LANÇAMENTOS Para
encerrar o muito ativo ano de 2017, Ivo Perelman oferece uma nova fornada com
nada menos que seis álbuns inéditos, todos editados pelo Leo Records...
Por Fabricio Vieira
O saxofonista Ivo Perelman soltou neste segundo semestre uma
nova leva de CDs. São seis títulos, editados pelo selo Leo Records, que trazem
enfoques e parcerias novas em possibilidades diversas de exploração sonora, com
destaque para dois pontos relativamente raros em sua discografia: registros ao
vivo e encontros com outro sopro. O pianista Matthew Shipp, parceiro mais constante de
Perelman, participa (fundamental, como sempre) de cinco títulos: cada vez
mais, as vozes dos dois trabalham de forma simbiôntica; quando ouvimos um, logo
buscamos onde está o outro. Os álbuns são independentes, tendo sido captados em
maio e junho de 2017, e com formações que variam entre duo, trio e quarteto; de
comum, além da parte gráfica, trazem a particularidade de suas faixas não terem nome:
em todos eles, as peças são tituladas apenas como “Part 1”, “Part 2”, “Part 3”
etc.
Podemos dividir os novos discos em três blocos.
Primeiramente, temos um trio e um quarteto com bateria. Heptagon traz
instrumentistas que têm trabalhado de forma mais constante com Perelman nesses
tempos: Shipp (piano), William Parker (baixo) e Bobby Kapp (bateria). São sete
faixas exploradas por um grupo de free improvisers que esbanja experiência, com
nomes que estão na estrada há décadas: Kapp começou sua história ainda nos anos
60; Parker, nos 70; Perelman e Shipp, no final dos anos 80... A música flui
fácil e direta, com o quarteto em liberdade improvisativa sem arestas, como se apresentar
o que fazem fosse uma ação simples, sem esforço. “Part 2”, uma das mais
vibrantes, começa com o esboço de um inquietante tema, de uma maneira que Shipp
domina como poucos, com Parker sustentando a base e Kapp acompanhando nos
pratos; Perelman se junta a eles, sutilmente crescendo para quase explodir lá
pelo final. Em “Part 5”, a abertura vem com sax e piano, nos remetendo ao colorido
característico do duo, com o tenor cantarolando lindamente em um modo que por
instantes nos remete à aura de “Callas”, antes de baixo e bateria se juntarem a
eles, alterando as tensões.
Já em Scalene temos um trio, com Perelman, Shipp e um novo
parceiro, o baterista alemão John Hertenstein. A dicção de Hertenstein é muito
diversa da de Kapp. Vindo da escola europeia, o baterista radicado em Nova York
eleva a temperatura do duo, como mostram logo os primeiros minutos de “Part 1”,
abrindo o disco. O tom baixa em “Part 2” (destaque para o trabalho de
Hertenstein aos pratos), virando novamente no tema seguinte. “Part 5”, a melhor
do conjunto, tem o inspiradíssimo piano de Shipp, em notas gotejantes que
cravam fundo nos ouvidos, por entre as quais um relaxado sax passeia. “Part 9”
é especialmente interessante, com piano e bateria dominando a primeira metade
da peça. Não sei se já voltaram a repetir a parceria, mas deveriam pensar
seriamente em se reunirem de novo; o toque de Hertenstein funcionou em perfeita
sintonia com a sonoridade do duo.
O segundo bloco é dos registros captados ao vivo. Na
discografia de Perelman, são poucos os títulos que se originaram nos palcos (dentre
esses escassos exemplares, destaque para o fulminante “Live”, de 97). O
saxofonista é um tipo de free improviser diferente da visão geral que temos do
estilo, preferindo mais a concentração dos estúdios (de onde vem mais de 90% de
suas gravações) que os contratempos das gigs descontraídas – ao menos é o que
sua trajetória discográfica aponta. Por isso, é empolgante ver de uma vez dois
títulos ao vivo sendo editados.
Live in Brussels traz o duo de sax-piano que
rendeu belos exemplares nos últimos anos, completando uma lacuna, algo que
faltava na trajetória deles. O disco foi captado em maio, durante a turnê
europeia que Perelman e Shipp fizeram neste ano. Duplo, o álbum apresenta três extensas
partes (de 22, 23 e 42 minutos) e um bis, apresentando possibilidades
limítrofes da expressividade do duo, que, nos vários discos já editados, nunca
haviam dialogado de forma tão longamente ininterrupta.
O outro título é Live in Baltimore, originado em época próxima
(data de 25 de junho), mas com uma diferença: a adição do baterista Jeff
Cosgrove. Relativamente pouco conhecido na cena free global, Cosgrove é de
Washington e tocou em anos recentes em algumas diferentes oportunidades com
Shipp e se mostra um competente parceiro para a dupla. O disco traz apenas uma
longa improvisação, de 52 minutos, que começa relaxada, mas que esquenta em
pouco tempo, ondulando em intensidade e alcançando até momentos de ares
jazzísticos lá pelos 30 minutos, sempre com o trio mantendo a unidade, sem
longos espaços solísticos ou de brilho solitário.
No terceiro bloco, temos um encontro que realmente funcionou,
com Nate Wooley. O trompetista se uniu
pela primeira vez a Perelman e o resultado foi sensacional. Wooley participa de
dois álbuns. Em Octagon, temos um quarteto, com Perelman, Wooley, o baixista
Brandon Lopez e o baterista Gerald Cleaver. São oito temas. O álbum começa em trio,
relativamente tranquilo, como que amaciando os ouvidos para o que vem à frente;
essa vibe se mantém até o trompete de Wooley surgir, lá pelos três minutos do
segundo tema, mudando completamente o tom da audição que acompanhamos até ali.
O disco cresce, sem dúvida, a partir daí, com o diálogo de sax e trompete se
tornando o núcleo do processo, em meio a temas mais quentes (como a breve “Part
5” e a extensa “Part 7”) e outros mais melódicos (Part 6”).
Já em Philosopher’s Stone, encontramos um trio, com Perelman,
Wooley e Shipp. E é aqui que surge o melhor registro dentre os álbuns editados
pelo saxofonista em 2017. O trio soa incrivelmente equilibrado, gestando uma
música de grande vitalidade expressiva, com passagens inebriantes em que os
três instrumentistas criam arte maior. Logo em “Part 1”, podemos sentir como
que Wooley chama Perelman a outras zonas, além dos processos expressivos a que
estamos acostumados a vê-lo explorar nesses tempos, com o piano dando o brilho final
ao estimulante diálogo de sopros; os poucos mais de dois minutos da peça são de
elevada energia. Em outro modo, na quase balada “Part 2”, a interação se mantém
em nível alto, mas nos oferecendo outra face do trio. Aqui temos alguns dos
maiores em seus instrumentos na contemporaneidade e isso permite que surja uma
faixa como “Part 6”, talvez a mais bela peça que apareceu neste ano – a magia explode
lá pelos 2m30, com o trompete em notas alongadas que cortam o espaço, o piano quase
minimalista, com sua aura fantasmagórica, e o sax rugindo por entre isso tudo...
realmente arrepiante.
Ouvindo esse conjunto de álbuns, que não tem a mesma unidade
das duas coleções anteriores (“The Art of Perelman-Ship”, em 7 volumes, e “The
Art of the Improv Trio”, em 6 vol.), surge a dúvida se Perelman deveria manter
a atual forma que rege seus lançamentos, ou seja, editando os discos em grandes
grupos, de uma vez, e pelo mesmo selo. É muito difícil para os ouvintes
(profissionais ou entusiastas) pararem para ouvir com a devida atenção cada
álbum, que, por chegarem em bloco, podem acabar por se perder em meio à
avalanche de títulos que a cena free gera constantemente. Talvez se os discos
fossem editados de forma mais espalhada pelo ano, um ou dois por mês, houvesse
mais tempo hábil para degustar cada título em seu tempo. Quando há uma unidade
clara – como nas duas coleções “The Art...” citadas –, a opção se justifica e
mesmo eleva a intensidade do conjunto. Mas, quando não é este o caso, isso pode
fazer com que álbuns maiores, como “Philosopher’s Stone”, se percam em meio aos
outros. Enfim, se não puder ouvir todos os seis últimos títulos de Perelman,
não deixe de apreciar ao menos dois, obrigatórios: “Live in Brussels” e “Philosopher’s
Stone”.
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica
Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros
e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain
and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo
Perelman (Leo Records)