O free em livros brasileiros dedicados ao jazz




Há mais de meio século, o jazz começou a aparecer como tema de livros escritos por brasileiros. Considerando que os festivais nacionais dedicados ao gênero sempre costumaram ter um viés mais tradicionalista, deixando o free normalmente de fora, surgiu a curiosidade: como nossos livros tratam o jazz mais livre e radical?





A história de brasileiros escrevendo livros sobre jazz começa em meados dos anos 1950, quando o playboy carioca Jorge Guinle (1916-2004) edita o seu “Jazz Panorama”. O ano era 1953 e, salvo outro menos lembrado título publicado na mesma época – “Pequena História do Jazz”, de Sérgio Pôrto –, a iniciativa de Guinle ficaria como referência (praticamente) solitária nas estantes brasileiras por bastante tempo. 
É a partir dos anos 1980 que publicações nacionais sobre o gênero começam a aparecer, em meio à expansão dos festivais de jazz.  Hoje encontramos variados livros escritos por brasileiros (fora diferentes traduções) que abordam o jazz sob perspectivas diversas, apesar de a maioria se pautar em um enfoque histórico para apresentar o gênero. Consultamos esses títulos com um intuito claro: verificar como o free jazz tem sido tratado por aqui, de que forma essa face do gênero, ainda encarada como difícil e experimental (!), aparece em obras nacionais – deixamos de lado livros que reúnem apenas artigos (como “Jazz & Co”, de Vinicius de Moraes, e “Confesso que Ouvi”, de Érico Cordeiro), por terem outros propósitos em suas origens. O que o levantamento mostra é que o free tem sido abordado – em uma amostra que engloba mais de 30 anos de produção – como algo ainda marginal, do qual se fala, de modo geral, superficialmente, talvez apenas porque seja uma obrigação citá-lo devido a seu papel histórico na mutação do gênero, mesmo que não seja de muito interesse do autor. Abaixo, algumas impressões sobre como o free jazz é tratado em cada um dos livros consultados.




O que é Jazz
Roberto Muggiati
Brasiliense (1983) 
Livro básico de introdução ao gênero, parte da muito conhecida e ampla coleção “Primeiros Passos”, este O que é Jazz recebeu algumas edições desde que apareceu em meados dos anos 80. Sua função é, como se sabe, ser apenas uma introdução ao tema abordado. Então, não era mesmo de se esperar que o free pudesse ter maior destaque. De qualquer forma, o free está representado a partir de sua perspectiva histórica, estando presente no fim de dois capítulos: no titulado “Os anos 50”, fala-se de Ornette Coleman e do álbum “Free Jazz”; já em “A crise dos 60, 70, 80 etc.”, aparece Anthony Braxton e (isso é interessante) aborda-se (rapidamente, sim) o jazz como força política, a ligação com o movimento dos Black Panthers e a radicalização do discurso free




Jazz: uma história em quatro tempos
Roberto Muggiati
L&PM (1985) 

O jornalista Roberto Muggiati amplia aqui o trabalho iniciado um pouco antes com “O que é Jazz”. Como aponta o título, a obra é dividida em quatro capítulos, sendo um mais focado no blues (1) e os outros, sequencialmente, nas mutações e protagonismo de diferentes instrumentos, a ver: o trompete (2), o piano (3) e o saxofone (4). O free também é destacado aqui dentro de uma perspectiva histórica, apontando-se em cada capítulo alguns de seus protagonistas e sua representatividade na transformação do vocabulário do instrumento abordado. Por exemplo, no capítulo 2 são citados Lester Bowie e (Wadada) Leo Smith, a partir de seus papéis como membros da AACM; já no capítulo 4 irão aparecer Ornette (claro), Anthony Braxton e Steve Lacy.   




Elas também tocam Jazz
Luiz Orlando Carneiro
Jorge Zahar Editor (1989) 

Infelizmente esse interessante livro recebeu uma edição bastante simplória – e nunca mais foi reeditado. A ideia do livro é destacar especialmente as mulheres instrumentistas, que há muitas décadas fazem também esse som acontecer apesar de, na maioria dos casos, permanecerem à sombra de seus pares masculinos. Dentre as mais conhecidas, como Carla Bley ou Geri Allen, vemos surgir representantes do free que tiveram indiscutível importância para seus instrumentos, mas que, mesmo assim, costumam ser ignoradas: ganham verbetes a trompetista Barbara Donald, a pianista Marilyn Crispell e Alice Coltrane – esta, sempre lembrada mais como a esposa de Coltrane que tomou o assento de McCoy Tyner, foi genial pianista e harpista, com álbuns muito particularmente expressivos. Nomes vitais como Joelle Léandre e Irene Schweizer foram imperdoavelmente esquecidos (já destacadas quando da publicação do livro), mas vale a iniciativa de Carneiro.




O Jazz como Espetáculo
Carlos Calado
Perspectiva (1990) 

Fruto de uma dissertação, este O Jazz como Espetáculo é um bem estruturado trabalho que talvez soe um pouco duro para o leitor geral. Partindo da tese de que o lado espetáculo (no sentido teatral da palavra) sempre esteve presente no jazz em suas mais diversas mutações na história, Calado estuda como isso se desenvolveu/apresentou em diferentes períodos, estilos e protagonistas. Desde os primórdios do gênero, chega-se até o avant-garde, com o livro contextualizando (também) o papel do free nesse processo de espetacularização/teatralização do fazer jazzístico. Além de destacar Sun Ra, há um espaço especial para o Art Ensemble of Chicago – o grupo é estudado a partir das particularidades de seus shows e sua ligação com o happening.





Guia do Jazz
Sérgio Karam
L&PM (1993) 
Este guia de ar enciclopédico infelizmente nunca recebeu uma reedição. Como o intuito de Karam foi destacar os músicos por verbetes que trazem, no final, indicação de discos (não faltando edições nacionais, em uma época em que álbuns de jazz ainda eram lançados com certa regularidade no país), o guia ficou, inevitavelmente, desatualizado. Mas é instigante constatar que Karam é um sujeito aberto a tudo de mais expressivo que surge na seara jazzística, incluído aí o free, mas conduzindo seu trabalho sempre de forma crítica (como diz ele, “tudo se perdoa, menos o Kenny G”). Dessa forma, estão presentes, em meio a figuras clássicas do jazz e aos pioneiros do free, nomes como Henry Threadgill, John Zorn, Hamiet Bluiett, Sam Rivers, Julius Hemphill... Lacuna: uma sentida ausência dos europeus.     




New Jazz: de volta para o futuro
Roberto Muggiati
Editora 34 (1999) 
Ao que parece, Roberto Muggiati tinha uma linha clara para conduzir esse livro dedicado ao que seria à época (fim dos anos 90) o jazz contemporâneo, algo que fica mais explícito no capítulo 5, que se chama “Wynton, the winner”. Todavia, como o autor não é um tradicionalista/reducionista, ele também aborda músicos que não fazem parte do núcleo “vencedor” dos young lions seguidores de Marsalis. Há, assim, espaço para algo de fora, cabendo aí uma ou outra figura do free. Com capítulos dedicados a expoentes de cada instrumento, especialmente de meados dos anos 80 até a data em que o livro foi publicado, vemos Ivo Perelman, por exemplo, ter três páginas focadas nele na parte em que são abordados os saxofonistas. O livro também vai falar um pouco do trabalho de John Zorn, Gerry Hemingway e Gregg Bendian – mas acaba não indo muito além disso. Fica a questão: como que um livro que foca o universo jazzístico dos anos 90 pode ignorar (por completo!) a existência de Ken Vandermark, Matthew Shipp e David S. Ware? Ou William Parker, que conduziu alguns de seus principais projetos exatamente naquela década? E isso para ficarmos apenas na cena de NY. Quem sabe em uma nova edição...




Jazz: das raízes ao pós-bop
Augusto Pellegrini
Códex (2004) 

Tentando traçar um panorama do gênero, o autor praticamente repete a estrutura utilizada por Joachim-Ernst Berendt em seu clássico “O Livro do Jazz”. A ver: os capítulos são divididos em “instrumentos”, “cantores”, “combos”, “grandes nomes” e “estilos”. É apenas nesta parte (estilos) que o free jazz é abordado, em pouco mais de duas superficiais páginas. Sem saber muito o que dizer, o autor gasta meia página elencando músicos que em cada instrumento teriam feito o free acontecer. E nessas citações de “executantes” de free (como ele diz), vemos espantosamente surgir nomes como: no piano, Herbie Hancock; no sax tenor, Sal Nistico; no soprano, Jan Garbareck; e no baixo, Ron Carter – que belo combo de free!(?). O free jazz maltratado como nunca.




Glossário do Jazz
Mário Jorge Jacques
Biblioteca 24horas (2005. 2ª edição, 2009) 
Como o nome diz, esse trabalho de Mário Jorge Jacques é um glossário, que tem o intuito de facilitar as consultas por quem pretende adentrar esse universo artístico. A segunda edição, ampliada e revista, traz 1.745 verbetes, entre termos técnicos, conceitos e expressões do jazz, selos, estilos, instrumentos, até apelidos de músicos ou nomes de grupos. Em meio a tanta informação, o autor não ignorou o campo free jazzístico e podemos ver nas páginas entradas interessantes como a que aborda a teoria colemaniana dos “harmolodics” ou a AACM, o destaque a selos como ESP, Incus e Emanem, a abordagem da cena loft, dentre algumas outras surpresas. É interessante ver no verbete “saxello”, por exemplo, ele citar dentre os que o tocaram o britânico Elton Dean, ou entre os violinistas aparecer os nomes de Leroy Jenkins e Billy Bang. O autor consegue deixar certos preconceitos de lado e, mesmo que não seja (ou não queira ser) um especialista no universo free, consegue ir um pouco além do que habitualmente tem sido oferecido nos livros nacionais dedicados ao jazz.




Jazz ao seu alcance
Emerson Lopes 
Multifoco (2009. 3ª edição, 2015)

O jornalista Emerson Lopes busca oferecer neste trabalho um amplo painel de introdução ao mundo do jazz. Mas não se trata de um livro que queira apresentar mais um panorama histórico do gênero ou ser apenas um guia de músicos e discos. A ideia é recomendar caminhos para que o leitor vá descobrindo esse universo musical. Assim, há um capítulo que lista sites sobre o gênero, outro elenca rádios e podcasts, outros trazem lojas, revistas, gravadoras, festivais, além de destaque para músicos e discos. A proposta de Lopes, que trabalhou por anos em lojas de discos, é a de tentar exibir uma ampla variedade de estilos e subgêneros que tenham ligação com o jazz: como se se tratasse, no fundo, de uma grande loja com infindáveis seções. Tudo bem que o free tem menos espaço até que o smooth, mas ao menos não é ignorado – e nem fica preso aos pioneiros e ícones primeiros. É bom poder ver na parte “artistas” entradas para Ken Vandermark, Peter Brotzmann, Mats Gustafsson e Matthew Ship; Ivo Perelman também marca presença. Em  “gravadoras”, são lembradas HatHut e Clean Feed. Quem chegar ao mundo do jazz por aqui terá ao menos algumas chances de saber que, sim, o free contemporâneo existe.



Universos do Jazz (2 volumes)
Sylvio Lago
Biblioteca 24horas (2015) 
Esse ambicioso projeto de Sylvio Lago busca traçar um painel muito amplo do jazz, indo de um panorama histórico e abordando termos, elementos e figuras de destaque do gênero. Também há capítulos dedicados a discutir outros vieses que cercam esse universo, como a comercialização do gênero, os produtores, os historiadores e críticos, o jazz fora dos EUA etc, em dois volumes que totalizam mais de 500 páginas. Um trabalho interessante, que deve ser fruto de muito tempo de pesquisa e que merece ser conhecido. Mas, infelizmente, ao free jazz dá-se apenas seu espaço histórico inicial, como é o mais comum ocorrer, destacando-se a revolução dos anos 60 e alguns de seus  protagonistas (Cecil,  Ornette, Ayler...). Até por ser um trabalho novo, merecia ter espaço para discutir a reinvenção do free a partir dos anos 90, o modern creative e mesmo a free improvisation europeia. Ou seria pedir demais? 



Jazz: Músicos da Tradição e Modernidade (2 volumes)
Sylvio Lago
Biblioteca 24horas (2016) 

Como que um desdobramento de “Universos do Jazz”, este novo material assinado por Sylvio Lago reúne em verbetes muitas dezenas de músicos de jazz. Os artistas são reunidos em capítulos dedicados aos estilos (“Nova Orleans e Dixieland”, “Chicago”), com alguns nomes específicos (como Coltrane) com entradas próprias. E há muitos “mestres” nesse levantamento (“Mestres do saxofone moderno”, “Mestres do bebop”, “Mestre do cool jazz”), mas não do free, claro... Como sempre, do mundo free jazzístico são resgatados apenas os pioneiros e algo da “second wave”: sob a rubrica “O Free Jazz”, são elencados apenas 11 nomes: Cecil,  Ornette, Ayler, Marion Brown, Anthony Braxton, Archie Shepp, Don Cherry, Steve Lacy, Roswell Rud, Charlie Haden e  Eric Dolphy, ou seja, uma lista muito enxuta e óbvia, que aparece em qualquer livro de jazz dos últimos 50 anos... Infelizmente, nem figuras basilares do free primeiro são destacadas, como Art Ensemble of Chicago ou Sun Ra, o que dizer então dos europeus, japoneses, dos contemporâneos...  






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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)