Após uma sequência de parcerias, o português Motion Trio,
comandado pelo saxofonista Rodrigo Amado, retorna a seu formato original.
Para
este Desire & Freedom, o sax tenor de Amado está acompanhado apenas pelo violoncelo
de Miguel Mira e a bateria de Gabriel Ferrandini, como quando o trio estreou em 2009.
Em seus últimos álbuns, o Motion Trio recebeu a adição do
trompete de Peter Evans (“Freedom Principle” e “Live in Lisbon”, 2014) e do
trombone de Jeb Bishop (“Burning Live at Jazz ao Centro” e “The Flame Alphabet”,
2012/13). Aliás, receber convidados parece que se tornou algo vital no percurso
do trio. Além dessas gravações, eles têm tocado junto a outros músicos sempre
que possível; no ano passado, por exemplo, o trio se apresentou, em diferentes
oportunidades, com os pianistas Matthew Shipp e Rodrigo Pinheiro. Também já
levaram ao palco com eles o guitarrista Luis Lopes e o baixista Hernani
Faustino, sempre formando quartetos. Por isso, é especial vê-los centrados como
no início, tocando apenas os três juntos.
Desire & Freedom chega em um momento importante na
trajetória desses artistas. Rodrigo Amado teve em 2015 um ano especial, ficando
no topo da eleição de melhor saxtenorista dos críticos internacionais da “El
Intruso” e vendo seu álbum “This is Our Language” se destacar em diferentes “Top
10”. Gabriel Ferrandini, que no ano passado viu seu álbum “Casa Futuro”
(com Johan Berthling e Pedro Sousa) receber notas máximas de diferentes
críticos, já deixou para trás os rótulos de “revelação” e “promissor” e hoje se
firma como um dos mais sólidos bateristas em atividade. E Miguel Mira, um dos
mais inventivos nomes do violoncelo contemporâneo, tem mostrado sua
versatilidade em empolgantes projetos outros, como o trio “Earnear” (com João Camões e Rodrigo Pinheiro), que teve
muito elogiada estreia em 2015 – algo da sonoridade ímpar do Motion Trio se deve exatamente à presença do violoncelo, que ocupa o espaço tradicionalmente reservado ao
baixo trazendo novos coloridos.
Com Desire & Freedom,
os três voltam a unir de forma concentrada suas forças. Os anos de estrada e
palco fizeram com que o Motion Trio atingisse um ponto elevado de equilíbrio e
intensidade criativa; cada músico sabe exatamente como interagir e integrar seu
som ao dos parceiros, fazendo do trio um grupo coeso e focado. Este novo álbum traz três longos temas, registrados em fevereiro passado no mesmo
Namouche Studios (Lisboa) onde o trio gravou seu disco de estreia cerca de sete
anos antes.
O primeiro tema, “Freedom is a two-edge sword” (nome tirado
de uma obra de Jack Parsons, de 1946), nos coloca diretamente emergidos no som
característico do trio, com Ferrandini conduzindo as trilhas com seu multifocal
toque, onde muitas pequenas coisas acontecem e nos circulam ao mesmo tempo,
enquanto Mira preenche os espaços ainda possíveis com seu dedilhado de rápidas
alternâncias de velocidade, em meio aos quais Amado constrói um solo de intensidade crescente, que
atravessa praticamente a peça toda e atinge sua plenitude apenas lá pelo fim do
tema.
“Liberty” vem na sequência com um esquema diferente, tendo em seus primeiros
três minutos o foco na conversa de violoncelo e bateria, para apenas aí o tenor
entrar, lentamente. De forma contida e pausada, o sax faz quase que um
contraponto ao oscilante vigor discursivo travado pelos os outros dois
instrumentos, para apenas se aglutinar perfeitamente lá pelos sete minutos,
quando Amado eleva o tom. Mas a integração total em explosivo diálogo demora ainda um pouco para ocorrer (e brevemente), lá pelos 11 minutos, onde se alcança o pico enérgico
da criação, antes de se dissolver nos momentos finais.
“Responsibility”, que encerra o álbum, é também o tema mais
extenso do conjunto, com seus 20 minutos de duração. A faixa abre com o sax
tenor como que convocando seus parceiros, que respondem de pronto. Aqui
sente-se Amado mais ao centro da peça, como que a conduzindo, abrindo os rumos
a serem explorados pelo trio. Com controle pleno de suas ideias, do que quer (e
tem) a dizer com o sax, Amado pode oscilar, como mostra aqui, entre passagens mais melódicas e
pontos de liberdade extrema, de solos faiscantes (como o exibido lá pelos
5 minutos), como que jogando com a dualidade que marca o título do álbum e dos
temas – os dois gumes: liberdade e responsabilidade.
Com Desire & Freedom, o Motion Trio atinge um de seus
ápices criacionais e nos deixa sob a expectativa do que virá depois (novas
parcerias? novas possibilidades em trio?)...
Desire & Freedom
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Motion Trio
Not Two Records
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online
portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)