O selo francês Fou Records tem discretamente colocado no
mercado importantes gravações de ontem e de hoje, apresentando também
artistas menos conhecidos que têm ajudado a fazer a free music...
Criado em meados de 2012 pelo franco-argelino Jean-Marc
Foussat, o selo Fou Records já conta com um catálogo de aproximadamente vinte
títulos, entre álbuns de improvisação livre, free jazz e música
eletroacústica/eletrônica. Foussat é um veterano das experimentações
eletrônicas que, apesar de ter editado seu primeiro álbum, “Abattage”, em 1983,
apenas passou a gravar com regularidade nos anos 2000. Nesse intervalo,
trabalhou muito mais como engenheiro de som, registrando e aparecendo nas notas
técnicas de muitos discos de Steve Lacy, Derek Bailey e Joelle Léandre, dentre outros nomes da free music. O Fou Records estreou com um disco solo do próprio Foussat,
“L’oiseau”, mas a ideia do selo não é se restringir à produção do artista. Em
linhas gerais, o Fou Records se divide em três tipos de lançamentos: projetos
solo/parcerias de Foussat; gravações de músicos novos/menos conhecidos;
registros antigos e inéditos de instrumentistas consagrados do free. Para apresentar
o Fou Records, destacamos alguns dos últimos títulos editados (e o disco que
inaugurou o selo).
L’oiseau ****
Jean-Marc Foussat
Fou Records
Nesse álbum que inaugurou o catálogo do Fou Records, Jean-Marc
Foussat aparece sozinho, munido de sintetizadores (AKS, VCS3), dispositivos eletrônicos
e algo de voz, apresentando duas extensas peças suas. Editado também em vinil,
com uma faixa de cada lado, L’oiseau homenageia seu filho Victor, morto
precocemente em 2012 (além das duas longas peças, há um pequeno intermezzo, de
menos de 1 minuto, onde ouvimos apenas a voz de Victor, recitando um poema). Com
20 e 21 minutos, os dois temas (“La Vie S’arréte” e a faixa-título) se
desenvolvem de forma contínua, sem quebras – podem ser apreciados como um
grande painel –, oscilando entre momentos de maior ou menor uso de ruidagens,
pontos de quase silêncio seguidos por ataques, ondulações de potência e
pulsações. O controle absoluto do processo demonstrado por Foussat faz dessa
uma experiência bastante envolvente.
En Respirant ****(*)
Marialuisa Capurso / Jean-Marc Foussat
Fou Records
Ao lado da cantora e artista sonora italiana radicada em
Berlim Marialuisa Capurso, Jean-Marc Foussat gestou este intrigante En
Respirant. As explorações vocais de Marialuisa se integram com perfeição à
criação eletrônica de Foussat, resultando em três peças inquietantes. Gravado
ao vivo no POP, em Berlim, em 19 de fevereiro deste ano, o álbum abre com o
tema mais longo, “Osmosis”, que se inicia de forma lenta e arrastada, com os
efeitos eletrônicos e a voz crescendo e ganhando intensidade gradativamente e preparando
o caminho para o melhor do conjunto, “Purple Future”. Este, o segundo tema, oferece
o melhor da criação vocal de Marialuisa, com um jogo de camadas e repetições de
palavras e fonemas por vezes perturbador e hipnótico. A última peça, “Place du Marché”,
é a que tem o menor aproveitamento vocal, que cresce apenas de sua metade para
frente, mas não atinge os pontos mais elevados ouvidos antes. É curioso que a
discografia de Marialuisa Capurso praticamente inexista, sendo que, para
conhecer um pouco mais de seu trabalho, temos de recorrer a vídeos no Youtube. Espero
que essa parceria com Foussat renda logo outros títulos...
Mujô ****
Jean-Brice Godet Quartet
Fou Records
O jovem clarinetista francês Jean-Brice Godet criou seu quarteto
em 2012, ao lado de Michael Attias (sax alto), Pascal Niggenkemper (baixo) e
Carlo Costa (bateria); este “Mujô” é a estréia do grupo, tendo sido registrado
em duas sessões diferentes, em 2013 e 2014, no Brooklyn novaiorquino. São sete
faixas, nas quais o quarteto apresenta uma música construída com fluidez e bem
arquitetada, com os diálogos entre sax e clarinete/clarone criando alguns dos
melhores momentos. “Takanakuy”, que abre o disco, é tranquilamente a melhor do
conjunto, com os elementos free jazzísticos se desenvolvendo por meio de um
intricado tema que oscila com inventividade entre os sopros. Em outro extremo
está “La voix des cendres”, sombriamente construída amparada ora pelos graves de
baixo e clarone, ora por notas alongadas e dilacerantes do sax. “Ballade
suspendue” vai em linha parecida, porém de forma mais melodiosa e relaxada. Já “Eloge
de la chute” apresenta alguns dos momentos mais enérgicos e os solos mais bem
elaborados. Uma estreia prometedora.
Enfances *****
Lazro/ Léandre/ Lewis
Fou Records
Este álbum faz parte de uma série de gravações realizadas
por Jean-Marc Foussat nos anos 1980, e que agora têm sido editadas em seu selo. Enfances reúne três nomes referenciais da free music, o trombonista George Lewis, o saxofonista
francês Daunik Lazro e a baixista Joelle Léandre. Registro ao vivo feito em 8
de janeiro de 1984, surge pela primeira vez na íntegra, em quase uma hora de
música – trechos do material apareceram no disco “Sweet Zee”, que Lazro lançou
pela hatArt em 85. “Enfances” é dividido em 10 partes, que juntas compõem uma
peça de improvisação livre com momentos de intensa inventividade. Além do
núcleo sax-trombone-baixo, alguns elementos sonoros extras surgem pontualmente
para adicionar colorido ao material executado, como os brinquedos creditados a
Lewis e a voz de Léandre, decisiva em alguns momentos, como na parte “5”, a
mais extensa e desafiadora das variadas peças aqui apresentadas (que oscilam
entre 1 e 19 minutos). Improvisação livre vital, conduzida com genialidade e
equilíbrio, com os músicos trabalhando em sintonia e harmonia absolutas.
*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online
portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)