CRÍTICAs O genial pianista Matthew Shipp, que fez memorável apresentação
em SP no ano passado, lança novo disco em trio, Piano Song.
Por Fabricio Vieira
O pianista Matthew Shipp acaba de lançar um novo título de
seu fantástico trio. Piano Song sai pelo selo Thirsty Ear, ao qual Shipp está
associado desde 1999. Para surpresa de seus entusiastas, Shipp mandou um
recado: este é seu último título pelo Thirsty Ear. Peter Gordon, fundador do
selo, diz que é uma separação amigável e que Shipp continua como diretor
artístico da gravadora (ele tem sido há muitos anos responsável pela “Blue
Series”). Na semana passada, Shipp reforçou a ideia de último capítulo: em
conversa com a Village Voice, afirmou que vai parar de gravar, que irá terminar
umas coisas para a ESP-Disk e a RogueArt e é isso; o que tinha que dizer em
estúdio já foi dito e concentrará sua música em apresentações ao vivo. Talvez
esta declaração não tenha causado tanto barulho por um motivo: Shipp, em
momentos de descontentamento com a repercussão de sua obra, já afirmou em
outras oportunidades que seu trabalho estava completo e era hora de parar...
Mas se Piano Song for, de fato (esperamos que não!), uma de suas
últimas palavras em estúdio, o pianista deixa a seus ouvintes um epílogo à
altura de sua genial obra.
É sintomático que esta canção de despedida seja em trio: o
formato de piano-baixo-bateria é um dos favoritos de Shipp, tendo feito sua
primeira gravação assim, “Circular Temple”, ainda no início da carreira, em
outubro de 1990, junto a William Parker e Whit Dickey. Desde então, foi mais de
uma dezena de gravações em trio, com diferentes parceiros, grande parte
realizada nos anos 2000. Os registros sob a rubrica Matthew Shipp Trio mostram
uma ampla gama de explorações sonoras, indo da improvisação livre de tom mais
tayloriano de “Prism” ao contemporâneo free jazzístico de “Harmonic Disorder” e
tendo um de seus pontos máximos na homenagem/revisitação a Duke Ellington, em
“To Duke”. Ouvir os discos em trio de Shipp é saborear um pouco do que de
melhor a música criativa pós-90 tem gestado.
Em Piano Song, Shipp apresenta 12 novos temas seus, registrados
ao lado de Michael Bisio (baixo) e Newman Taylor Baker (bateria), o mesmo grupo
que realizou o anterior “The Conductof Jazz”, de 2015. (vale notar: se Bisio
tem sido cada vez mais solicitado, Baker é alguém que merecia mais atenção:
aqui ele mostra o quanto é um percussionista fino.)
Se Piano Song se confirmar como uma despedida dos estúdios,
Shipp oferece um exemplar realmente inspirado, que vai ficar, sem dúvida. A
variedade de propostas aqui expostas é grande, mas sem fraturar a unidade do
conjunto. Essa amplitude estética vai se revelando à audição de cada faixa. Após
uma breve abertura ao piano (“Links”), o disco mergulha na saborosamente jazzística
“Cosmopolitan”, com o baixo de Bisio remetendo a algo de Paul Chambers na época
de Miles/So What... A rotação vira com a entrada seguinte, a intrigante “Blue
Desert”, que traz um tique percussivo traçando uma linha contínua sobre a qual o piano entra e sai com pontuados
acordes que por vezes desembocam em um microtema (!). A sequência de ondulações expressivas é
seguida pela balada “Silence of” e o piano só de “Nature of”, com Shipp
desenvolvendo densas linhas por vezes algo quebradiçamente swingantes. Já “Flying
Carpet” e “Micro Wave” exibem o melhor do contemporâneo jazz/free de Shipp (com
os mais impactantes de seus repetitivos ataques taylorianos); quando chega a faixa-título,
para encerrar o álbum, mergulhamos em um modo mais lírico, melancólico até, com certo inevitável tom de despedida.
É como diz Gordon no release do álbum: “He seems to transcend
being a jazz musician, by elevating his art as an elixir, to be prescribed to heal,
excite, confuse and enlighten, depending on your state of mind”.
Que Mr. Shipp continue nos encantando com sua música...
Piano Song ****(*)
Mathhew Shipp Trio
Thirsty Ear
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura
e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns
anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve
sobre livros e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista
online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)