LANÇAMENTOS Destaques
de álbuns de músicos argentinos editados nos últimos tempos.
Experiências em várias formas.
Ouça, divulgue, compre os discos.
A veces, la luz de lo que existe resplandece sólamente a la
distancia ****(*)
Camila Nebbia Sexteto
Kuai Music
Da Argentina, que já apresentou ao mundo da free music Ada
Rave, agora vem uma nova saxofonista que merece muita atenção: Camila Nebbia.
Amparada por um potente sexteto, Nebbia oferece em seu novo disco (de nome realmente
extenso) um trabalho de expressão free jazzística de muita inventividade
composicional e improvisativa. São cinco temas (originais, com exceção da
revisitação a The Garden of Souls, de Ornette Coleman), em que podemos apreciar
frescas ideias, conduzidas por um conjunto formado por outra saxofonista
(Ingrid Feniger, que também toca clarinete baixo), violoncelo (Guido Kohn),
baixo (Nacho Szulga) e duas baterias (Omar Menendez e Axel Filip). A intensidade
produzida por esta interessante formação marca logo a abertura do disco, com o
tema “Borrar un recuerdo”, que inicia com o sexteto em uníssono impactante,
antes de se diluir em divagações que se abrem aos solos (destaque para a
belíssima intervenção de Feniger ao clarinete baixo). Na sequência, a mais
contemplativa “Rosa Mutábile” tem no protagonismo das cordas seus momentos de
impacto maior (o que volta a ocorrer nos minutos iniciais de “Aferrada a un
fragmento de un sueño”); vale destacar aqui também a melancólica melodia
conduzida pelos sopros que fecha a peça. Já a releitura de “The Garden of Souls”
é bastante intensa, com Nebbia trazendo talvez seu melhor solo. Uma artista a
se ficar atento aos próximos passos.
Otra parte del todo ***(*)
Juani Mendez
Independente
O saxofonista Juani Mendez apresenta neste seu segundo álbum
como líder uma versão totalmente renovada de seu quarteto. Se no disco de
estreia, de 2014 (“Diez construcciones fáciles”), seus acompanhantes eram
Santiago Leibson, Germán Lamonega e Damián Allegretti, agora entram Ernesto
Jodos (piano), Mauricio Dawid (baixo) e Sebastián Groshaus (bateria). Com oito
temas, sendo sete de Mendez e o restante uma releitura de Charles Mingus (“Portrait”),
o álbum apresenta um pós-bop equilibrado desfiado com competência e precisão. “144
Sterling St.” exibe bem a proposta do quarteto, com muita elegância conduzida
pelo swingante tenor, amparado pelo sempre brilhante Jodos. A balada “A las
tres” (que tem uma breve introdução, “Preludio a las tres”), com belíssimo solo
de baixo, é bastante tocante. Em “Up”, que fecha o álbum, Mendez e Jodos
apresentam provavelmente seus melhores solos. Não chega a ser um trabalho surpreendente
nem a adentrar a seara free (a herança hard bop é marcante), mas é uma boa
amostra do jazz argentino atual.
Rerum Novarum ****
La Corporación
Pan Y Rosas
La Corporación é um trio radicado em Buenos Aires que apresenta uma música de intrigantes e densas explorações acústicas amparadas em baixo (Amanda Irarrazabal), violoncelo (Cecilia Quinteros) e sintetizadores (Cecilia López). Das três instrumentistas, apenas Irarrazabal não é argentina (vem do Chile), mas vive atualmente em BsAs. O trio apresenta aqui cinco temas, registrados ao vivo em 24 de agosto deste ano, em que adentram a improvisação livre em possibilidades desafiadoras. “Poder emissor” abre o registro apresentando o tom geral do trio, com o celo rascante em primeiro plano quase que perfurando o espaço, sendo logo respondido pelo baixo, enquanto o sintetizador risca o ar, em um diálogo rude, quase incômodo. “Temperatura Efectiva” é um pouco mais sussurrada e prepara os ouvidos para a inquietante “Directorio de Sacrificantes”, marcada pelo toque em arco de poderosa intensidade crescente e sufocante.
Una búsqueda infinita ****
Jorge Torrecillas Ensamble
Discordian Records
O saxofonista Jorge Torrecillas reuniu um afinado quinteto
para este seu novo título. Torrecillas (saxes alto e tenor) apresenta seis novas
peças suas, amparado por Inti Sabev (clarinetes), Agustin Zuanigh (trompete),
Pablo Vazquez (baixo) e Santiago Lacabe (bateria). Esse conjunto exibe muita coesão
discursiva, em afinada e potente interação, em meio a improvisos marcantes. A
proposta aqui apresentada amplifica e aprofunda o registrado em seu título
anterior, “Indigo”, de 2015. E não só por lá tratar-se de um quarteto e aqui de
um quinteto: as peças são mais envolventes e ousadas, com uma maior liberdade
discursiva. “Atila” abre o álbum com os diferentes sopros em ação, em um tema
que logo se dilui em intervenções ondulantes, em um jogo de ataque-resposta em
que ora se encontram, ora se chocam. “Lucky Loser” parece adentrar um caminho
parecido, mas logo somos arrastados por um potente solo de clarinete-baixo, que
marca o ponto mais elevado da peça. Já o tema “Urano” recebe a adição de flauta
(Maria Eugenia Irianni) e voz/violino (Carolina Thiers) e nos mergulha em um
espaço único, com climáticas vocalizações e atmosfera inebriante. Gravado há
quase um ano, em 13 de dezembro de 2016, no Estudio Doctor F, em BsAs, Una
búsqueda infinita é editado pelo selo espanhol Discordian Records, o que sinaliza
a crescente repercussão da música argentina fora de suas fronteiras.
Tensegridad ****(*)
Shocron/ Lamonega/ Díaz
hatOLOGY
O SLD Trío foi criado em meados de 2013 em Buenos Aires e
editou de forma independente seu elogiado álbum de estreia, Anfitrión, em 2015.
Neste seu segundo título, o trio formado por Paula Shocron (piano), Germán
Lamonega (baixo) e Pablo Díaz (bateria) alça voos maiores: a boa recepção
global do primeiro álbum os leva agora a serem publicados pelo selo suíço
hatOLOGY, da mítica gravadora HatHut. É curioso notar que na capa do CD consta
o nome dos músicos e não do trio (“SLD”), talvez como forma de os artistas
aproveitarem a grande exposição do selo para marcar mais cada um deles
individualmente. São nove temas, captados em 20 de agosto de 2016 no Estudio
Doctor F, em BsAs. Dentre as peças, duas singulares releituras, de Mal Waldron
(“Snake Out”) e Charles Tolliver (“Truth”). As outras composições são três do
trio e outras assinadas apenas por um deles. A faixa de abertura, “Vera”, por
exemplo, é de autoria de Lamonega, que inicia o álbum com o baixo sozinho,
preparando os ouvintes para o que virá adiante. Curioso que quem assina a
faixa a começa sozinho em seu instrumento, como o piano (em voltagem mais
robusta, agressiva quase) em “Connie” e a bateria em “El origen Del Lenguaje”. Se
o trio soa impecável e inventivo como sempre, o piano de Shocron está
especialmente iluminado. Ela assina duas faixas, também exibindo sua voz em um
tema, “Universo Tiene Sentido” – como fazia em Anfitrión –, recitando um
encantatório poema seu. Mais um belo capítulo deste instigante e afiadíssimo trio.
Emptying The Self
*****
Shocron/ Parker/ Díaz
NendoDango Records
A dupla argentina Paula Shocron (piano) e Pablo Díaz
(bateria) recebe neste trabalho a adição do genial baixista William Parker. De
passagem pela Argentina no fim de 2016, Parker uniu seu mágico baixo às
investigações improvisativas de Shocron e Díaz. Captado no Estudio Libres em 23
de novembro de 2016, Emptying The Self apresenta quatro temas. “The Eye” abre o
trabalho com muita delicadeza, com a percussão detalhista de Díaz ganhando
corpo aos poucos, seguido por baixo e tendo em primeiro plano o encantatório
piano de Shocron (a melodia repetitiva com que ela preenche o último minuto da
peça é realmente inebriante). Após essa introdução ao som do trio, mergulhamos
no núcleo do trabalho, com a longa (mais de 23 minutos) “Fifty Five”, que
inicia com o baixo de Parker, sendo logo acompanhado pela percussão, em uma
introdução em duo que dura pouco mais de um minuto, quando o piano chega com
sutileza, crescendo com vagar até o ápice lá pelos 11 minutos, quando Parker
assume o arco e o protagonismo, mergulhando em arrepiante solo, antes de
chegarmos à parte final, de maior robustez. “Independence Day” coloca o piano
em primeiro plano, amparado por potente linha desenvolvida por baixo e
bateria, com Shocron explorando uma melodia circular, quase minimalista, na
primeira metade, desembocando em solo intenso rumo à conclusão mais contida. Trabalho sensacional de um trio que, esperamos, volte a criar junto.
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)