O Bestiário Ilustríssimo de REP





Se os músicos de Portugal pouco ainda são conhecidos por aqui, o que dizer de um jornalista musical do país... Figura maior da crítica de música escrita hoje em língua portuguesa, Rui Eduardo Paes lançou, em 2015, o instigante Bestiário Ilustríssimo II / Bala: pena que ainda não é possível encontrar nem esse nem outros de seus títulos nas livrarias brasileiras...



Ensaísta e musicólogo português, Rui Eduardo Paes – também conhecido como REP – tem desenvolvido um trabalho de importância indiscutível para a reflexão e divulgação do jazz mais criativo, da improvisação livre e de outras expressões sonoras radicais que acontecem não apenas em Portugal, mas mundo afora. Editor da revista on-line jazz.pt, Paes desenvolve seu original ponto de vista por meio de um trabalho crítico que conta com três décadas de atividade. Nesse tempo, publicou muito na imprensa portuguesa, em sites e editou diferentes livros sobre música, como “Cyber-Parker” e “Stravinsky Morreu”.
No ano passado, Paes deu continuidade a um de seus mais conhecidos trabalhos, “Bestiário Ilustríssimo”, publicado em 2012. Bestiário Ilustríssimo II mantém a mesma linha de seu antecessor e traz mais uma série de textos escritos pelo crítico em diferentes ocasiões e oportunidades (para revistas, encarte de disco, livreto de sala de concerto, sites), sempre atento às novas músicas – e não apenas na seara jazzística, fundamentalmente ligada a seu nome. Este Bestiário Ilustríssimo II traz 50 textos que abrangem uma ampla gama de artistas criativos. A edição, na realidade, é “2x1”: no que seria a contracapa, encontramos, de ponta-cabeça, outro livro, Bala –que agrupa outros 50 textos, estes bem mais breves, para serem lidos de bate-pronto, como pequenas resenhas e reflexões englobando outros músicos e obras.

Em entrevista ao site Bodyspace, por ocasião do lançamento do livro, Paes falou sobre a obra:

Trata-se do que, por ironia, chamo de ‘anti-enciclopédia’, porque é uma enciclopédia sem organização alfabética dos nomes tratados, capítulo a capítulo. Muitos músicos tinham ficado de fora, músicos que acho demasiado importantes para não estarem referidos. A ideia de Bestiário Ilustríssimo tive-a quando colaborava no então jornal Blitz, entre finais da década de 1980 e inícios da de 90, e já então a série ‘enciclopédica’ de textos que publiquei com esse mesmo título geral pareceu-me dolorosamente incompleta. Agora sim, com o ‘Bestiário Ilustríssimo II / Bala’ sinto que o projecto está mais completo. Se bem que, com a imensidade de grandes músicos que há por aí, outros tenham ficado de fora. Seria impossível incluí-los a todos...

Se no anterior “Bestiário Ilustríssimo” encontrávamos textos a explorar nomes como Nate Wooley, Carlos Zíngaro, Mostly Other People Do The Killing e Peter Brotzmann Chicago Tentet, neste “volume II” temos outros artistas maiores em relevo, como Evan Parker e seu Psi Records, Joelle Léandre, Otomo Oshihide e sua New Jazz Orchestra, William Parker e Maja Ratkje. Coincidência ou não, chama atenção o destaque dado a pianistas, de gerações e expressões distintas; dentre os abordados estão Jason Moran, Alexander von Schlippenbach (e sua revisitação a Monk), Kaja Draksler, Vijay Iyer, Craig Taborn e Eve Risser (que a todos impressionou em 2012 com o singular álbum En Corps), sendo que alguns deles foram entrevistados pelo autor. Os portugueses também estão presentes, claro, entre nomes mais conhecidos por aqui e outros menos: o saxofonista Rodrigo Amado, o artista eletroacústico Vítor Joaquim, Emídio Buchinho e Hugo Carvalhais, além da análise de parcerias de músicos de Portugal com estrangeiros – David Maranha com Will Guthrie, Manuel Mota com Noel Akchté e Susana Santos Silva com Torbjorn Zetterberg.  
Interessante notar que os brasileiros não são esquecidos. Em “Do Brasil para o Mundo”, Paes apresenta Heitor Villa-Lobos para abordar o disco “Villa-Lobos: a new way”, em que o pianista galego Alberto Conde revisita Bachianas e Choros acompanhado de baixo, bateria e percussão. Já “Um Pernambucano na Acusticosfera” aborda o trabalho do saxofonista Alípio C Neto, hoje radicado na Itália, mas que viveu por alguns anos em Lisboa. O texto tem em sua base uma entrevista com Alípio C Neto e nos faz lembrar que o saxofonista, destacado em um livro que trata de alguns dos nomes mais expressivos da cena atual, muito pouco tocou em seu (nosso) país, sendo ignorado por muitos daqui que dizem se interessar pela música jazzística contemporânea (algo de novo aí?).
Afora músicos específicos, há ainda textos sobre tópicos pontuais, como o Stoner Rock (“Guia Prático para Janados”), o selo Creative Sources (“Rascunho para um Balanço”) ou mesmo uma discussão em torno do rótulo 'Nu Jazz'.
Bala, apesar de alinhado com seu livro gêmeo, tem traços distintos: textos realmente curtos (menos de uma página, às vezes) e com um leque mais amplo de abordagem temática. Apesar de destacar figuras do free/jazz (Roscoe Mitchell, Alex Ward, Vinny Golia), há espaço para tratar de um disco do DJ Spooky com Dave Lombardo; o doom/drone metal; o The Ex; Moondog e The Residents. Tudo para ser lido de uma vez, em uma diversa apresentação de sons que compõem o cenário contemporâneo, sempre com a acurada e minuciosa visão crítica de Paes.

Os dois volumes de Bestiário Ilustríssimo formam um abrangente painel da música livre e radical desses tempos, sendo um guia valioso que tanto pode ampliar a compreensão que temos de certos músicos como nos apresentar a artistas que ainda desconhecemos. Em uma época em que as pessoas têm se (mal) acostumado com a crítica (se é que nesse caso mereça tal categorização) musical ligeira que domina a internet, em que as pessoas “acham” isso e aquilo, num processo de gostar e desgostar ao sabor da enxurrada de lançamentos que nos rodeiam, poder ler os textos de Rui Eduardo Paes é um privilégio.  






Bestiário Ilustríssimo II / Bala
Rui Eduardo Paes
Ed.: Chili Com Carne/Thisco













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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista online portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)