CRÍTICAs A big band SPIO
(São Paulo Improvisadores em Orquestra) mostrou em sua última apresentação o
porquê de ser um dos projetos mais interessantes da cena local...
Por Fabricio Vieira
Não é de agora que podemos afirmar que temos uma cena free viva
e intensa, com músicos de diferentes perspectivas, em meio a projetos de
variadas visadas e possibilidades estéticas que brotam da livre improvisação.
Há alguns anos, esse tipo de expressão sonoro-artística vem ganhando espaço e
atraindo músicos e público, mesmo que nunca deixe de ser uma manifestação underground
– e não só aqui, até mesmo nos cantos que vivenciam esta música desde suas
origens há mais de cinco décadas a realidade vai por aí.
Dentre os muitos esforços para manter a free music ativa entre
nós e, mais ainda, levar essa arte adiante, ganha destaque o trabalho que vem
sendo feito pela SPIO (São Paulo Improvisadores em Orquestra). Com suas origens
ligadas ao FIIL (Festival Internacional de Improvisação Livre), que teve
edições em 2010 e 2011 no Centro Cultural São Paulo (CCSP) e deu oportunidade
para músicos locais interagirem e fazerem oficinas com artistas estrangeiros, a
SPIO tem se solidificado em tempos recentes, sendo um marco a edição de seu
primeiro registro pelo netlabel Sê-lo, no fim de 2017. Com formação variável,
reunindo por vezes mais de 20 músicos, a SPIO tem desenvolvido sua sonoridade respaldada
no método “Conduction” (ou “conducted improvisation”), criado pelo cornetista e
compositor Butch Morris (1947-2013), em que um regente guia a improvisação
coletiva criada no palco com gestos direcionados aos músicos indicando ataques,
pausas, alturas, conduzindo sem tirar a espontaneidade característica dessa
arte.
Quem esteve no sábado (dia 27) no espaço Breve, em São Paulo,
pôde presenciar um pouco do que de melhor a SPIO tem oferecido. Com dois
convidados estrangeiros, o britânico Andrew Baker e o italiano Gabriel Rosati,
a vibrante apresentação contou com a participação de 15 músicos – que mereciam
ter levado sua vigorosa música a um público maior. A potente formação contou
com trompetes (Romulo Alexis, Gabriel Rosati), saxes (Andrew Baker, soprano;
Mariana Oliveira, alto), clarinte-baixo (Richard Firmino, que também executou
outros sopros), trombone (Thiago Ornelas), violoncelo (Luis Felipe Lucena),
guitarras (Luiz Galvão, Daniel Mendes), baixo (Alex Dias), bateria (Rafael
Cab), vibrafone (Edu Varallo), teclados (Marcelo Laguna) e voz (Susan Grey). Sob
a regência de Daniel Carrera, o grupo apresentou apenas uma extensa peça, aproximadamente
uma hora de músicia improvisada de altíssima inventividade, indo de momentos quase
líricos a explosões sonoras de alta energia.
A diversidade do grupo fica evidente nas diferentes atuações, com parte dos músicos sendo mais discretos, enquanto outros centralizam a escuta e os olhares do público com suas entradas, solos e improvisos em um nível intensamente mais inventivo e sonoramente mais desafiador – talvez até por sua intimidade maior com a cena free, onde transitam há mais tempo e em contextos múltiplos. Aqui vale destacar a guitarra de Luiz Galvão, que tem desenvolvido um idioma próprio de ruidosidades desconcertantes; o baixo de Alex Dias, que foi outro que trouxe momentos de grande força, sustentando a energia e impulsionando o grupo; na bateria, Rafael Cab mostrou segurança e compreensão total do papel da percussão em uma orquestra como esta, elevando ou baixando o tom (ou mesmo silenciando) de acordo com as variadas oscilações de intensidade grupal que marcaram o concerto. Romulo Alexis é outra voz vital para a SPIO, com sua consciência expressiva e particular vibração trazendo alguns dos momentos centralmente mais inquietantes que vimos (conduziu um dos primeiros e melhores solos da noite).
Já o solo mais faiscante ficou a cargo de Richard Firmino ao
clarinete-baixo. Firmino, que domina (e exibiu) diferentes sopros, teve
momentos iluminados, daqueles que fazem uma apresentação atingir outro nível. Mais
um momento solista de impacto foi conduzido por Baker ao soprano, que teve em
seu final a adição do trompete de Alexis, em diálogo arrepiante. Considerando a proposta da SPIO de explorar sonoridades
múltiplas, a adição da voz de Susan Grey e do violoncelo de Luis Lucena foram
especialmente estimulantes. Susan mostrou bom controle e consciência do papel
da voz em um esquema de improvisação coletiva, enquanto Lucena pontuou vibração
extra quando atacou com precisão as cordas de seu instrumento (não teria sido
nada ruim se tivesse tido participação maior).
O resultado desta última apresentação da SPIO foi bastante
animador. Tocar em eventos com palcos (e públicos) maiores é um importante próximo
passo para a orquestra, que demonstrou estar no rumo certeiro para se tornar
uma referência fundamental da free music brasileira.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente
escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para
os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)