Sons de Portugal – II



LANÇAMENTOS  A diversificada cena jazzística portuguesa sempre está a nos surpreender. Novos projetos, veteranos com novos enfoques, lançamentos de grupos já conhecidos por aqui... Um pouco do que Portugal nos ofereceu recentemente, abaixo...







Fragments of Always  ****(*)
José Lencastre Nau Quartet
FMR Records
O saxofonista José Lencastre se uniu a seu irmão João Lencastre (bateria) e a Rodrigo Pinheiro (piano) e Hernani Faustino (baixo) – dois terços do Red Trio – para uma sessão que resultou neste brilhante álbum de estreia do quarteto formado no fim de 2015. Fragments of Always é produto da esfera free jazzística, dosando com equilíbrio lirismo e energia; explica o próprio Lencastre: “Nau remete para o descobrimento do agora em formato musical improvisado”. Esse “agora improvisado” resulta em um complexo discurso sonoro, em que as quatro vozes atuam em inventiva harmonia. Apesar de ter uma discografia ainda tímida em relação a seus pares, especialmente quando comparado a Faustino e Pinheiro, Lencastre é um músico de grande vivência, que circula nos espaços do jazz, do free e da improvisação livre, tendo vivido no Brasil, em Pernambuco, onde também lidou com nossa música popular. E o que vemos aqui é a demonstração de muita maturidade expressiva por parte do saxofonista, que conduz com foco preciso o rumo tomado pelo Nau Quartet. Registrado no Timbuktu Studios, em dezembro de 2016, o álbum traz 12 temas, sendo que a primeira metade é uma suíte dividida em seis partes (“The Aphorism Suite”), que demonstra todas as nuances do quarteto e o brilho individual das quatro vozes – arrepiante o ar espiritual (algo 60’s) que emana de piano e sax na parte 2 ou o sopro arisco da parte 3 – em uma sucessão de ideias muitas vezes surpreendentes. Na segunda metade, começamos com a extensa faixa-título (17 minutos), em que o grupo exibe suas múltiplas potencialidades e referências, e encontramos nessa jornada belezas como “All Ways” e “Axis Mundi”. Estreia de grande impacto.







Transporte Colectivo  **** 
José Salgueiro
Aduf Música

Veterano da cena portuguesa, o baterista José Salgueiro está na ativa desde os anos 80, tendo participado de dezenas de álbuns, mas, curiosamente, somente agora chegando com este Transporte Colectivo a um título como líder. E Salgueiro mostra que a espera valeu a pena, oferecendo um registro de grande maturidade e inventividade jazzística. Com um refinado quinteto formado por Guto Lucena (sax alto e clarinete baixo), Mário Delgado (guitarra), Cícero Lee (baixo) e o excelente pianista João Paulo Esteves, são apresentados 12 temas próprios, jazz contemporâneo envolvente permeado de influências várias. Salgueiro disse em entrevista que “Transporte Colectivo” é um conceito, ou seja, não apenas o título do álbum, mas algo além, que o estrutura, conduz a música criada. O material reunido se mostra bem concatenado, com capítulos que trabalham juntos para gestar um todo maior. “Arriba” abre o disco com um ataque que desperta nossos ouvidos, antes da entrada de saboroso tema soprado que serve como que uma introdução à quase bailante peça.  As mais baladas “EM”, “Inverso” e “Memória de Ju” destilam melodias e impressões cativantes. Já na faixa-título, o toque de piano abrindo a faixa, ao qual se seguem os outros instrumentos, que respondem um a um, entre pausas e ataques, é muito contagiante.





Axis Mundi  ***(*)
Rui Filipe Freitas Sexteto
Carimbo Porta-Jazz
Este trabalho do vibrafonista Rui Filipe Freitas mostra uma face mais jazzística de uma cena da qual estamos acostumados a apreciar as experiências mais free. Com um sexteto formado por José Pedro Coelho (sax tenor e clarinete-baixo), José Mortágua (saxes alto e soprano), Mané Fernandes (guitarra), Filipe Teixeira (baixo) e João Martins (bateria), Freitas apresenta sete peças (sendo seis originais seus) gravadas no Conservatório de Música do Porto. “Osiris”, que abre o disco, dá o tom geral do que encontraremos até o final, com temas bem arquitetados e alguns solos de maior inventividade (sempre com o vibrafone tendo seu momento de destaque). Em “Duro de Roer”, é o solo de guitarra de Fernandes que brilha e indica que poderia ter tido um espaço maior nas peças apresentadas. E após a temperatura baixar com a balada “Abscôndito”, temos os momentos mais saborosos do conjunto com “Lázaro”, que inicia com um tema envolvente e repetitivo ao clarinete-baixo, que vai se abrindo nos outros instrumentos para alcançar seu clímax com o solo de sax que marca a metade final da faixa. Um disco agradável e elegante, mas ao qual faltam algumas faíscas.






Metamorphosis  **** 
Lama + Joachim Badenhorst
Clean Feed
Novo capítulo da parceria entre o Lama Trio – formado pelos portugueses Gonçalo Almeida (baixo) e Susana Santos Silva (trompete) ao lado do canadense Greg Smith (bateria) – e o clarinetista belga Joachim Badenhorst, Metamorphosis é como que uma continuidade do anterior “The Elephant’s Journey”, de 2015, mas que aprofunda tal experiência. Registrado em janeiro de 2016 no JazzCase, em Neerpelt (Bélgica), Metamorphosis aponta curiosos rumos, novas trilhas com intervenções eletrônicas ganhando mais destaque – elementos que vêm de duas frentes, conduzidas por Almeida (efeitos e loops) e Smith (eletrônicos). A experiência eletroacústica criada gera resultados climáticos diferenciados e inebriantes, bem representados logo no tema de abertura (“Metamorphosis 1”), em que os sopros vagueiam por sobre pulsares que criam uma espacialidade muito especial, que perdura até a metade do tema, quando bateria e baixo adentram para mergulharmos em algo mais propriamente jazzístico, até o fim altamente ruidoso. “Metamorphosis 2” faz um jogo diferente, começando no espaço acústico e sofrendo interferências eletro, mais pontuais, em seu núcleo. A potencialidade free jazzística está bem representada em “Metamorphosis 3”, marcada pelo contagiante baixo de Almeida. Já “Dark Corner”, que fecha o registro, parece retomar mais claramente as vias do tema de abertura. Novas possibilidades de um grupo sempre com algo fresco a oferecer.






A Square Meal   ****(*) 
Karoline Leblanc/ Vicente/ Antunes/ Ferreira Lopes
atrito-afeito

A pianista canadense Karoline Leblanc se une aqui aos portugueses Luís Vicente (trompete), Hugo Antunes (baixo) e o baterista Paulo J Ferreira Lopes (este, radicado em Québec). O resultado é um impactante registro, captado em maio de 2016 no Namouche Studios (Lisboa). Editado pelo selo independente atrito-afeito, de Leblanc e Lopes, A Square Meal é uma exploração improvisativa que não ignora as trilhas do jazz (ou, mais especificamente, do free jazz). E o lírico free impro que emana do álbum realmente consegue alcançar momentos sublimes, como bem aponta de cara “Ken Tack”, faixa que abre o conjunto preparando os ouvidos para o melhor que virá. Se o quarteto soa bastante integrado, é inegável que piano e trompete acabam por brilhar mais, encantando-nos (parecendo até que sem esforço) em diferentes passagens. E isso pode ser apreciado em todas as faixas, com destaque para uma das mais extensas, “Mind and Intent”, que oferece de pronto cinco minutos de intensidade contagiante, antes de uma estratégica pausa que nos conduz para um processo em crescendo, que culmina com um intenso solo de piano que nos leva à mais relaxada etapa final. Um disco para ser ouvido vezes seguidas.









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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)