Vida Fácil é o novo trabalho que o Otis Trio acaba de
editar.
Mesmo quem já conhece o grupo paulista de muitas apresentações e
audições, tem tudo para se impressionar com este novo registro...
Uma nova fase se abre para o Otis Trio com seu mais recente
trabalho. O trio criado há uma década no ABC paulista por Luiz Galvão
(guitarra), João Ciriaco (baixo) e Flávio Lazzarin (bateria) mostra em Vida
Fácil uma proposta ainda mais ousada do que as que têm caracterizado o grupo
nesta já longa trajetória. Os temas focados e contagiantes que o trio sempre
criou agora cedem espaço para peças extensas, com a improvisação tendo ainda
mais relevância no processo. A faixa-título do novo álbum talvez seja a síntese
– se assim podemos dizer, já que ele conta com mais de 33 minutos! – dessa etapa
atual. E para ela funcionar em sua plenitude, o grupo tem, de fato, de contar
com um punhado de convidados. Não que adicionar parceiros ao trio original seja
novidade – em anos recentes, tem sido raro vermos eles tocarem como trio apenas
–, mas para este trabalho isso soou realmente fundamental. O octeto resultante traz os sempre presentes André Calixto (sax tenor e hulusi) e Beto Montag
(vibrafone) + Richard Firmino (clarone e trombone), Amilcar Rodrigues (trompete)
e Bio Bonato (sax barítono).
Com essa formação, o Otis Trio 8, entraram no estúdio Flap C4,
em dezembro de 2015, e gestaram as duas peças que compõem este Vida Fácil. O
resultado é muito diverso do disco anterior, 74 Club, apesar deste contar
também com a adição de vários convidados em diferentes faixas. O resultado
sonoro coletivo de Vida Fácil é muito coeso e centrado, onde temas (ou extratos
deles) são construídos entremeados por vasta liberdade improvisativa, montando
um amplo diálogo coletivo que consegue envolver o ouvinte, que acompanha o
passar das peças com atenção redobrada ao que de novo cada passagem trará.
Vida Fácil se estrutura por muitas viradas, muitas
ondulações de intensidade e sentido; abre com Ciriaco empunhando o arco, com o
baixo preparando o terreno, como se chamando os parceiros para o som que irá acontecer.
Os sopros respondem lá pelos dois minutos, após um toque seco da bateria. E seguimos
por uma intricada rede de sopros e asperezas da guitarra, empurrados pelo pulso
contagiante de Lazzarin, até a intensidade se diluir após uns cinco minutos de
tensão. A guitarra vai assumindo o comando, apresentando um tema logo
repercutido pelos sopros, sequência contagiantemente swingante que soaria arrebatadora
se tocada por uma big band ellingtoniana – o solo de trompete que dele deriva
reforça tal impressão. Aos 18 minutos, adentramos um universo bastante distinto,
com hulusi e clarone criando exóticas texturas (algo que poderia estar em um
álbum do Pharoah Sanders dos anos 70), sob as quais lentamente surge o baixo em
um tema circular hipnótico que aos poucos vai sendo acompanhado pelos sopros, até a bateria arrancar lá pelos 22 minutos levando todos a uma nova passagem,
que cresce em força e corpo até uma nova virada dois minutos à frente, em que
Galvão finalmente fará seu solo, desembocando no explosivo solo de sax que conduzirá
todos para o final em tom elevadíssimo. O que se pode sentir falta aqui é de um
solo de Lazzarin, baterista de infinita inventidade que proporciona momentos
maiores no palco – possivelmente na execução ao vivo da peça isso seja reparado.
Esse desenvolvimento complexo nos leva como que por uma peça-mural, que caminha
por vários rumos distintos, com viradas diversas de intensidade e referências,
mas mantendo sempre uma narratividade de alguma forma controlada, no sentido de
nada ali ser gratuito ou estar por estar (tudo faz sentido), com cada
instrumento tendo uma clara função coletiva e solista, sem que nenhum deles
assuma protagonismo sobre os outros. No ano passado, o Otis Trio criou uma
trilha para acompanhar o filme “Easy Virtue” (Vida Fácil), de Alfred Hitchcock,
em um projeto desenvolvido pelo Sesc Santana. Não sei se elementos gestados
nesse trabalho vieram para cá, mas não seria absurdo imaginarmos a presença
aqui das nuances de tensão características da linguagem hitchcockiana com a
qual dialogaram naquele momento.
Mandala, que vem sendo tocada ao vivo pelo menos desde 2014,
representa o que seria o lado B de um vinil, sendo uma peça diferente, apesar
de manter coerência e unidade com o lado A. Não apenas seu desenvolvimento, mas
sua feitura é diversa, com alguns solos pontuando mais alguns instrumentos no
todo. A longa abertura, por exemplo, centra-se no clarone, que sozinho se esvai
em dolorido extenso cântico, com o grupo irrompendo em bloco, de uma vez,
apenas depois de passados vários minutos. Após esse ataque coletivo, temos uma
sessão letárgica, com o vibrafone à frente, depois passando o foco ao trompete,
com Ciriaco dedilhando uma de suas encorpadas hipnóticas bases – difícil não lembrar
aqui de Cecil McBee... O último grande solo fica mais uma vez com o sax, que
surge menos corrosivo que no encerramento da faixa anterior, mas isso provavelmente
pelo próprio perfil distinto dessa peça, que termina com um tema algo melancólico e sutilmente
fúnebre.
É sintomático que esse trabalho surja agora, com o Otis
completando uma década de estrada e seus membros envolvidos em diversos projetos
paralelos de variadas searas sonoras: Vida Fácil mostra um ponto de maturação artística
que leva tempo para ser atingido. Quando o disco anterior, 74 Club, foi lançado
nos perguntamos: que rumo o Otis tomará depois? Aí está a grandiosa resposta...
Vida Fácil ****(*)
Otis Trio 8
Independente
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records).