos últimos tempos. O que o trio apresenta aqui é um pouco do que de melhor a música livre pode nos oferecer.    

  


Zero  ***** 
Mathew Shipp
ESP-Disk
A arte solística de Mathew Shipp ganha mais este capítulo fundamental. Desde seu primeiro título no formato, “Symbol Systens”, de 1995, Shipp já gravou mais de dez álbuns de piano solo, com diferentes itens obrigatórios (como "One" e "Piano Sutras") em qualquer discoteca. Dentro de sua obra, esses trabalhos formam um universo próprio, um microcosmo que contempla mais de duas décadas de música e em que sua estética é levada a seus extremos, em uma viagem que merece ser (re)feita por quem acompanha a música criativa contemporânea. Esse conjunto de piano solo pode ser associado a uma herança mais ampla que as vias "free" e "jazzística". As mais de 80 peças suas feitas para/em piano solo compõem um conjunto muito particular e próprio, que poderíamos alinhar aos "Impromptus" de Franz Schubert, às "Gymnopédies" e "Gnossiennes" de Erik Satie ou o "Mikrokosmos" de Béla Bartók. Zero é um dos pontos elevados desse processo, que aprofunda as propostas do músico e nos revela caminhos novos nesse percurso. Formado por 11 peças, "Zero" foi captado em maio de 2017 e traz temas relativamente curtos, oscilando entre pouco mais de 1 e 6 minutos, mantendo uma característica presente especialmente em seus discos solistas de estúdio. Logo no segundo tema, "Abyss before zero", nos deparamos com aqueles momentos iluminados raros, com o tom satineano, uma das marcas de sua arte, muito presente em um simples circular tema por onde a peça gira e se constrói; beleza tocante. Em meio a propostas diversas, passamos pela atmosfera religiosa de "Cosmic Sea", o ataque seco e acelerado de "Zero Skip and a Jump" e o lirismo sutilmente melancólico que abre "Zero Substract from Jazz". As 800 primeiras cópias trazem um CD bônus com cerca de uma hora de uma fala/discurso poético de  Shipp ("Zero: a lecture on nothingness") captada no The Stone.   







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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)