William Parker: In Order to Survive





Se a vinda do William Parker Quartet ao país foi provavelmente a melhor notícia musical do ano passado, nada como poder agora ouvir em CD a inebriante música criada pelo grupo liderado pelo veterano baixista de NY...




Quem está à espera da divulgação da programação da 6ª edição do festival Jazz na Fábrica, que acontece no mês de agosto no Sesc Pompeia (SP), pode ir aquecendo os ouvidos com o novo título da série “Ao Vivo Jazz na Fábrica”, que tem registrado em CD um pouco da música executada no evento. O terceiro volume da coleção – que já conta com discos de Roscoe Mitchell e Anthony Braxton – traz o William Parker Quartet, que se apresentou na edição de 2015 do festival, nos dias 15 e 16 de agosto.
A coleção “Ao Vivo Jazz na Fábrica” não merece destaque somente pelo ineditismo da empreitada – quem imaginaria que esses músicos estariam não apenas tocando por aqui, mas tendo seus concertos registrados e distribuídos? –, mas também pelo cuidado com que o material tem sido editado. Todos os CDs são acompanhados de encarte bilíngue, com texto introdutório à música em destaque, algo especialmente relevante se considerarmos que muitas pessoas que acabarão por comprar o disco possivelmente desconhecem os músicos ali apresentados.

Uma pena que o texto de introdução a William Parker no CD tenha equívocos e deslizes que poderiam ser evitados para dar uma informação mais precisa a quem comprar o registro. Um dos momentos em que isso acontece é quando o texto do encarte fala sobre a discografia do músico: “Hoje sua discografia destaca mais de 20 álbuns individuais, além de participações em mais de 150 discos de parceiros”. O problema é que Parker fez muito mais do que isso. Se somarmos os títulos que Parker lançou com os diferentes projetos que criou (In Order to Survive, WP Quartet, The Little Huey Creative Music Orchestra, WP Organ Quartet, WP Violin Trio, Raining on the Moon etc.), ronda-se os 40 álbuns (isso sem contar grupos que coliderou ou as muitas gravações em duo que fez). Já se considerarmos todos seus registros, suas participações em disco como convidado ou parceiro nessas mais de quatro décadas de atividade (a primeira gravação em que aparece é “Black Beings”, de Frank Lowe, de 73), encontraremos mais de 300 títulos (os números 20 e 150 aparecem em um texto introdutório desatualizado no site do baixista).
 
Há também equívocos na hora de destacar um pouco da trajetória de Parker. Isso acontece na passagem em que o autor do encarte escreve que Parker gravou seu primeiro disco como líder em 1979, demorando depois para lançar um novo título. O texto diz: “Porém, talvez por modéstia excessiva, passou a década seguinte acompanhando Cecil Taylor, Don Cherry e David S. Ware...”. Sim, Parker acompanhou Taylor durante toda a década de 1980... mas Don Cherry? Os encontros entre Parker e Cherry nos palcos foram poucos. Em 1975, um jovem Parker teve a oportunidade de participar de uma gig com o Don Cherry Quintet no Five Spot. Depois disso, Cherry participou do evento cocriado por Parker, o Sound Unity Festival, em 1984. E não há muito mais do que isso registrado. Em relação a David S. Ware, Parker passou a trabalhar ativamente com o saxofonista apenas no fim da década, quando gravaram “Passage to Music”, em abril de 1988 (tocaram juntos antes, mas o quarteto de Ware que tomou bastante da rotina de Parker se estruturou apenas na entrada dos anos 90). Definitivamente não foram Ware e Cherry que ocuparam os dias de Parker na década de 1980. Também não foi nenhuma modéstia excessiva que fez com que não lançasse discos por mais de uma década. Os anos 1980 foram especialmente difíceis para os artistas ligados à free music – olhe o caso do próprio David S. Ware, que gravou seu primeiro álbum em 1977 (“Birth of a Being”) e conseguiu voltar a estúdio novamente apenas em 1988, após uma longa temporada trabalhando como taxista –, mais ainda empurrados para o underground em meio ao advento de Wynton Marsalis e seus Young Lions, com o neotradicionalismo que professavam monopolizando as atenções – lá fora e aqui também, onde os responsáveis pelos festivais de jazz locais sempre preferiram ignorar a existência de figuras fundamentais da música contemporânea (caso do próprio Parker), repetindo em seus line-ups os mesmos nomes por todos esses anos: é por isso que mestres como Parker, Anthony Braxton e Muhal Richard Abrams jamais tinham tocado no país até bem recentemente, o que só ocorreu no Jazz na Fábrica, com sua nova perspectiva curatorial...

A vida de Parker sempre foi de luta e ele muito fez pela sua música na década de 1980, em diversas frentes, compondo, tocando e divulgando a arte que professava. Em 1984, foi um dos criadores do independente Sound Unity Festival – cuja primeira edição aparece no filme “Rising Tones Cross” –, realizando uma segunda edição em 1988. Também desenvolveu muitos projetos novos e gravou, sim. Um pouco da música registrada por Parker nos anos 80 foi editada no box “Centering-Unreleasead Early Recordings”, que saiu apenas em 2012. Nessa caixa, encontramos gravações feitas pelo baixista e seus grupos e parcerias nos anos 1980, 84 e 87, música que nunca tinha tido a oportunidade de lançar. O baixista ainda formou nos anos 80 diferentes grupos com o qual se apresentou quando teve oportunidade, como o William Parker Ensemble e a William Parker Orchestra, além de passar a realizar apresentações de baixo solo e a compor peças para diferentes formações, de big bands a música para espetáculos de dança, tudo naquela década. Ainda antes de a década acabar, formou o quarteto Other Dimensions in Music, ao lado de Daniel Carter, Roy Campbell e Rashid Bakr. O quarteto entrou em estúdio pela primeira vez em abril de 1989 para gravar seu disco homônimo de estreia. Ou seja, Parker esteve intensamente ocupado com sua arte nos anos 1980...

Em outra passagem do encarte, está escrito: “Não à toa, quatro anos antes [1994], ele havia batizado seu sexteto de In Order to Survive”. Na realidade, In Order to Survive é o nome de um quarteto, formado por Parker ao lado de Susie Ibarra, Rob Brown e Cooper-More, que registrou seu primeiro incrível trabalho, “Compassion Seizes Bed-Stuy”, em dezembro de 1995. Existe uma gravação feita em 1993, essa sim realizada em sexteto, creditada a William Parker com o título “In Order to Survive”. O título também foi usado em peças; um exemplo: em 27 de junho de 94, Parker apresentou a composição “In Order to Survive: a piece for piano, strings, and voice”, com seus parceiros de quarteto (Brown, Ibarra e Cooper-More) e o violinista Billy Bang como convidado.
Mas, antes de mais nada, In Order to Survive (a fim de sobreviver) é um lema de Parker, que o acompanha há mais de três décadas: um extenso manifesto assinado pelo baixista em 1984 exibia o título “In Order to Survive: A Statement”, que traz as inspiradoras palavras:

The ideia is to cultive na audience by performing as much as possible on a continuous basis, not waiting to be offered work, rather creating work. Uniting with all those who hear. Those who are willing to go all the way.


O disco “William Parker Quartet” oferece mais de uma hora de música selecionada nos dois concertos realizados em São Paulo em agosto de 2015. Para quem conhece o grupo, formado por Parker, Hamid Drake (percussão), Rob Brown (sax alto) e Lewis Barnes (trompete), as apresentações soaram como deveria ser: esse não é o grupo mais energicamente free de Parker, tendo, como pode ser ouvido desde o primeiro álbum deles (O’Neal’s Porch, gravado em 2000), um foco maior nas composições. O baixista disse, em entrevista ao FreeForm FreeJazz, que toca "cerca de 200 composições originais com o grupo" e que apresentaria por aqui algumas peças desse songbook e novos temas, como de fato fez. Dentre as seis faixas selecionadas para o disco estão temas bem conhecidos como “Harlem”, gravada anteriormente pelo quarteto no álbum Sound Unity (2005), e “Corn Meal Dance”, que apareceu primeiramente com um outro projeto do baixista, o “Raining on the Moon”, com a cantora Leena Conquist.
“Deep Flower (dedicated to Andrew Hill)”, que abre o disco, traz alguns dos momentos mais saborosos, com o tema swingante dedilhado no baixo servindo de propulsor para os solos inspirados de trompete e sax (Brown soa especialmente desconcertante). A peça, a mais longa com seus quase 14 minutos, tem espaço ainda para um diálogo de baixo-bateria em seus minutos finais, que exibe um pouco do que Parker chama de trance music, com ele e Drake inebriando nossos sentidos.  Há espaço também no álbum para certa visada world music que por vezes surge em alguns trabalhos de Parker (pesquisador de sons e colecionador de instrumentos do mundo). A faixa “Sand Shadow” traz Parker à flauta, acompanhado pela múltipla percussão de Drake, em meio a elementos afro e orientais.

A vinda de William Parker ao país e agora a edição deste álbum apenas elevam a ansiedade de quem acompanha com fervor sua obra: Parker poderia voltar múltiplas vezes, com seus múltiplos projetos, sempre pronto a nos ofertar sua música viva e única.   
  



William Parker Quartet   ****(*)
William Parker Quartet
Selo Sesc










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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)