Ivo Perelman: safra 2016






Com uma série de novos títulos, parte já editada, outra parte por vir, o saxofonista Ivo Perelman faz deste seu ano mais produtivo, mostrando que sua música ainda tem muitos caminhos a explorar...




Por Fabricio Vieira

O saxofonista Ivo Perelman encerrará 2016 com nada menos que 11 discos lançados, um recorde mesmo para um músico prolífico como ele, que tem editado uma média de 2,5 títulos novos por ano desde que iniciou sua carreira, em 1989. Esse amplo material novo foi dividido em duas tranches. No primeiro semestre, saíram cinco títulos. O segundo pacote, com os outros seis álbuns – reunidos em uma série titulada “The Art of the Improv Trio” –, chega às lojas no mês de outubro. O que esses novos títulos demonstram é a consolidação de um ciclo que tem concentrado o trabalho de Perelman nos últimos anos. Poderíamos chamá-lo de ciclo Brooklyn, fase que abrange a criação do saxofonista realizada entre 2013 e 2016 e que tem sido produzida toda no Brooklyn nova-iorquino (onde Perelman mora) ao lado de um grupo fechado de parceiros – é como se se tratasse de um trabalho desenvolvido com uma roda de amigos, ali no bairro onde se vive. Na extensa obra de Perelman, diferentes ciclos podem ser reconhecidos, marcados por características estéticas e temáticas que definem cada um, como o inicial “ciclo brasiliano”, no qual o artista uniu elementos da música brasileira ao free jazz; o “ciclo impro”, quando passa a explorar de fato a improvisação livre; o “ciclo de cordas”; “o ciclo clariceano”...

O atual ciclo Brooklyn é um desdobramento do anterior – o clariceano – e representa uma consolidação de marcas que caracterizam o trabalho do músico de forma mais contundente ao menos desde 2010, como o maior lirismo, a produção massiva em estúdio e a participação rotativa de um grupo fechado de instrumentistas-parceiros. No “ciclo clariceano”, marcado por álbuns cujos títulos homenageiam Clarice Lispector com nomes de livros seus, Perelman voltou a trabalhar com alguns antigos parceiros (Matthew Shipp, Joe Morris) com quem não tocava há muito e que se tornariam fundamentais à consolidação da fase atual.
Algumas características marcam profundamente o ciclo Brooklyn, a ver: todos os títulos foram gravados no Parkwest Studios ou no Systems Two, ambos no Brooklyn (NY); as liner notes, assinadas sempre por Neil Tesser, o que traz uma coesão narrativa ao período; todos títulos foram editados pelo selo britânico Leo Records (com exceção de “One”, pela RareNoise); os álbuns não “maturaram”, chegando ao público poucos meses após serem registrados; todos os discos são em duo, trio ou quarteto, testando aí todas variações possíveis a partir de um núcleo fechado de parceiros, que são: no piano, Matthew Shipp; na bateria, Gerald Cleaver e Whit Dickey; no baixo, Michael Bisio, Joe Morris ou William Parker; guitarra, Joe Morris; e viola, Mat Maneri. Fora esses, os outros raros nomes que aparecem nessas gravações são amigos convidados de um dos envolvidos, como a violista/violinista Tanya Kalmanovitch, levada por Maneri para a sessão de “Villa-Lobos Suite”, e o baterista Balázs Pándi, que Morris chamou para “One”. Há ainda o vibrafonista  Karl Berger, este um novo amigo de Perelman, com quem gravou primeiramente dois duos, integrando-o agora a seus outros parceiros – em outubro, sai um disco em trio que traz Perelman-Berger-Cleaver.

A contar os onze novos títulos deste ano, este ciclo totalizará 27 álbuns editados (isso em quatro anos!). Enquanto não sai o pacote “The Art of the Improv Trio”, falemos um pouco sobre os últimos cinco álbuns que chegaram ao público: “Corpo”, “Blue”, “Soul”, “Breaking Point” e “The Hitchhiker”, compostos por três duos e dois quartetos.


Corpo é um novo duo entre o sax tenor de Perelman e o piano de Matthew Shipp. Não é difícil afirmar que Shipp é o principal parceiro de Perelman na atualidade. Não apenas pelas muitas  gravações que fizeram, mas pela cumplicidade estética que os têm feito criar um dos mais relevantes trabalhos de duo sax-piano da música livre. Corpo é o 5º álbum em duo gravado por eles – para Shipp, é o melhor que fizeram – e mostra que essa parceria, que esse diálogo, atingiu um nível de equilíbrio em que as duas vozes nunca se sobrepõem, moldando uma tessitura em que cada elemento é necessário, uma relação simbiótica da qual os dois extraem um terceiro elemento crucial, que só existe a partir desse encontro: é como se sax e piano  formassem um saxpiano, um novo complexo sonoro indissociável e que não pode ser repetido de outra forma. I feel Ivo and I have really delivered on our quest to create a rarefied duo cosmos and language”, escreve Shipp no encarte. Dividido em 12 partes, Corpo mostra como que essa interação funciona perfeitamente em todas suas variantes expressivas: há momentos belamente sombrios, como as partes “1” e “8”, há intensidade conflitiva (“3” e “12”), há quase-baladas (“5”). Há grande música, enfim. É curioso que em 2013 Perelman e Shipp tenham lançado “The Art of the Duet - Volume One”, sinalizando que aquele era o primeiro de uma série de encontros. Apesar de o “Volume Two” jamais ter aparecido, eles repetiram o bem-sucedido duo depois em “Callas”, “Complementary Colors” e agora em “Corpo”. Para 2017, a dupla está organizando uma turnê europeia... nada mau se acabassem desembarcando também por aqui...

Outro duo do pacote com certeza era aguardado por quem acompanha há tempos o trabalho de Perelman. Blue traz um (re)encontro com sabor inédito, um duo entre Perelman e Joe Morris, reeditando uma parceria de meados dos anos 90 que rendeu o álbum “Strings”. Mas há uma diferença crucial: lá, o que se ouviu foi Perelman tocando, pela primeira e última vez, violoncelo. Aqui, temos os dois em seus instrumentistas principais, sax tenor e guitarra, com alguns resultados surpreendentes. A música é muito distinta da de “Corpo”, mas não menos interessante. Talvez se tivesse sido gravado uma década atrás, Morris optasse pela guitarra elétrica. Mas com a atual sonoridade de Perelman, a opção pela guitarra acústica foi realmente a mais acertada. A faixa-título, que abre o álbum, atesta bem isso, com sua construção vagarosa e de quase silêncios. Em outro extremo, há a explosão das curtíssimas faixas “Bluebird” e “Instant” (cerca de um minuto cada), que criam um contraponto a temas mais lentamente desenvolvidos, como as tocantes “Almost Blue” e “Blue Lester”.

O terceiro duo do conjunto é The Hitchhiker, nova parceria com o veterano vibrafonista alemão Karl Berger. The Hitchhiker foi gravado em julho de 2015, pouco mais de um ano após o primeiro encontro entre os dois, captado em “Reverie”, que trazia sonoridade mais suave, com Berger ao piano. Tendo iniciado sua carreira ainda nos anos 1960, Berger, de 81 anos, é um dos nomes mais importantes do vibrafone associado ao free jazz. Nesse encontro, Perelman é convidado a explorar perspectivas diversas das que tem desenvolvido com seu núcleo atual de trabalho. O vibrafone é um instrumento com o qual Perelman praticamente não tocou junto trazendo, assim, um novo desafio interacional. E o resultado soa mais vibrante que o encontro anterior entre os dois. É mágica a sonoridade pontilhística com que Berger conduz a faixa de abertura, “The Shadowy Path”, que leva o sax a cantarolar melodias bailantes como não fazia há tempos. “The Well of Memory”, outra das maiores, tem uma aura distinta, algo nostálgica, com momentos sussurrados que levam a música a quase desaparecer em seus últimos dois minutos, forçando os ouvidos a captar cada fração sonora que ainda resta. Após esses dois encontros em duo, Berger começa a ser incorporado à turma, tendo gravado agora em trio com Gerald Cleaver.


Os outros dois títulos do pacote recém-lançado são quartetos. Apesar de apenas um instrumento variar de um grupo ao outro, o material gestado é completamente diverso. 
Soul é mais uma reedição de um encontro antes testado, sendo o mesmo quarteto que gravou “The Edge” e “The Other Edge”, com Shipp (piano), Bisio (baixo) e Dickey (bateria). Se olharmos apenas os nomes envolvidos poderíamos dizer que esse é o trio liderado por Shipp (com quem gravou álbuns como “To Duke” e “Root of Things”) + o sax de Perelman. Porém, a música feita aqui é completamente diferente do que seria o trio de Shipp convidando Perelman para tocar, algo que já ficava claro nos dois títulos anteriores que esse quarteto registrou. Soul parece mais relaxado, menos enérgico talvez que as duas outras gravações do quarteto, apesar de passagens mais densas, como as ouvidas em “Crossing” (que tem um dos mais contagiantes momentos dessa safra, quando lá pelos quatro minutos Shipp inicia um de seus fantásticos pequenos temas circulares, sendo respondido e atacado pelo sax), por exemplo. As soturnas faixa-título e “Joy” talvez sejam os melhores exemplares do espírito do álbum, com suas sutilezas. Gravado dias após “Corpo”, “Soul” não forma propriamente, como a edição pode sugerir, uma dupla de discos. As capas e os títulos (“Body and Soul”) dialogam, mas mesmo Perelman e Shipp, presentes nos dois álbuns, soam de forma diversa, interagem como peças de um quarteto e não como um duo + dois.    

Breaking Point traz um quarteto com outros instrumentistas, reunindo Morris (aqui no baixo), Maneri (viola) e o baterista Gerald Cleaver. Esse título pode ser encarado como um desdobramento de “Counterpoint”, lançado no ano passado, em trio que trazia Perelman ao lado de Morris e Maneri. E a adição de Cleaver mostra que era o elemento que faltava para catapultar a intensidade: Breaking Point soa em diferentes faixas realmente muito enérgico, mais que em qualquer um dos outros quatro álbuns agora editados, como não se vê a toda hora na música recente de Perelman. É indiscutível o quanto o saxofonista fica à vontade tocando com cordas (aqui, viola e baixo acústico), que parecem dar uma combustão extra a seu sopro. Basta colocar para tocar a primeira faixa, “Harsh Moon”, e lá pelos quatro minutos ouvir Perelman soltando faíscas como nunca – os duleos com Maneri são sensacionais. E isso não se restringe a esse momento inicial, basta ouvir também “Catch 22”. Em contrapartida, há as mais detalhistas e em certo sentido contemplativas “The Haunted French Horn” e a faixa-título.  Sem dúvida, um grande álbum.

Não dá para afirmar ainda que o ciclo Brooklyn estará completo após o lançamento do próximo pacote com os seis discos da série “The Art of the Improv Trio”. Mas podemos tatear pistas de abertura a novos rumos, como vimos acontecer em diferentes oportunidades na trajetória de Perelman. Recentemente, ele deixou seu Q.G. no Brooklyn para gravar em outro local com músicos que não pertencem a esse núcleo atual: os antigos parceiros Marilyn Crispell e Gerry Hemingway. Sinal de nova mudança, um novo ciclo que se abre? Quem sabe...  




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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com a revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)