LANÇAMENTOS Em destaque, álbuns editados nos últimos tempos protagonizados por mulheres saxofonistas, trompetistas, trombonistas...
Experiências em várias formas.
Ouça, divulgue, compre os discos.
Por Fabricio Vieira
Seguindo a trilha aberta pela pioneira trompetista Barbara
Donald (1942-2013), que já nos anos 60 participava da cena free, cada vez mais
encontramos novas instrumentistas apresentando trabalhos inventivos e
empolgantes munidas de um sopro. (Em 2016, um dos grandes destaques foi o projeto “Attack”, da
saxofonista sueca Anna Högberg.) Se mulheres têm se destacado em diferentes
instrumentos na música criativa, vale especial atenção a projetos e discos conduzidos
pelas que se dedicam a metais e madeiras, onde tem surgido cada vez mais artistas de ponta. Com esse enfoque em mente, selecionamos e destacamos alguns álbuns editados nos últimos meses protagonizados por mulheres ao sax, trompete e trombone que precisam ser conhecidos.
Binary ****
Anna
Webber’s Simple Trio
Skirl
Records
A saxofonista canadense radicada em NY Anna Webber reúne
novamente seu “Simple Trio”, com o qual havia gravado anteriormente em 2014.
Acompanhada de Matt Mitchell (piano) e John Hollenbeck (bateria), Webber se
reveza entre o sax tenor e a flauta para apresentar 12 novos temas, todos de
sua autoria, registrados em maio de 2016 no Studio P4, em Berlim. O álbum
começa com um tipo de introdução, “Rectangles 2”, com pouco mais de 1 minuto,
com um contagiante tema que será resgatado e desmembrado depois em outras peças
com nomes derivados (em um gesto meio braxtoniano), como “Rectangles 3a” e
“Rectangles 3c”, sempre breves, com cerca de dois minutos, muito diretas e
marcadas. Já as outras composições, com outros nomes, são desenvolvidas de
forma mais extensa, em que podemos apreciar melhor a face improvisadora de
Webber, como “Binary” (com belo solo de piano de Mitchell), “Impulse Purchase”
(que exibe a face mais robusta de seu tenor) e “Tug o’ War” (esta com
encantadora flauta, em um dos momentos maiores do conjunto). Com um caminho
bastante particular, Webber é uma artista de música complexa, que parece
construída com vagar e reflexão.
L’écorce et
la salive ****
Christiane
Bopp/ Jean-Luc Petit
Fou Records
Esse duo francês formado pela trombonista Christiane Bopp e
o saxofonista Jean-Luc Petit toca junto há mais de uma década. Neste novo
registro, captado em junho de 2015, vemos a dupla explorar 7 temas,
improvisação livre inspirada na poesia de Bernard Noel. Bopp, que tem gravações
com gente como Joelle Léandre e Kent Carter, é uma voz possivelmente pouco
lembrada fora de seu núcleo, o que é uma pena. Petit se mostra mais ativo, mas
parece também bastante centrado na cena francesa – o seu duo Double Basse, com
o baixista Benjamin Duboc, no qual toca apenas clarinete-contrabaixo, é especialmente
interessante. Neste álbum, o duo explora extremos, como fica claro nos dois
instrumentos executados por Petit: clarinete-contrabaixo e o sax sopranino. Os
melhores momentos são os em que as esferas mais graves são exploradas, como em
“Une image dans lês voix” e “L’infini sur lês lèvres”. De um modo geral, o
álbum se desenvolve de forma quase letárgica, densa, de silêncios e construções
sonoras de picos massivos, que enchem os ouvidos.
Rasengan! ****
Santos Silva/ Wodrascka/ Meaas Svendsen/ Berre
Barefoot Records
Neste empolgante encontro de vozes europeias de diferentes
cantos podemos sentir um pouco do que de mais interessante o free contemporâneo
tem oferecido. A trompetista portuguesa Susana Santos Silva se une aqui à
pianista francesa Christine Wodrascka e aos noruegueses Christian Meaas
Svendsen (baixo) e Hakon Berre (baterista radicado na Dinamarca). O primeiro
encontro deste quarteto ocorreu no Café MIR, em Oslo, em agosto de 2015. Pouco
depois, voltaram a tocar juntos, apresentação que se transformou neste
Rasengan!, editado apenas em LP. O disco traz 36 minutos, divididos nas duas
faces do vinil. A audição começa com “Sweatshirt”, que se estende por 25
minutos divididos dos dois lados do disco e carrega os momentos mais quentes; e fecha
com “Death by Candiru”, de desenvolvimento mais lento, com o trompete
primeiramente sussurrado e depois melodicamente construindo os rumos sobre um
piano fraturado e um baixo de densidade crescente – o conjunto revela improvisação
livre de muita inventividade, com elementos free jazzísticos, algo até swingado
surgindo pontualmente. Susana ratifica a impressão de que o trompete atual tem nela uma das
vozes mais sólidas, de improvisos de alta vivacidade. Já Wodrascka, a veterana
do grupo com seus 59 anos, mostra que deveria ser mais celebrada: uma grande
pianista, sem dúvida.
Free
Electric Band ***(*)
Mette
Rasmussen/ Alan Silva/ Stale Soldberg
For Tune
Esse encontro registrado em julho de 2014, na Polônia,
reunindo a saxofonista dinamarquesa Mette Rasmussen, o baterista Stale Liavik Soldberg
e o lendário baixista Alan Silva tem momentos fortes, mas não chega a ser um
trabalho imprescindível. Trata-se apenas de uma longa improvisação, 45 minutos
sem cortes. Talvez se Silva estivesse focado no instrumento que o consagrou (ou
seja, o baixo) o resultado fosse mais efervescente – mas ele prefere explorar apenas
sintetizadores, o que nem sempre soa muito inspirado, por vezes meio que ecoando
um fusion datado, enquanto sax e bateria destilam um free bem enérgico. Na
outra ponta, Mette Rasmussen confirma o porquê de ser uma das figuras mais
interessantes da cena contemporânea. O trio entra de uma vez, com tudo, e a
saxofonista, mesmo sendo a mais jovem deles, parece comandar o processo, de tão
à vontade – com solos sempre inventivos e uma dicção cada vez mais particular e
precisa, ela centra nossa atenção e exibe o melhor do conjunto.
Serpentines ****(*)
Ingrid Laubrock
Intakt
Ingrid Laubrock reuniu figuras basilares do free de hoje
para conduzir este seu novo projeto. Ao lado da saxofonista alemã (radicada em
NY desde 2008) está uma fantástica escalação: Peter Evans (trompete), Dan Peck
(tuba), Craig Taborn (piano), Sam Pluta (eletrônicos), Miya Masaoka (koto) e
Tyshawn Sorey (bateria). São cinco peças de Laubrock registradas em maio de
2016 no Systems Two, no Brooklyn. Diferentemente do que os nomes envolvidos possa
fazer imaginar, energy music não é o foco aqui: as improvisações desenvolvidas
lidam com muitas sutilezas e resvalam por vezes um universo que poderíamos
associar ao do avant-garde erudito. O colorido propiciado por uma
instrumentação tão incomum – afinal, temos tuba, eletrônicos, koto... – se
torna um dos pontos fundamentais do trabalho; a pontilhística faixa de
abertura, “Pothole Analytics Pt. 1”, representa bem isso. Já sua sequência (a
“Pt. 2”) mostra o septeto trabalhando polifonicamente, em um jogo harmônico de
grande inventividade. Laubrock tem se mostrado uma líder de múltiplas ideias,
criando nos últimos tempos projetos variados de amplo interesse (Anti-House,
Ubatuba...) e este Serpentines é realmente singular. Esperamos que venham novos
capítulos.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente
escreve sobre livros e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a
revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)