Kamasi Washington: new jazz (?)



SHOWS  O público brasileiro pôde ver pela primeira vez o incensado saxofonista Kamasi Washington em ação, que tocou com ingressos esgotados no Rio de Janeiro e em São Paulo...





Apesar de muitos trazerem a palavra “jazz” em seu nome, os eventos dedicados ao gênero no Brasil que merecem atenção são relativamente poucos. Ao lado do melhor festival do gênero no país hoje, o “Jazz na Fábrica”, o Nublu Jazz Festival já se firmou como um importante evento no primeiro semestre de cada ano. Trabalhando com nomes do jazz e cercanias (soul, r&b, hip hop...) e sempre dando espaço para artistas locais, o Nublu já trouxe figuras de relevo como Jason Moran, Sun Ra Arkestra, o James Farm de Joshua Redman, Robert Glasper, o Istanbul Sessions de Ilhan Ersahin (o criador do evento) e, neste ano, o saboroso The Cookers (septeto de veteranos referenciais, como Cecil McBee e Billy Hart, que trouxe seu fino pós-bop). 

Para sua sétima edição, encerrada no domingo, o Nublu Jazz Festival escalou como nome principal um dos mais incensados nomes da cena jazzística contemporânea: o jovem saxofonista californiano Kamasi Washington, que teve ingressos esgotados para as duas apresentações que fez no Sesc Pompeia em um par de horas – tocou ainda no Sesc São José dos Campos e no Theatro Municipal do Rio de Janeiro –, sendo um grande acerto do evento trazer um nome no pico de sua ascendente carreira para um público ávido em um esquema de ingressos acessíveis (no Rio, por exemplo, os ingressos chegaram a R$ 250!). 
Kamasi atraiu os holofotes para si após editar seu ambicioso “The Epic”, em 2015, com seus três volumes e cerca de 170 minutos de música, e gerou um hype exagerado, especialmente na mídia não especializada, como se a música jazzística estivesse morta e ele fosse sua grande e única novidade (foi chamado de “salvador”, “embaixador”, “redentor” do jazz...), mas vamos com calma: o gênero tem sido iluminado neste século por nomes fantásticos como Matana Roberts, Mats Gustafsson, Mary Halvorson, Peter Evans e outros tantos.
Em turnê pelo mundo desde que explodiu na cena, Kamasi Washington tem feito apresentações nem sempre unânimes, ora muito elogiadas ora recebidas como mornas. Esta foi a primeira vez que o saxofonista veio ao país com um projeto seu (esteve aqui em 2013, mas como sideman de Stanley Clarke). No sábado, depois de tocar no Sesc São José dos Campos (na quinta) e no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (na quarta), Kamasi Washington fez sua esperada apresentação na comedoria do Sesc Pompeia, após a abertura do destacado nome do spoken word Saul Williams. No domingo, retornou ao palco, desta vez sem show de abertura, para mostrar seu projeto com atenção e foco plenos do público. Acompanhado de um potente grupo (o “The Next Step”), com duas baterias, baixo, trompete, vocal, teclados e DJ – além de seu pai, o saxofonista Rick Washington, como convidado especial –, Kamasi manteve o público nas mãos por mais de uma hora e meia. 

Tendo por norte seu incensado álbum de estreia, Kamasi faz um som bastante quente, dançante, com elementos grooveados, algo do melhor fusion setentista e uma pitada que remete ao spiritual-free de Pharoah Sanders (não só pelo seu visual) daquele período (apesar de não ser adentrado aqui o terreno da improvisação livre). O conjunto organizado sustenta as apresentações com êxito, com solos pontuais e focados, sem se perder em divagações improvisativas – a propulsão coordenada pelas baquetas de Robert Miller e Jonathan Pinson merece destaque especial. E parece que é exatamente disso que Kamasi precisa para apresentar sua música. Se um ar de estrela surgiu por conta do hype em torno dele, Kamasi ainda mostra-se leve e centrado, no palco ou em entrevistas (vale uma olhada  na conversa em vídeo disponibilizada na página do Sesc, onde é bacana vê-lo citar Hermeto, Naná e Donato quando o tema é música brasileira), um líder nas apresentações que não força a ocupação do centro das atenções. No concerto, há espaço para todos brilharem um pouco, quer seja em solos (baixo e baterias fizeram com louvor seus papéis) ou protagonismos, como nas passagens (não muitas, na verdade) em que o canto de Patrice Quinn é o foco central (como em “The Rhythm Changes”) ou quando o DJ Battlecat faz suas investidas. Kamasi, diferentemente do que se pode esperar de saxofonistas líderes, não sola longamente a cada tema, apesar de ter seus momentos de urgência (quem ouviu “Change of the Guard” sabe que ele pode adentrar picos mais incendiários), em que mostra ser, além de compositor inventivo, um solista seguro. Para seu universo sonoro, ele traz influências múltiplas, jazz em diversas roupagens, soul, hip hop, muito de sua própria bagagem como músico que já tocou com figuras distintas como McCoy Tyner, Freddie Hubbard, Lauryn Hill e Mos Def, agregando elementos amplos a seu cosmo sonoro, bastante coerente, vale frisar. Talvez falte um tempero free aí, alguma liberdade maior nas construções de Kamasi, algo imprevisto que faz muito do fascínio do universo do jazz. Mas a grande questão é o que o saxofonista projeta à frente: um novo álbum de ambiciosa envergadura? Novas parcerias? Rumos inesperados para embaralhar seu som hoje tão bem equilibrado e planejado? Esperamos que ao menos ele não seja dragado pela ansiedade pop por fama, que já consumiu não pouca gente boa no mundo jazzístico...

(Fotos: Carol Vidal)


(Kamasi Washington @ Sesc Pompeia (SP), 8/4/2017)






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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)