Globe Unity Orchestra: cinco décadas de liberdade sonora




CRÍTICAs  A big band europeia GUO mostrou toda sua vitalidade em duas apresentações memoráveis no Jazz na Fábrica...  




Por Fabricio Vieira 

Ver a Globe Unity Orchestra (GUO) em nossos palcos pela primeira vez deve ser encarado como nada menos que um momento histórico. Se a big band organizada pelo pianista alemão Alexander von Schilippenbach em 1966 não é mais propriamente um grupo em atividade, reunindo-se apenas pontualmente para apresentações especiais (e sempre com uma escalação variável), é inegável que sua relevância estética e criativa permanece inabalável. Infelizmente a formação de 12 músicos que se apresentou nos últimos dias 17 e 18 no palco do teatro do Sesc Pompeia (SP) não contou com a presença do baterista Paul Lovens, que foi anunciado como participante pelo próprio Schilippenbach em conversa com o FreeForm, FreeJazz. Mas pudemos ver um grupo de elevada inventividade e entrosamento espontâneo que somente a improvisação livre de alto nível pode oferecer. 
A interessante disposição dos músicos funcionou bem no particular palco do Sesc Pompeia: de um lado, ficaram Schilippenbach com seu piano e o baterista Oliver Steidle; do outro, virados para o pianista, os dez instrumentistas que se dividiam entre: trompetes (Manfred Schoof, Axel Dorner, Jean-Luc Capozzo e Célio Barros); saxes (Gerd Dudek, Henrik Walsdorff e Thomas Rohrer); trombones (Christof Thewes e Gerhard Gschossl) e clarinetes (Rudi Mahall).  Dessa agrupação, saiu cerca de 1h15 de música ininterrupta, apenas um extenso tema em que pudemos apreciar improvisação coletiva e polifonia ruidosa em meio à qual emergiram marcantes momentos solistas.

Schilippenbach é um líder discreto, desses dispostos a se integrar ao som coletivo, podendo até ser engolfado pela massa de vozes às vezes, mas sempre deixando claro quem está no comando do jogo – como no final da peça, em que ele saiu de seu piano e foi reger os sopros, levando-os para cima e para baixo como quis, até o desfecho impactante. Seus solos precisos não ocuparam mais espaço que os outros e sua visada jazzística pouco apareceu, dando ênfase a sua face de free improviser. Sua generosidade artística pode ser vista também no fato de ter acolhido em sua big band dois representantes da cena local, Rohrer e Barros, que bem se integraram à intensidade expressiva do grupo.

Se alguém dominou mais o palco na verdade (ao menos na apresentação de sexta), chamando olhos e ouvidos para si, foi o clarinetista Rudi Mahall. Muito à vontade e exibindo uma energia acima da de seus pares, Mahall se dividiu entre o clarinete e o clarinete-baixo (seu instrumento principal), fazendo os solos mais faiscantes da noite, além de ser o que mais interagia com os parceiros no momento em que estes estavam sob os holofotes, criando diálogos de apoio ou fazendo a ponte para trazê-los de volta ao grupo quando estavam encerrando seus solos. O músico alemão de 51 anos, apesar de ter extensa discografia, não está entre os mais conhecidos do free, mas deve ter ganhado a atenção de novos ouvintes após essa sua passagem por aqui.
Axel Dorner, um dos maiores de seu instrumento na atualidade, viveu momentos distintos: pareceu um tanto discreto quando inserido na banda, mas foi responsável pelo solo mais desconcertante da noite, criando sons particularíssimos em meio à sua fina técnica e auxiliado pela respiração circular – momentos arrepiantes. Já os únicos dois remanescentes da formação primeira da Globe Unity, lá nos idos anos 1960, Manfred Schoof, de 81 anos, e Gerd Dudek, de 79 anos, podem não carregar a vitalidade de outrora, sendo quase discretos em seus solos, mas deixam clara a impressão de que a presença deles é fundamental para manter o sentido de continuidade dessa história de cinco décadas da big band – e vê-los ali em ação foi algo muito especial. Vale destacar ainda o baterista Oliver Steidle que, em uma posição difícil, ocupando o lugar que tem Paul Lovens e Paul Lytton como os dois músicos mais habituais na GUO, fez bonito com um pulso enérgico e preciso que guiou os sopros por toda longa apresentação. 

A dinâmica do concerto teve uma organização curiosa: os músicos, quando iam solar, deixavam a parede de sopros agrupada em um lado do palco e se dirigiam ao centro, chegando mais próximo a Schilippenbach e Steidle. Em outros momentos, o que vimos foram todos os instrumentistas caminhando pelo palco, fazendo com que a reverberação e o encontro das diferentes vozes ocorresse por meio de uma espacialização muito singular, levando nossos ouvidos a lutarem para perceber cada voz ecoando pelo teatro.

Se os ingressos não chegaram a esgotar, é fato que as apresentações contaram com um bom público, que em sua maioria permaneceu até o final – e com certeza saiu dali levando uma percepção renovada (ou mesmo nova) sobre a dimensão e os limites da música criativa. A noite free do Jazz na Fábrica cumpriu sua missão com louvor e esperamos que essa seara apenas ganhe espaço em edições futuras do evento. Quem sabe em uma próxima não possamos ver o trio de Schilippenbach com Evan Parker e Paul Lovens?


(Fotos: Carol Vidal /Sesc)




-------------
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)