O trompetista de NY Peter Evans lança novos álbuns com dois
de seus mais importantes projetos. Com seu Quintet, chega Genesis; em formato
solista, vem Lifeblood. Mais dois incríveis registros de um dos nomes
fundamentais da free music contemporânea...
Genesis ****(*)
Peter Evans Quintet
More is More
Quando surgiu com “Ghosts”, em 2011, o Peter Evans Quintet
foi celebrado como uma das revelações da cena free daquele ano. Depois o grupo editou
o também elogiado “Destination: Void” (2014); agora, chega a este Genesis. Ao
lado do trompete de Evans estão Tom Blancarte (baixo), Sam Pluta (eletrônicos),
Ron Stabinsky (piano) e Jim Black (bateria). A música, registrada ao vivo em novembro de 2015 (Europa) e fevereiro de 2016 (NY) mantém o empolgante esquema das gravações anteriores, com temas desenvolvidos de forma precisa, em quase
100 minutos de novos sons. A forma como a banda se apresenta resume bem (se isso é possível) o som que se propõe a fazer: uma mistura de improvisação, live electronics,
groove, melodia e noise, em meio também a algo composto, em uma revitalização
do que de melhor a free music tem gestado. O álbum pode ser dividido em ao
menos dois grandes blocos (ou dois discos): no primeiro temos sete faixas,
divididas em temas maiores (Genesis/Schismogenesis é recortada em quatro
sequências), que soam como um show próprio, coeso. Na outra metade ficam as
cinco partes de “for Alice”, dedicadas a Alice Coltrane – a primeira dessas partes,
“Intergalactic” é uma homenagem explícita à genial pianista/harpista, com sua
sonoridade de ar espiritual, algo realmente diferente na discografia de Evans. Se
todo o quinteto se mantém em grande forma e sintonia, com momentos musiciais
criados realmente vivos, vale destacar o que mostra aqui o pianista Ron Stabinsky,
talvez a voz menos conhecida do quinteto, que oferece alguns dos momentos mais
inspirados do registro, quer seja no belíssimo solo de “Genesis- stage 2” ou no
sombrio (quase filme de terror) tema criado em “Patient Zero”.
Lifeblood *****
Peter Evans
More is More
O trabalho para trompete solo tem sido fundamental na trajetória de Peter Evans desde que estreou no universo da free music. Não à toa, o primeiro
álbum que editou foi exatamente um disco solista (“More is More”, 2006). Uma
década e mais dois álbuns solísticos depois (“Nature/Culture”, de 2009, e “Beyond
Civilized and Primitive”, 2011), Evans chega a este Lifeblood. Essa década de
desenvolvimento solístico permitiu que Evans alcançasse a excelência: Lifeblood
não é apenas seu melhor trabalho nesse formato, mas provavelmente o mais
importante registro para trompete solo já realizado. Os trabalhos solísticos para
trompete podem não ser tão frequentes quanto os feitos para saxofone, mas têm
uma história tão antiga quanto, na qual vale destacar os registros pioneiros de
Bill Dixon (“Odyssey”), Wadada Leo Smith (“Creative Music -1”) e Baikida
Carroll (“The Spoken Word”) ainda nos anos 70. Mas Evans tem se focado como
poucos no formato, tocando constantemente assim nesses tempos – tanto que
tivemos a oportunidade de vê-lo exatamente em ação solística no Brasil neste ano – e
ampliando o vocabulário do instrumento como nunca antes. Dono de técnica
excepcional, Evans tem explorado todas as variantes sonoras e acústicas
possíveis a partir de um simples trompete, respiração, embocadura, intensidade, ruidagens, tudo está posto para ser revirado e reinventado. Lifeblood traz quase duas horas de
música, dividida em diferentes sessões captadas nos últimos dois anos. A
faixa-título, que abre o conjunto com 27 minutos de improvisação, foi registrada
em abril de 2016 e serve como uma dilatada apresentação ao que o músico tem
desenvolvido, com muitas variações de intensidade que ilustram o amplo painel
de investigação que o tem conduzido. Daí temos uma incrível sequência de oito temas
menores, que variam de 2 a 8 minutos, frutos de uma residência no Roullette Intermedium
entre 2015 e 2016. Esses temas mais breves revelam facetas surpreendentes do
que tem feito de forma concentrada (uma ideia de cada vez), levando os ouvidos
a indagarem aqui e ali: mas isso pode ser apenas um homem e um trompete? “Humans!”,
por exemplo, parece por vezes evocar ruídos de pedais e guitarra, algo
desconcertante que também aparece em “Mirrors of Infinity”... Já “Pathways”, parece
tocada ao contrário, como se a ordem fosse sugar o instrumento ao invés de
soprá-lo; quando estamos sem saber o que virá, Evans mostra que sabe também soar
lírico, com as sequências 1 e 2 de “Night”. Para fechar o álbum, a extensa “Prophets”,
com 40 minutos divididos em três partes, nas quais suas ideias são
desenvolvidas de forma mais extensa, testando limites de possibilidades, um
concerto completo, em suma (a parte 2 é seu epicentro explosivo, com a peça
destilando energy music e ruidosidades como nunca). Depois de ouvir o disco sem
pausas, fica a impressão de que tudo que Evans tinha a dizer no trompete solo
está aqui, um universo expressivo completo... Quantas mais surpresas guarda
ainda?
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e
jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)