Apanhado de novidades imperdíveis da free music.
Música criativa em suas mais diversas configurações.
Ouça, divulgue, compre os discos.
Flowers ****(*)
Joe McPhee
Cipsela
Um dos mais inquietos nomes dentre os que surgiram na década
de 1960 e ainda se mantêm ativos, Joe McPhee, 77 anos, colocou no mercado uns
dez discos apenas em 2016. Flowers é um dos títulos editados nos últimos meses
e traz o veterano saxofonista ao vivo, em concerto para sax alto solo realizado
há um tempo já razoável – mais precisamente em 4 de junho de 2009, no festival
Jazz ao Centro, em Coimbra. A apresentação editada apenas agora traz sete temas, cada
um dedicado a alguém importante para o artista (a maioria, na realidade, são mestres
do sax alto, como Braxton, John Tchicai e Julius Hemphill). O conjunto é
bastante diverso em sua unidade, mostrando faces variadas da voz de McPhee. A
belíssima “Old Eyes” – subtitulada como “For Ornette Coleman” –, por exemplo,
exibe um lado mais lírico do saxofonista, que soa tristemente encantador nos
primeiros minutos da peça. Em outro extremo está “Third Circle” (For Anthony
Braxton), mais tecnicamente desafiadora, com McPhee trabalhando a respiração
circular e criando camadas de maior abstracionismo. Já “The Whistler” (For Mark
Whitecage) se desenvolve com marcante vagar, em meio a sussurros e quase
silêncios, com o sax alto obrigando nossos ouvidos a centrar atenção máxima. “Flowers”
é, sem dúvida, um momento especial na longa lista de discos solistas que McPhee
assina.
Elastic ****(*)
Joélle
Léandre/ Théo Ceccaldi
Cipsela
Encontro de cordas e gerações, Elastic reúne a veterana
baixista Joélle Léandre, 65 anos, e o violinista Théo Ceccaldi, 30. O duo francês
explora nesta parceria captada em outubro de 2015 um conjunto de seis temas,
nos quais técnica, lirismo e inventividade improvisativa se unem para alguns
sublimes momentos. Os dois instrumentistas já haviam gravado juntos antes, como
atesta “Can You Smile” (2013), do Théo Ceccaldi Trio que contou com a
participação especial de Léandre. Mas o belo diálogo travado por eles aqui vai
além de encontros anteriores: é algo que nasce de uma cumplicidade estética, de
necessidades criacionais próximas. Isso fica claro na sombriamente meditativa
“Elastic 1”, que abre o álbum de forma envolvente – impossível parar de
escutar depois deste início. Entre arco
e pizzicato, vemos o duo gestar uma música de grande beleza, que não nega picos
de intensidade (como mais ao fim de “Elastic 3” ou na vigorosa abertura da sequência “5”).
Inspirada estreia de um duo que muito pode oferecer.
Curado ****
Hurtmold e Paulo Santos
Selo Sesc
Sexteto radicado em São Paulo, o Hurtmold já conta com 18
anos de estrada e elogiados álbuns na bagagem. Neste novo Curado, o grupo
recebe um convidado especial: Paulo Santos, conhecido por sua longa história
com o Uakti. Juntos, apresentam 10 temas frutos de uma parceria que nasceu há
alguns anos nos palcos. O som instrumental do Hurtmold é muito bem estruturado
e centrado, sendo, até por sua natureza não improvisativa, menos simples do que
possa parecer inserir um convidado de forma harmônica. Mas a participação de
Paulo Santos, munido de várias de suas criações (saxtubo, cacho de PVC, berimcéu,
dentre outros instrumentos), funciona com perfeição, ampliando a já vasta gama
timbrística do sexteto, que traz: Ghilherme Granado (teclados, vibrafone),
Marcos Gerez (baixo, sintetizador), Mauricio Takara (bateria, percussão),
Fernando e Mario Cappi (guitarras) e Rogério Martins (clarinete, clarone,
teclado). Dentre as peças, vale destacar a impactante “7:30 Olha o Queijo”, Yice (que
traz as ruidosidades extremadas do conjunto)
e “Contas” (com sua cama percussiva de crescente potencialidade).
Oboe Solos ****
Paulo Chagas
Zpoluras Archives
O oboé está entre os instrumentos de orquestra menos
utilizados no universo free/jazzístico. Isso torna ainda mais interessante
ouvir esse passeio solo do português Paulo Chagas. De formação clássica, tendo
no oboé uma de suas especializações, Chagas trabalha também com outros sopros
(não aqui) e tem se envolvido com diferentes projetos, não apenas ligados ao
free impro. Neste registro solista, temos a oportunidade de ver sua
inventividade em ação plena, por 12 improvisações. De uma faixa a outra, as
explorações sonoras partem de investigações que levam o ouvinte aos extremos
das possibilidades do instrumento, em uma pesquisa de técnicas expandidas que
se inicia com o sugestivo título “Mind opening”. A variedade de resultados fica
bem evidenciada em faixas como “Demagogy”, e seu melodicismo de ar por vezes
oriental, as melancolicamente soturnas “Evening Colors” e “Another Evening
Colors”, chegando até as extravagâncias de “New Astrology for Smart People”e
“To Improve Mental Elasticity”.
Escape and Return
****
Paulo Chagas/ Fernando Guiomar
Zpoluras Archives
Paulo Chagas se une neste duo a Fernando Guiomar (guitarra
acústica) para improvisar em dez temas. Se em seu outro lançamento (acima)
Chagas tocava apenas oboé, aqui ele experimenta diversos outros instrumentos: flauta,
clarinete-sopranino, clarinete-baixo e sax alto. Os resultados oscilam junto
com as variações timbrísticas; os temas com flauta (como “Obtuse Triangle” e a
faixa-título), por exemplo, soam mais leves, meditativos, com algo que denuncia
o envolvimento mais antigo de Chagas com o universo folk-prog. O mais
desafiador do conjunto, porém, parece vir depois. “Nau dos Corvos”, um dos mais
extensos temas, vai adentrar sonoridades mais abstratas, com o sax demandando
respostas outras da guitarra (em um dos melhores momentos de Guiomar). “Mordacious”,
com Chagas ao clarinete, é outra dentre as mais bem arquitetadas, com as cordas
em máximo inventivo momento. Vale destacar ainda “Landscape with Mechanism”, o
tema saborosamente mais jazzístico do conjunto, com um pulsante clarinete-baixo
embalando o ritmo.
Monk ‘N’
More ****
Simon Nabatov
Leo Records
Nesse curioso registro, o pianista russo Simon Nabatov exibe
uma proposta dupla: revisitar o legado de Thelonious Monk e explorar novas propostas
suas. O álbum é composto pelo encontro de dois registros, que se alternam: o
primeiro grupo, com gravações de maio de 1995, traz releituras de clássicos de
Monk, como “Epistrophy” e “Pannonica”; o segundo, é composto por temas novos
gravados em 2013, chamados de “Eletroacoustic Extension (1, 2, 3...)”, nos
quais Nabatov adiciona à sua criação pianística “live electronics”. Os dois
conjuntos, apresentados de forma alternada, criam uma contraposição estética
marcada por embates entre sons acústicos e eletrônicos, standards e impro
livre, releitura e criação própria. A aglutinação desses trabalhos, que têm
quase duas décadas entre si, não é perfeita, mas a ideia, no geral, é bem
interessante.
Chant ****
Nuova Camerata
Improvising Beings
O Nuova Camerata é um quinteto formado por instrumentistas
(quase todos) portugueses que oferece neste seu primeiro registro algo como uma
música de câmara improvisada – um trabalho que carrega elementos tanto da
música erudita contemporânea quanto da improvisação livre europeia. O núcleo do
quinteto são as cordas; estão aqui Carlos Zíngaro (violino), João Camões
(viola), Miguel Leiria Pereira (baixo) e Ulrich Mitzlaff (violoncelo). A esse
quarteto de cordas soma-se o percussionista Pedro Carneiro, que se foca aqui na
marimba. Dividido em sete partes, esse “canto improvisado” se desenvolve por
meio de uma ampla pesquisa de sons, da qual nasce esse particular registro feito originalmente em
novembro de 2015 e agora apresentado. Uma música para ser ouvida no silêncio de
um teatro, que pode ir de um extremo com picos mais tensamente nervosos a
outros de modos mais líricos, sempre com um cuidado que parece artesanal em sua
concepção.
Owt ****(*)
Fail Better!
NoBusiness Records
O Fail Better! é um outro quinteto vindo de Portugal – mas
aqui a fatura é muito distinta da observada com o “Nuova Camerata” (acima). A começar
pela formação, que tem: Luis Vicente (trompete), Marcelo dos Reis (guitarra),
João Guimarães (sax alto), José Miguel Pereira (baixo) e João Pais Filipe
(bateria). Owt é o segundo título do grupo e mantém o alto nível criativo do
anterior Zero Sum (2014). Com cinco temas registrados em 26 de abril de 2014,
no Salão Brazil, em Coimbra, Owt apresenta uma hipnótica viagem, de tempos e
modulações variáveis, em que o coletivo está no centro – não é um trabalho para
solistas brilharem. “Former Times”, que abre o álbum, sintetiza a proposta do
grupo, com sua construção de intensidade crescente, onde nossos sentidos são engolfados
com vagar, levados pelas intervenções circulares dos sopros – um diálogo em que
as frases ecoam e/ou são complementadas – até o clímax final. Tal processo surge
com maior vigor no lado B (pensando no formato vinil), que inicia com a longa “Circular
Measure”, que chega de forma mais direta, com o impacto sonoro do quinteto já
elevado lá pelos dois minutos, em alta pressão que segue até o desfecho do tema
bem à frente. Para completar o registro, “Stellar” muda o tom novamente, agora
exibindo o modo mais contemplativo do quinteto. Edição limitada de 300 LPs.
Falling and 5 Other Failings
***(*)
Mats Gustafsson/ Christof Kurzmann
Trost Records
Em meio a um ano bastante prolífico, Mats Gustafsson ainda
tem fôlego para soltar mais algum material inédito. Falling and 5 Other
Failings é um duo com o austríaco Christof Kurzmann, um
frequente parceiro de um habitual parceiro de Gustafsson, o saxofonista Ken
Vandermark. Diferentes processos são utilizados pelos artistas para trabalharem
seis temas: Gustafsson toca tenor, slide, baixo e barítono saxofones; Kurzmann
comanda um “special ppooll software” e voz (“live processing”). O resultado é um
disco feito mais de detalhes, ruidosidades mínimas, do que de densas
explorações sonoras. “Failing III”, com o sopro gravíssimo, arrastado e soturno
traz provavelmente o material mais expressivo do disco. Um trabalho de
pontos inventivos, mas não indispensável. Outro lançamento em edição limitada em vinil,
300 cópias.
Live at Zaal 100
****(*)
Twenty One 4tet
Clean Feed
Este verdadeiro encontro internacional se deu em Amsterdã,
em 27 de setembro de 2015. No quarteto, estão os holandeses Wilbert De Joode
(baixo) e Onno Goevart (bateria), aos quais se juntaram o português Luis
Vicente (trompete) e o norte-americano John Dikeman (sax tenor). Aqui estamos
mais propriamente no campo free jazzístico, com momentos de energy music
realmente contagiantes. O robusto, encorpado sopro de Dikeman – que se desdobra em quentes solos – se revela uma combinação fantástica com o ácido trompete de
Vicente. Sax e trompete, aliás, mantêm as explorações solistas em ponto
elevado, com bateria e baixo fazendo uma base propulsora de alta energia. “Red
Moon”, que abre o álbum, mostra em seus pouco mais de 6 minutos esta energia de
forma concentrada, com pontos de grande ebulição (como no incandescente solo de
Vicente). Já Dikeman talvez tenha seu melhor no furioso solo de “Rising Tide”,
o tema seguinte. Não sei se foi um
encontro ocasional ou se daí saiu um grupo, mas seria bom poder ouvir mais
disso...
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online
portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)