The Attic: estreia arrebatadora






CRÍTICAs  Um novo trio vem de Portugal, com um incrível disco de estreia. Rodrigo Amado, Gonçalo Almeida e Marco Franco são os responsáveis por este que é um dos álbuns mais vibrantes do ano...




Por Fabricio Vieira


No começo de 2013, o público brasileiro teve a oportunidade de apreciar uma das raras visitas de músicos portugueses ao país. E não foi uma visita qualquer. O saxofonista Rodrigo Amado desembarcou por aqui para três apresentações, em São Paulo (Sesc Belenzinho e Sesc Santos) e Rio de Janeiro (Audio Rebel), em duo com o baterista Gabriel Ferrandini. Naquela ocasião, Amado mostrou no palco a elevada inventividade de sua música, que conhecíamos apenas por discos, que o coloca, sem dúvida, como um dos nomes centrais do sax contemporâneo. Desde então, o músico tem encantado nossos ouvidos com um álbum melhor que o outro. Não sendo um free improviser dos mais prolixos em termos de gravações, daqueles que editam vários títulos a cada ano, Amado tem concentrado sua força criativa em álbuns certeiros, que acabam inevitavelmente brilhando nas listas anuais de melhores da temporada – basta ver o destaque dado pela crítica nos últimos anos a Desire & Freedom (2016, com o Motion Trio), This is Our Language (2015) e The Freedom Principle/Live in Lisbon (2014, Motion Trio com Peter Evans). Sempre nos surpreendendo, Amado lançou há pouco seu primeiro título de 2017: e mais uma vez, uma maravilha que surge já como candidato aos melhores discos do ano.

Foto: Cláudio Rêgo
The Attic, o novo título, traz Amado (sax tenor) em um novo trio português, formado ao lado de Gonçalo Almeida (baixo) e Marco Franco (bateria). O título agora editado foi captado ao vivo em 22 de dezembro de 2015, na SMUP (Cascais/Lisboa) e marcou o primeiro encontro registrado deste novo grupo. Apesar de os três músicos serem portugueses, não são parceiros habituais, tocando projetos paralelos em uma cena múltipla e ampla como é a de Portugal. O baixista Gonçalo Almeida, na realidade, vive na Holanda há anos e é por lá que desenvolve seus principais projetos, como o quinteto Spinifex e os trios Albatre e Lama. Já Franco tem se destacado em grupos ligados ao cenário free impro, como os quartetos Clock and Clouds e Deux Maisons, além de tocar em bandas de rock (Memória de Peixe). A variada amplitude dos projetos com os quais os três músicos estão envolvidos sem dúvida é fundamental para o grande resultado obtido em The Attic. Em cinco temas, o trio mostra a magia da improvisação livre, como que um encontro inédito pode gestar música tão elevada, envolvente e brilhante.

Almeida, bem conhecido por seu trabalho no baixo elétrico, aqui se concentra no modelo acústico do instrumento, mostrando grande versatilidade. É exatamente Almeida que abre a apresentação, com um encantatório desenvolvimento ao arco, que rege os minutos iniciais de “Shadow” como verdadeira introdução ao universo que aos poucos vai se desnudando a nossos ouvidos. Quando os primeiros doloridos uivos de Amado surgem, lá pelos três minutos transcorridos, já estamos aclimatados para perfeitamente aproveitar o que nos será oferecido nos pouco mais de 50 minutos pelos quais se estende o registro. “Shadow” é um dos temas mais impressionantes que apareceram neste ano e para isso é decisiva a interação entre o baixo e o sopro de Amado. Vemos aqui o saxofonista em uma voltagem algo diversa a que estamos acostumados (especialmente no Motion Trio, seu principal projeto); há algo de mais doloroso e desesperado em seu sopro, que arrepia o ouvinte em suas primeiras intervenções na apresentação. Por sobre o arco de Almeida e a discreta percussão de Franco, o sax tenor rasga o ar e nos apunhala profundamente, em um processo que se alonga por alguns minutos, em meio ao qual Amado vai desdobrando uma melodia quase serena, como se nos quisesse dar um respiro antes de nos conduzir para a parte final, em que a propulsão percussiva ganha relevo enquanto o solo de Amado nos guia para o desfecho da peça.




A próxima parada, “Hole”, é aberta pelo sax, em outro modo (Amado soa inconfundível aqui), com a faixa se desenvolvendo de forma distinta, improvisação livre mais fluida, solta. Certa ondulação de tensão acaba sendo uma marca relevante no percurso do concerto, que segue com “Spring”, que inicia com percussão e baixo (aqui dedilhado), trazendo as passagens mais contemplativas, esquentando apenas em sua segunda metade; e “Board”, a mais longa do conjunto (16 minutos), com sax e bateria marcando a abertura de um processo que nos conduz a um solo de baixo (em que Almeida mostra grande habilidade para criar climas soturnos mais uma vez com empunhando o arco) que será o núcleo da peça. A conclusão desse processo é nada menos que um final arrebatador. Como última parada, está “Nail”, a mais breve do conjunto (5 minutos), que soa como verdadeiro bis (não sei se foi assim no dia do registro), em que os músicos se despedem com fúria extrema, no ponto mais explosivo e centrado da apresentação, uma paulada desconcertante.
Por fim: está aqui um grupo incrível, que nos oferece um álbum vibrante, daqueles que revitalizam nossa crença na possível beleza extremada da música livre.








The Attic   *****
Amado/ Almeida/ Franco
NoBusiness Records















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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)