PLAY IT AGAIN... (ainda 2017)






LANÇAMENTOS  2017 já acabou, mas vale ainda destacar alguns lançamentos do ano passado que ficaram para trás e não podem deixar de ser apresentados e conhecidos...







Por Fabricio Vieira



Free Reservoir  ****(*)
Simon Nabatov/ Max Johnson/ Michael Sarin
Leo Records
O pianista russo Simon Nabatov aparece aqui em trio ao lado do baixista Max Johnson e do baterista Michael Sarin para mostrar cinco temas próprios. A música criada por esse grupo novo do experiente pianista tem momentos de grande impacto. A extensa faixa-título, com seus mais de 15 minutos, é verdadeiramente intensa, com um final explosivo. Já “Slow Droplets” opta por uma via mais intimista, minimalista quase, com o piano em toques pontilhistas que demandam atenção diferente – o mesmo ocorre na entrada de “Tap Dance Inferno”, que ganha mais corpo com seu desenrolar. “Short Story Long”, que encerra o trabalho, é também a mais complexa. Com seus mais de 17 minutos, abre envolta em uma atmosfera quase religiosa, com toques espaçados na percussão metálica (como um gongo chamando para o início de um culto oriental) e um arco crescente em robustez, sem pressa pelas cordas do baixo; o piano chega já passados dois minutos e vai assumindo o primeiro plano, em uma viagem envolvente, adentrando um sabor mais claramente jazzístico, que nos leva sem sobressaltos até o fim do álbum. A adição de Johnson ao trio, uma das revelações recentes do free, é um dos trunfos de Free Reservoir – um dos melhores recentes registros de Nabatov. 






Out of Silence  ****
François Carrier/ Michel Lambert
FMR
Uma das parcerias mais constantes do cenário free atual, o duo canadense formado pelo saxofonista François Carrier e o baterista Michel Lambert volta a editar um título novo. Sempre trabalhando juntos, em diversos formatos, Carrier e Lambert já gravaram em duo em outras oportunidades (ver álbuns como “IO” e “Nada”), colocando em ação seu criativo diálogo. Gravado ao vivo no Ryan’s Bar, Londres, em junho de 2015, Out of Silence traz sete temas, que oscilam de 4 a 15 minutos, mostrando a madura variedade investigativa da dupla. A faixa-título, a mais longa, abre o trabalho com o duo já em elevada tensão. A bateria, com uma pulsação quebradiça, é atacada ainda nos primeiros segundos por um Carrier mais vigoroso, como que se estivesse querendo passar seu recado sem firulas, com o solo se desenvolvendo rapidamente, em linhas múltiplas que se abrem sem rodeios – esta é a faixa síntese e o melhor cartão de visitas ao trabalho da dupla. Carrier é um dos mais interessantes sax alto da atualidade e tem explorado nos últimos anos também o oboé chinês, sempre dedicando alguma peça ao instrumento a cada disco. Aqui, logo aos cinco minutos do primeiro tema o instrumento oriental já entra em ação, com seu som agudo-anasalado criando um diálogo diferente com a bateria, levando-a a batidas mais fortes, tomadas em pouco tempo pelo retorno do sax em ebulição. O tom baixa apenas mais à frente, na mais lírica “Soul Play”, o quarto tema apresentado, em que um Carrier menos enérgico mostra a profundidade que sua voz pode ter – como sabemos de ouvir outros trabalhos. “Happy to You”, uma das mais breves, com menos de 5 minutos, fecha a apresentação resumindo a estética do duo, indo de passagens mais relaxadas a picos explosivos.







Pedro Melo Alves’ Omniae Ensemble  ****(*)
Pedro Melo Alves
Nischo
O jovem baterista português Pedro Melo Alves, 26 anos, surge como uma sólida voz em uma das cenas mais intensas da atualidade. Este seu Omniae Ensemble é um exemplar especialmente rico de sua inventividade como compositor – recebeu por esta criação o Prêmio Bernardo Sassetti (este, um importante pianista do país, morto em 2012), o que permitiu que o disco fosse editado. Comandando um septeto, formado por sax, trompete, trombone, piano, guitarra e baixo, Alves exibe sua inventividade em três longas peças originais, exatamente as que lhe renderam o prêmio – o álbum é complementado com releituras de temas de Sassetti. Um jazz contemporâneo, atento a elementos das searas erudita e popular, que se mostra finamente equilibrado em seu desenvolvimento, tudo no lugar certo em meio a solos precisos e elegantes. “Ubi” abre o disco e nos conduz por 22 minutos de uma música de desenvolvimento complexo e por vezes intrigante, com destaque para o piano de Zé Diogo Martins e o solos do saxofonista José Soares. O piano volta a brilhar em “Phelia” e nos faz pensar no papel central deste instrumento na música apresentada – vale saber que Alves cria suas composições exatamente ao piano, o que talvez o leve, intencionalmente ou não, a conduzir os ouvidos a uma atenção especial ao teclado. Vindo do Porto e vivendo em Lisboa, o músico foi um dos destaques de 2017 com este álbum – e agora deixa todos à espera de seus próximos passos.







Brightbird   *****
João Paulo Esteves da Silva / Franco/ Rohrer
Arjuna Music
Quem teve a oportunidade de ouvir o No Project Trio sabe o que esperar do piano de João Paulo Esteves da Silva. Ao lado do também português Mário Franco (baixo) e do suíço Samuel Rohrer (bateria), Esteves da Silva cria com este novo trio uma música densamente elegante – com um resultado bastante distinto do exibido pelo No Project, apesar de trazer a mesma instrumentação. São 13 temas próprios, captados no fim de 2016, que apresentam um grupo em estado de elevada inspiração, criando uma música particularíssima, mas acessível em sua profundidade. Trabalho coeso, parece ter sido gestado com precisão cirúrgica, onde nada está (ou poderia estar) fora do lugar. E aqui estamos em um universo onde a improvisação é vital. A telepática comunicação do trio faz surgirem preciosidades sonoras que nos levam a um mundo de beleza melancólica, quase gélida por vezes – ao menos assim ecoa pela sala (ou onde o ouvinte estiver). Ao colocar o disco para tocar, sente-se logo de entrada, com “The Fireplace”, o espírito que conduz a obra, com os ouvidos sendo agarrados de pronto aos primeiros acordes que soam ao piano. As variações de intensidade, tanto internas quanto de uma peça a outra, se fazem com gesto certeiro, quase imperceptíveis em meio ao equilíbrio harmônico do trio – mesmo que sejamos levamos do extremo minimalista de “Trusting Heart/Cossmos” à agitação quase swingante de “Waking”. Um disco que mostra o quanto um dos formatos mais explorados do universo jazzístico ainda pode ser surpreendentemente poético e inebriante.







Irreversible Entanglements  *****
Irreversible Entanglements
International Anthem
Uma das surpresas de 2017, o disco de estreia do quinteto Irreversible Entanglements traz ares frescos e de renovação à música livre. Comandado pela poeta e compositora Camae Ayewa (conhecida como Moor Mother), o grupo, formado em 2015, traz sax (Keir Neuringer), trompete (Aquiles Navarro), baixo (Luke Stewart) e bateria (Tcheser Holmes). A princípio, Camae Ayewa, Neuringer e Stewart se juntaram para uma apresentação no evento Musicians Against Police Brutality, convocando depois os outros membros para desenvolverem uma música tendo uma orientação free jazzística, mas atenta a outras possibilidades. A voz em spoken word de Moor Mother é vital para o resultado sonoro alcançado, uma música urbana com muito vigor e intensidade crítico-poética. “Chicago to Texas” abre o registro com uma linha percussiva que introduz um quase lamento ao trompete, por sobre o qual a voz de Ayewa surge em narração profunda, impactante: “Not only do we disappear/ we hang ourselves and come up with other ways to find ourselves murdered/ since the Southern flag came down ain’t nothing left but jails and burning churches...”. O tom se mantém em “Fireworks”, especialmente em sua primeira metade, antes de o diálogo de sax e trompete assumir a cena. Já em “Enough” a temperatura sobe, com ariscos ataques dos sopros logo de entrada, cortados por grito arrepiante que antecede a narrativa. “Projects”, a mais extensa com seus 15 minutos, também é a que apresenta o desenvolvimento mais amplo, com ondulações de intensidade em seu percurso. Feito para ser escutado de forma ininterrupta, o álbum tem apenas quatro temas e pouco mais de 40 minutos, com letras de protesto e reflexão, em que o quarteto de instrumentos soa muitas vezes como um grupo de free jazz clássico, mas transformado pela voz, fundamental para o que o quinteto busca e oferece. É como bem diz o texto de apresentação do quinteto: “The tone of each piece is driven decisively by Ayewa’s searing poetic narrations of Black trauma, survival and power”.






------------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)