Um encontro inédito entre os três mais destacados nomes do free do Brasil







Marcio Mattos, Ivo Perelman e Antonio Panda Gianfratti, os três mais destacados e representativos nomes da free music do Brasil, subirão ao palco juntos pela primeira vez. E o encontro não ocorrerá aqui no país...



É curioso que tão importante – histórico, diria – encontro entres esses respeitados artistas ocorra do outro lado do Atlântico. Será no Porto, Portugal, no dia 3 de julho, que Marcio Mattos (baixo), Ivo Perelman (sax tenor) e Antonio Panda Gianfratti (percussão) improvisarão juntos, nessa reunião inédita que, ao menos por ora, não será presenciada por seus compatriotas. Mas porque encontro tão importante acontecerá apenas agora, com cada um deles há tanto tempo na estrada e tendo dividido parcerias com muitos dos mais importantes nomes da free music internacional? 
Bem, o convite só aconteceu agora... além do fato de morarmos em continentes distintos!”, diz Perelman.



Marcio Mattos, 70, é um pioneiro da free improvisation do Brasil. Nascido no Rio de Janeiro, Mattos começou tocando violão e música popular, para depois passar a se dedicar ao baixo acústico e ao violoncelo, que se tornariam seus instrumentos para toda a vida. Foi quando entrou para o Instituto Villa-Lobos (RJ) que se envolveu com a improvisação livre. Mas naquele período, final da década de 1960, o país sob uma ditadura, era praticamente impossível desenvolver esse tipo de música no Brasil. “Havia na época, final dos anos 60, um pequeno movimento de improvisação livre com raízes tanto no free jazz como na música contemporânea, na Universidade de Brasília e no Instituto Villa-Lobos, no Rio. Mas esse início foi logo abafado com a situação política da época da ditadura. Lembro-me que no encerramento do Festival Latino-Americano de Música Contemporânea (1970) os alunos do Instituto Villa-Lobos subiram ao palco do Teatro Municipal do Rio para apresentar pela primeira vez uma peça de improvisação livre. Não chegamos ao final: alguém chamou a polícia militar, que entrou em cena para acabar com a diversão... Isso, entre outras coisas, ocasionou a minha ida para a Europa”, conta o baixista.
Mattos se mudou para Londres no início dos anos 70 e logo conheceu o percussionista John Stevens (1940-1994), que o levou para tocar com o SME (Spontaneous Music Ensemble). O baixista carioca já apareceria no álbum “The Source – From and Towards”, registrado pelo SME em novembro de 1970. O próximo músico destacado de quem Mattos se aproximou na época foi o também percussionista Eddie Prévost, um dos fundadores do AMM; passando a fazer parte de seu quarteto, gravou os discos “Now Here This Then” (77) e “Live” (78). Mas talvez a mais relevante parceria que firmou em Londres naquele período foi com o saxofonista Elton Dean (1945-2006). Com Dean, trabalhou durante boa parte dos anos 80 e 90 – e foi com ele que retornou pela primeira vez para tocar no Brasil. Era 1986, e o Elton Dean Quintet fez uma inédita turnê de um grupo ligado ao free jazz no país. Ao lado de Dean, Paul Rutherford, Harry Beckett e Liam Genockey, Mattos teve pela primeira vez a oportunidade de mostrar sua música por aqui, passando, além de sua Rio de Janeiro, por cidades como São Paulo, Santos, Brasília, Ouro Preto e São Luís. A excursão rendeu o álbum “Welcomet – Live in Brazil 1986”. Depois disso, Mattos só voltaria a tocar em seu país nos anos 2000... Foi em 2006 que ele se associou ao Abaetetuba, grupo de improvisação livre criado por Panda Gianfratti e Yedo Gibson e, desde então, pudemos vê-lo em nossos palcos em algumas diferentes oportunidades.
Como baixista e violoncelista, Marcio Mattos já participou de cerca de uma centena de discos, tendo gravado com figuras como Lol Coxill, Roscoe Mitchell, Marilyn Crispell, Evan Parker, Tony Oxley e George Grawe, além de formar grupos como “Stellari String Quartet” (com John Edwards e Philipp Wachsmann), “Free Base” (com Alan Wilkinson e Steve Noble) e “Axon” (com Phil Minton e Martin Blume). Em sua discografia, merece destaque o disco “SOL[os]”, editado em 2015, que traz dez peças solísticas para baixo e violoncelo, um conjunto que bem apresenta sua arte. Sobre o concerto do dia 3 de julho, diz ele:
Creio que a distância geográfica nos impediu de um encontro mais cedo. Mas musicalmente estamos mais perto e esse encontro, embora tardio, promete muito. Na música improvisada os primeiros encontros sempre proporcionam novas possibilidades.”


Ivo Perelman, 55, também deixou cedo o Brasil para desenvolver sua arte. Ele começou a estudar música ainda criança, violão, depois violoncelo, piano até chegar ao saxofone. No início dos anos 1980, com seus 20 anos, Ivo resolveu abandonar a faculdade de Arquitetura para se dedicar à música. A decisão o levou de São Paulo aos Estados Unidos, onde se matriculou no incensado Berklee College of Music. Mas aquilo não era para ele, o ensino era ortodoxo demais frente ao que buscava. Sua inquietude o conduziu para outras paragens, desembarcou na Europa. Uma vez em Londres, procurou um saxofonista que havia chamado sua atenção: Evan Parker. “O Evan, mesmo sem me conhecer, me hospedou na casa dele e passou a me dar aulas. Foi um momento incrível”, conta Ivo. Não seria, porém, na Europa que se tornaria um músico profissional. Retornou aos EUA para continuar sua busca artística, tocando na noite para sobreviver, estudando o sax tenor horas infindáveis e esperando as coisas acontecerem. Quase uma década após deixar o Brasil, em 1989, surge a oportunidade de entrar em estúdio pela primeira vez. Com o apoio do pequeno selo independente k2b2, de Marty Kristall (com quem Ivo estudou flauta em Los Angeles por um tempo), nasceria seu álbum de estreia, IVO, em que o saxofonista desconstruía explosivamente canções infantis e tradicionais, como “Escravos de Jó”. Da empreitada participaram os brasileiros, também radicados nos EUA, Flora Purim, Airto Moreira e Eliane Elias. Se o resultado não era propriamente ainda free jazzístico, algo do que viria à frente já estava ali demarcado. Ivo se estabeleceria na época em Nova York, onde vive até hoje. Após sua estreia, não tardou para que o saxofonista começasse a tocar com importantes nomes da cena free local. Interessante testemunho é um vídeo gravado em outubro de 1990, no Knitting Factory, com Ivo tocando temas de seu primeiro disco acompanhado de Flora, Fred Hopkins e Andrew Cyrille... O encontro do free com ritmos e sonoridades brasileiros prosseguiu nos próximos álbuns: “Children of Ibeji” (92), dialogava com o candomblé; “Man of the Forest” (94), com peças de Villa-Lobos; e “Tapeba Songs” (96), com melodias indígenas. Em 1996, Ivo grava “Cama de Terra”, disco que marcaria o início de uma nova fase. Acompanhado de Matthew Shipp e William Parker, o saxofonista redesenha seu espaço na cena free. É nesse período que Perelman terá a oportunidade de gravar com uma das lendas do free jazz: o baterista Rashied Ali. Conta Ivo que trombava com Rashied pelas ruas e bares do Brooklin novaiorquino, de bermuda e chinelo, e um dia resolveu falar com ele. O resultado desse encontro foram dois dos mais importantes trabalhos de Ivo: no formato de trio, que ainda contou com William Parker, saíram “Sad Life” (96) e “Live” (97). A improvisação livre foi ganhando maior relevância em sua obra e gestando uma sequência de grandes álbuns, como “The Alexander Suite” (98), “The Hammer” (2000) e “Suite For Helen F.” (2003). A discografia de Ivo cresceu rapidamente, contando hoje com quase 60 títulos, sendo recheada de parcerias com figuras de ponta da cena free: Marilyn Crispell, Gerry Hemingway, Borah Bergman, Wilber Morris, Dominic Duval, Michael Bisio, Karl Berger, Jay Rosen, Whit Dickey, Gerald Cleaver, Joe Morris, Mat Maneri, Parker e Shipp... Apesar disso – ou talvez por isso –, Ivo Perelman demorou muito tempo para conseguir apresentar sua música no Brasil. Alguns de seus discos até saíram no país e ele tentou promovê-los. Mas o máximo que conseguiu foi fazer pequenas aparições, tocando alguns minutos em programas de TV como Metrópolis e Jô Soares. O seu primeiro concerto mesmo no país ocorreria apenas em 2007, quando tocou com Dominic Duval no Centro da Cultura Judaica (SP). Depois, retornou em 2008, com Duval e a violinista Rosi Hertlein, passando por Masp e Sesc.  Suas últimas duas apresentações aqui foram com seu quarteto, no Sesc Pompeia, em 2010 e 2013. De qualquer forma, muito pouco para alguém tão destacado na cena free jazzística internacional...




Antonio Panda Gianfratti, 68, seguiu percurso distinto de Ivo Perelman e Marcio Mattos, ficando em São Paulo, onde tem tido papel fundamental no fomento da música livre improvisada nas últimas duas décadas. Dedicando-se à bateria desde os 10 anos de idade, Panda Gianfratti experimentou diferentes estilos – rock, jazz mainstream, bossa nova e outras vertentes da música brasileira – até mergulhar no mundo do free jazz, lá pelo fim dos anos 1990. Já músico profissional há muito tempo, adentrou o universo do free com entusiasmo e foco total. Dedicou-se a pesquisar a linguagem desenvolvida por nomes da percussão livre que ia conhecendo, Don Moye, Han Bennink, Sunny Murray, Milford Graves, e, solitariamente, foi absorvendo o que ouvia e desenvolvendo sua própria estética. É aí que conhece seu primeiro parceiro no free jazz, o então jovem saxofonista paulista Yedo Gibson. Com ele montou, em 2001, o duo Liberdade, com o qual gravaria três álbuns. Logo eles ampliariam suas pesquisas sonoras, explorando a improvisação livre e criando o seminal quarteto Abaetetuba em 2004, junto aos músicos Renato Ferreira e Rodrigo Montoya. Data também de 2004 o marcante pioneiro concerto que fizeram na Funarte (SP), Panda, Yedo e o pianista argentino Rubén Ferrero, que chamou a atenção de jovens músicos e entusiastas para a energia do free. Apesar do ânimo, as dificuldades em conseguir parceiros e locais para tocar e compartilhar a música livre que fazia acabaram levando Panda até Londres. Era janeiro de 2006, e o percussionista, chegando na capital britânica, rumou para a casa do pianista Veryan Weston, onde Yedo já estava hospedado há alguns meses. Essa foi a oportunidade de se embrenhar pela cena free britânica, onde logo se aproxima de músicos como Steve Noble e Phil Minton, que no futuro viriam em diferentes oportunidades ao Brasil – é também nesse tempo que Panda firmará amizade com Marcio Mattos. "Eu tentei ficar na Europa, mas falhou o meu passaporte italiano. Além disso, por causa da minha família e minha idade, resolvi voltar." Seis meses depois de desembarcar em Londres, Panda retornava ao país, onde continua seu trabalho com o Abaetetuba e a ampliação de seu arsenal percussivo – o kit básico da bateria havia se tornado pouco para ele há muito. O Abaetetuba ganharia nova força com a entrada de Thomas Rohrer (saxofonista e rabequista suíço radicado no Brasil) e a associação com Marcio Mattos, que veio a São Paulo tocar com o grupo em 2006, encontro que resultou no álbum “Abaetetuba e Marcio Mattos”. Na trajetória de Panda vale destacar ainda a turnê que fez com o Abaetetuba na Europa em 2009, passando por Espanha, Londres (Vortex) e Holanda (Bimhuis). Desde então, tocou, aqui e no exterior, com músicos como Trevor Watts, Mark Sanders, John Edwards, Hans Kock, Carlos Zíngaro, Andrey Chen, Ken Vandermark, Han Bennink, Sabu Toyozumi e outros mais. Construtor de instrumentos, Panda Gianfratti também tem desenvolvido importante percurso como educador, inclusive com crianças, do qual a face mais conhecida é sua “orquestra de garrafas”. Destaca-se ainda seu trabalho de curadoria e divulgação, tendo participado da idealização  das duas edições do “FIIL - Festival Internacional de Improvisação Livre Abaetetuba” (2010 e 2011), que contaram com a participação de importantes nomes do free europeu. 


Por tudo isso, pelo que representam para a música livre, faltava o encontro desses três brasileiros: Marcio Mattos, Ivo Perelman e Antonio Panda Gianfratti reunidos, pela primeira vez, no palco.

Sem dúvida, foi mais uma questão geográfica. No CD ‘Liberdade’, de 2003, eu e o Yedo Gibson dedicamos uma faixa ao Ivo Perelman, cujo título é ‘For Ivo’. Em 2006, estive com o Ivo no programa do Jô Soares e nesta época tocamos juntos algumas sessões na minha casa. Em relação ao Marcio, foi o próprio Ivo que me falou dele, antes de eu morar em Londres, conhecê-lo e iniciar nosso relacionamento pessoal e musical, que dura até hoje”, diz Panda Gianfratti.
Quanto ao concerto, não podemos estabelecer nenhum formato, será absolutamente a convergência de uma nova linguagem, criada na hora do concerto, algo novo até para nós, o que é instigante e desafiador. Esperamos que as experiências somadas se multipliquem em uma música histórica para nós três.





IVO PERELMAN/ MARCIO MATTOS/ ANTONIO PANDA GIANFRATTI

Quando: 3 de julho, às 18h
Onde: 25º Jazz no Parque (Serralves). Porto (Portugal)






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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)