O guitarrista português Luís Lopes lançou nos últimos meses trabalhos
com diferentes parceiros, nos quais podemos apreciar expressões variadas de sua
arte. Destacamos os quatro últimos álbuns em que Lopes participa.
Garden ****
Luís Lopes/ José Bruno Parrinha/ Ricardo Jacinto
Clean Feed
Garden é o primeiro registro deste novo trio português formado
pelo guitarrista Luís Lopes ao lado de José Bruno Parrinha (saxes alto/soprano
e clarinete) e Ricardo Jacinto (violoncelo e eletrônicos). São sete faixas
registradas em duas sessões em fevereiro de 2015, com improvisação livre
desenvolvida de forma muito equilibrada. Este é o tipo de parceria em que os
músicos encontram o rumo ideal para canalizar suas ideias por meio de um
frutífero diálogo, em que cada voz, entre sons acústicos e eletrificados, tem
papel de relevância similar, com as entradas e saídas de cada instrumento
fluindo de forma precisa. E isso vale tanto para as peças desenvolvidas de
forma mais letárgica e coletivamente centrada, como “1030”, como nas que
um ou outro instrumento impetuosamente se sobressai, mesmo que por breves momentos. Veja, por exemplo,
o tema “744”, em que a guitarra ruidosamente urra por alguns minutos, em um
mergulho noise que aviva as atenções. Ou ainda o espaço protagonista do sax em “516”,
aberta com o alto em solo rude que se desenvolve sobre uma camada de fundo, uma
base textural de guitarra e violoncelo que vai crescendo lentamente e se misturando
ao sopro (em um dos pontos de intensidade maior do registro).
Out Room
****
Luís Lopes/
Gonçalo Almeida/ Rogier Smal
Cylinder Recordings
De passagem pela Holanda em abril deste ano, Luís Lopes se
uniu ao baixista (também português) Gonçalo Almeida (radicado por lá) e ao
baterista local Rogier Smal. No pequeno espaço De Nieuwe Ruimte, em Roterdã,
registraram ao vivo as três peças aqui reunidas. Chamadas apenas de 01, 02 e 03,
as faixas funcionam como um processo contínuo, uma longa improvisação que se
desenvolve lentamente em diferentes camadas de intensidade. “1” abre bastante
arrastada, com bateria e baixo dando os primeiors passos, à espera de que a
guitarra, em notas espaçadas, se junte a eles. Esse fluxo vai sendo construído
com vagar, acostumando os ouvidos ao processo do trio; Lopes e Smal vão
acelerando a coisa lá pelos seis minutos, com Gonçalo trazendo um novo colorido
ao empunhar o arco e elevar o tom no minuto final. Apesar de demonstrar
inicialmente um esquema parecido, a faixa “2” traz outras possibilidades, com a
guitarra adentrando um campo de ruídos possíveis, atingindo seu clímax em torno
dos nove minutos, antes de o baixo se perder em um solo sem pressa que altera a
voltagem novamente. “3”, a mais breve,
parece também a menos desafiadora, soando como uma conclusão do melhor
apresentado antes. Não sei se este foi um encontro ocasional ou se um novo trio
se estruturou daí, mas, de qualquer forma, deixa como testemunho alguns momentos
de inventividade maior.
The Pineapple
Circumstance ****(*)
Luís Lopes/
Fred Lonberg-Holm
Creative Sources
Gravado em 30 de abril de 2015, esse duo de cordas – união da guitarra de Luís Lopes ao violoncelo do norte-americano Fred Lonberg-Holm – apresenta cinco temas de improvisação livre de complexa fatura. Entre dois e treze minutos, os temas oscilam até o esgotamento das vias tomadas em cada peça, nem mais nem menos, tudo justamente colocado. O disco parece crescer em intensidade progressivamente, como se “I”, com seus 2m48, preparasse o terreno para o que vem depois, tanto em duração quanto em impacto sonoro. Assim, chegamos aos resultados mais cáusticos e vibrantes, em especial a explosiva “III” – e sim, “IV” e “V” mantêm a temperatura realmente elevada. O experimentado violoncelista de Chicago, provavelmente o mais importante nome contemporâneo em seu instrumento, se mostra um parcerio ideal para as investigações mais ruidosas de Lopes: temos aqui um diálogo muito vivo, duas vozes que duelam e se complementam em um resultado bastante denso e expressivamente desafiador. No palco, a coisa deve ser ainda melhor.
Love Song ****(*)
Luís Lopes
Schhpuma
Luís Lopes editou há pouco seu novo
trabalho de guitarra solo, Love Song. Diferentemente do registro solista anterior
– “Noise Solo”, de 2013 –, em que, como sugere o título, a ruidosidade conduzia
a criação, temos aqui certa placidez minimalista no dedilhar das cordas. O
álbum se desenvolve em meio a uma árida fragilidade, uma delicadeza detalhista
que nos faz acompanhar cada nota com angustiada atenção – por vezes, um
processo sufocante. Isso se desenrola por uma sequência de nove faixas, que nos
levam por uma narrativa de amor, encontro e desencontro divididos nas duas
faces do vinil: no lado A, acompanhamos essa história pelos temas “Meeting”, “Love
Song”, “Evil’s Face”, “Purity of Feelings” e “The Beauty of Love”; no lado B, vemos
a ruptura se desenhar com “Deepest Profound Obscurity”, “Ever Eternal
Loneliness”, “Paradox Factor” e “The Sadness of the Inevitable End” (essa sequência
poderia desembocar nas ruidagens de “Noise Solo”, em uma continuidade dessa viagem solitária...). Do
mínimo sonoro extraído de cada tema, brota um lirismo que tanto nos diz a
partir de aparentemente tão pouco. O clima do álbum se completa com a nota da
contracapa, onde lê-se “recorded late night (...) at home in Lisbon”; junta-se
a isso a imagem (contracapa) do guitarrista cabisbaixo subindo as escadarias de
um beco e a foto de capa, com os objetos (a cadeira recoberta de roupas, o
case, a mala, a mesa...) dispostos lado a lado, próximos mas tão sós. Não é
música para ser ouvida de forma distraída ou perde-se a riqueza de cada
detalhe. Os dois álbuns para guitarra solo de Lopes fazem um perfeito
contraponto, complementando ideias e possibilidades, duas faces de um processo
criacional coeso, mesmo que bastante distinto; quem sabe um dia não sejam
reeditados juntos, lado A e lado B de um todo maior.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online
portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)