Jazz al Sur: lançamentos argentinos




LANÇAMENTOS  Destaques de álbuns de músicos argentinos editados nos últimos tempos.
Experiências em várias formas. 
Ouça, divulgue, compre os discos.







Por Fabricio Vieira




A veces, la luz de lo que existe resplandece sólamente a la distancia  ****(*)
Camila Nebbia Sexteto
Kuai Music 
Da Argentina, que já apresentou ao mundo da free music Ada Rave, agora vem uma nova saxofonista que merece muita atenção: Camila Nebbia. Amparada por um potente sexteto, Nebbia oferece em seu novo disco (de nome realmente extenso) um trabalho de expressão free jazzística de muita inventividade composicional e improvisativa. São cinco temas (originais, com exceção da revisitação a The Garden of Souls, de Ornette Coleman), em que podemos apreciar frescas ideias, conduzidas por um conjunto formado por outra saxofonista (Ingrid Feniger, que também toca clarinete baixo), violoncelo (Guido Kohn), baixo (Nacho Szulga) e duas baterias (Omar Menendez e Axel Filip). A intensidade produzida por esta interessante formação marca logo a abertura do disco, com o tema “Borrar un recuerdo”, que inicia com o sexteto em uníssono impactante, antes de se diluir em divagações que se abrem aos solos (destaque para a belíssima intervenção de Feniger ao clarinete baixo). Na sequência, a mais contemplativa “Rosa Mutábile” tem no protagonismo das cordas seus momentos de impacto maior (o que volta a ocorrer nos minutos iniciais de “Aferrada a un fragmento de un sueño”); vale destacar aqui também a melancólica melodia conduzida pelos sopros que fecha a peça. Já a releitura de “The Garden of Souls” é bastante intensa, com Nebbia trazendo talvez seu melhor solo. Uma artista a se ficar atento aos próximos passos. 






Otra parte del todo  ***(*)
Juani Mendez
Independente
O saxofonista Juani Mendez apresenta neste seu segundo álbum como líder uma versão totalmente renovada de seu quarteto. Se no disco de estreia, de 2014 (“Diez construcciones fáciles”), seus acompanhantes eram Santiago Leibson, Germán Lamonega e Damián Allegretti, agora entram Ernesto Jodos (piano), Mauricio Dawid (baixo) e Sebastián Groshaus (bateria). Com oito temas, sendo sete de Mendez e o restante uma releitura de Charles Mingus (“Portrait”), o álbum apresenta um pós-bop equilibrado desfiado com competência e precisão. “144 Sterling St.” exibe bem a proposta do quarteto, com muita elegância conduzida pelo swingante tenor, amparado pelo sempre brilhante Jodos. A balada “A las tres” (que tem uma breve introdução, “Preludio a las tres”), com belíssimo solo de baixo, é bastante tocante. Em “Up”, que fecha o álbum, Mendez e Jodos apresentam provavelmente seus melhores solos. Não chega a ser um trabalho surpreendente nem a adentrar a seara free (a herança hard bop é marcante), mas é uma boa amostra do jazz argentino atual.
  





Rerum Novarum  ****
La Corporación
Pan Y Rosas 

La Corporación é um trio radicado em Buenos Aires que apresenta uma música de intrigantes e densas explorações acústicas amparadas em baixo (Amanda Irarrazabal), violoncelo (Cecilia Quinteros) e sintetizadores (Cecilia López). Das três instrumentistas, apenas Irarrazabal não é argentina (vem do Chile), mas vive atualmente em BsAs. O trio apresenta aqui cinco temas, registrados ao vivo em 24 de agosto deste ano, em que adentram a improvisação livre em possibilidades desafiadoras. “Poder emissor” abre o registro apresentando o tom geral do trio, com o celo rascante em primeiro plano quase que perfurando o espaço, sendo logo respondido pelo baixo, enquanto o sintetizador risca o ar, em um diálogo rude, quase incômodo. “Temperatura Efectiva” é um pouco mais sussurrada e prepara os ouvidos para a inquietante “Directorio de Sacrificantes”, marcada pelo toque em arco de poderosa intensidade crescente e sufocante.
  





Una búsqueda infinita  ****
Jorge Torrecillas Ensamble
Discordian Records 
O saxofonista Jorge Torrecillas reuniu um afinado quinteto para este seu novo título. Torrecillas (saxes alto e tenor) apresenta seis novas peças suas, amparado por Inti Sabev (clarinetes), Agustin Zuanigh (trompete), Pablo Vazquez (baixo) e Santiago Lacabe (bateria). Esse conjunto exibe muita coesão discursiva, em afinada e potente interação, em meio a improvisos marcantes. A proposta aqui apresentada amplifica e aprofunda o registrado em seu título anterior, “Indigo”, de 2015. E não só por lá tratar-se de um quarteto e aqui de um quinteto: as peças são mais envolventes e ousadas, com uma maior liberdade discursiva. “Atila” abre o álbum com os diferentes sopros em ação, em um tema que logo se dilui em intervenções ondulantes, em um jogo de ataque-resposta em que ora se encontram, ora se chocam. “Lucky Loser” parece adentrar um caminho parecido, mas logo somos arrastados por um potente solo de clarinete-baixo, que marca o ponto mais elevado da peça. Já o tema “Urano” recebe a adição de flauta (Maria Eugenia Irianni) e voz/violino (Carolina Thiers) e nos mergulha em um espaço único, com climáticas vocalizações e atmosfera inebriante. Gravado há quase um ano, em 13 de dezembro de 2016, no Estudio Doctor F, em BsAs, Una búsqueda infinita é editado pelo selo espanhol Discordian Records, o que sinaliza a crescente repercussão da música argentina fora de suas fronteiras.






Tensegridad  ****(*)
Shocron/ Lamonega/ Díaz
hatOLOGY 
O SLD Trío foi criado em meados de 2013 em Buenos Aires e editou de forma independente seu elogiado álbum de estreia, Anfitrión, em 2015. Neste seu segundo título, o trio formado por Paula Shocron (piano), Germán Lamonega (baixo) e Pablo Díaz (bateria) alça voos maiores: a boa recepção global do primeiro álbum os leva agora a serem publicados pelo selo suíço hatOLOGY, da mítica gravadora HatHut. É curioso notar que na capa do CD consta o nome dos músicos e não do trio (“SLD”), talvez como forma de os artistas aproveitarem a grande exposição do selo para marcar mais cada um deles individualmente. São nove temas, captados em 20 de agosto de 2016 no Estudio Doctor F, em BsAs. Dentre as peças, duas singulares releituras, de Mal Waldron (“Snake Out”) e Charles Tolliver (“Truth”). As outras composições são três do trio e outras assinadas apenas por um deles. A faixa de abertura, “Vera”, por exemplo, é de autoria de Lamonega, que inicia o álbum com o baixo sozinho, preparando os ouvintes para o que virá adiante. Curioso que quem assina a faixa a começa sozinho em seu instrumento, como o piano (em voltagem mais robusta, agressiva quase) em “Connie” e a bateria em “El origen Del Lenguaje”. Se o trio soa impecável e inventivo como sempre, o piano de Shocron está especialmente iluminado. Ela assina duas faixas, também exibindo sua voz em um tema, “Universo Tiene Sentido” – como fazia em Anfitrión –, recitando um encantatório poema seu. Mais um belo capítulo deste instigante e afiadíssimo trio.




Emptying The Self  *****
Shocron/ Parker/ Díaz
NendoDango Records 
A dupla argentina Paula Shocron (piano) e Pablo Díaz (bateria) recebe neste trabalho a adição do genial baixista William Parker. De passagem pela Argentina no fim de 2016, Parker uniu seu mágico baixo às investigações improvisativas de Shocron e Díaz. Captado no Estudio Libres em 23 de novembro de 2016, Emptying The Self apresenta quatro temas. “The Eye” abre o trabalho com muita delicadeza, com a percussão detalhista de Díaz ganhando corpo aos poucos, seguido por baixo e tendo em primeiro plano o encantatório piano de Shocron (a melodia repetitiva com que ela preenche o último minuto da peça é realmente inebriante). Após essa introdução ao som do trio, mergulhamos no núcleo do trabalho, com a longa (mais de 23 minutos) “Fifty Five”, que inicia com o baixo de Parker, sendo logo acompanhado pela percussão, em uma introdução em duo que dura pouco mais de um minuto, quando o piano chega com sutileza, crescendo com vagar até o ápice lá pelos 11 minutos, quando Parker assume o arco e o protagonismo, mergulhando em arrepiante solo, antes de chegarmos à parte final, de maior robustez. “Independence Day” coloca o piano em primeiro plano, amparado por potente linha desenvolvida por baixo e bateria, com Shocron explorando uma melodia circular, quase minimalista, na primeira metade, desembocando em solo intenso rumo à conclusão mais contida. Trabalho sensacional de um trio que, esperamos, volte a criar junto.







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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)