ENTREVISTA A trompetista portuguesa Susana Santos Silva é uma das vozes mais expressivas da cena contemporânea. Desde que editou seu primeiro trabalho, “Devil’s Dress”, em 2011, espalhou sua música por diversos projetos. Em entrevista ao FreeForm, FreeJazz, Susana falou sobre sua trajetória, projetos e a vontade de tocar no Brasil: “Estou à espera do convite!”
Por Fabricio Vieira
Atualmente, há muitas mulheres tocando saxofone, com algumas
estando entre os mais importantes artistas contemporâneos ligados à música
livre, como Matana Roberts e Ingrid Laubrock. Já o trompete tem sido menos procurado
pelas mulheres. O que a levou ao trompete, como começa essa história? Tocou
outros instrumentos antes?
“Eu comecei imediatamente pelo trompete. Tinha 7 anos. O meu
avô tocava trompete numa banda filarmónica e ensinou música a todos os netos.
Foi ele o meu primeiro professor. Não sei se foi essa a razão que me levou a
escolher o instrumento, mas sei que nessa altura não queria outro. As dúvidas
surgiram muitos anos mais tarde quando o trompete e a música passaram de ser um
hobbie a ser uma forma de vida.”
Você é uma trompetista que estudou formalmente, passando
pela faculdade de música (ESMAE), depois fazendo mestrado em “Jazz Performance”
em Roterdã... Qual a importância de sua formação acadêmica para a música que
faz? Sei que, a princípio, estudou trompete clássico. Quando houve uma virada
em sua trajetória rumo ao universo do jazz?
“O meu percurso académico foi um pouco sinuoso e peculiar.
Durante muitos anos estudei trompete no Conservatório, quando ainda planeava ser
Engenheira Civil. Ao mesmo tempo, e quando tinha 17 anos, comecei a tocar na
que viria a ser a Orquestra Jazz de Matosinhos. Entretanto, desisti de
Engenharia e entrei na Escola Superior de Música (ESMAE) onde estudei, de
facto, trompete clássico. Durante estes anos, cheguei a pensar em desistir
até que, no último ano, fui para Karlsruhe estudar com um dos grandes solistas europeus,
Reinhold Friedrich, que teve uma importância fulcral na minha vida. Além da
parte técnica de tocar o instrumento, mostrou-me o que de facto é importante na
música, tudo com muita entrega e paixão. Mas, apesar disso, eu sabia que o meu
caminho teria mais uma vez que mudar e, quando regressei ao Porto, decidi
voltar à ESMAE, desta vez para ingressar no curso de Jazz. Assim fiz. Foi um
período de muitas mais interrogações e de tentativas de integração. Sem grandes
resultados satisfatórios. Em seguida fui para Roterdão, onde fiz o mestrado em
Jazz Performance. Também não foi um período incrível para mim em termos acadêmicos,
mas foi nessa altura que comecei a descobrir novos mundos dentro do jazz e da
música improvisada que, finalmente, me colocaram no caminho certo, caminho esse
que continuo, ainda hoje, a percorrer, mas agora com muita paixão e com uma paz
interior de saber que o que faço hoje é o que sou.”
“Devil’s Dress”, de 2011, não é apenas seu álbum de estreia,
mas um marco em sua trajetória – afinal, sua obra se desenvolveu muito
rapidamente após aquela gravação. Como foi sua carreira até Devil’s Dress?
Tentou gravar antes, muitos projetos ficaram para trás?
“O ‘Devil's Dress’ foi a primeira coisa que fiz quando estava
a acabar o curso de Jazz no Porto. Foram as primeiras composições que me atrevi
a escrever, foi a primeira banda que tive, foi o primeiro disco que gravei. E
aconteceu porque tinha que acontecer. As dúvidas eram todas. Não tinha a
certeza de nada... ainda hoje não tenho! Mas, olhando para trás, fico contente
que o tenha feito, e que tenha tido o privilégio de, na altura, ter tocado com
músicos que eram uma inspiração para mim. Tudo aconteceu depois disto.”
Dentre os diferentes projetos de que participa hoje, alguns
contam com músicos residentes em outros países, como o Lama Trio, cujos dois
outros membros vivem na Holanda, e o duo com a pianista eslovena Kaja Draksler.
Vivendo no Porto, como mantém em atividade essas parcerias? Entre quantos
projetos se divide atualmente?
“Neste momento, vivo entre o Porto e Estocolmo, e um pouco
por todo o lado, de facto. Tenho, cada vez mais, tocado e trabalhado com
músicos da Escandinávia, com os quais me identifico muito musicalmente. Tenho
uma relação com a Holanda desde que fiz o meu mestrado e desde que o trio Lama,
lá sediado, se formou. Também o duo com a Kaja Draksler intensifica essa
relação, visto que ela mora em Amsterdão. Tenho também trabalhado com um trio
belga durante os últimos três anos, o que me leva algumas vezes à Bélgica, e
não só, claro. Na realidade, depois dos projectos estarem montados não interessa
muito onde se vive, ainda que viajar de Portugal se torne muitas vezes
dispendioso porque estamos muito longe do resto da Europa. Além do duo com a
Kaja Draksler, tenho um duo com o contrabaixista sueco Torbjörn Zetterberg (e
uma versão em trio com o organista Hampus Lindwall), um duo com o baterista
Jorge Queijo e um duo com a Alexandra Nilsson (Radio Two), o trio LAMA, com o
Gonçalo Almeida e o Greg Smith (que ultimamente tem sido transformado num
quarteto com a adição do clarinetista/saxofonista Joachim Badenhorst), lidero o
meu quinteto português (ou quase) Impermanence, com o João Pedro Brandão,
Hugo Raro, Torbjörn Zetterberg e Marcos Cavaleiro, e um outro quinteto, Life
and Other Transient Storms, com a Lotte Anker, Sten Sandell, Torbjörn
Zetterberg e o Jon Fält. Faço parte de um quarteto com a Christine
Wodrascka, Christian Meaas Svendsen e o Håkon Berre. Como sidewoman,
faço parte do sexteto do Torbjörn Zetterberg, do Coreto Porta-Jazz e do
Octeto do João Guimarães.
Fora isso, outros concertos pontuais acontecem um pouco por
todo o lado. Agora em maio, por exemplo, vou tocar em trio com o Fred Frith e o
Chris Cuttler, no Festival for Contemporary Sound, em Zagreb.”
Você ainda não gravou um disco de trompete solo. O formato
solista é algo que lhe interessa ou prefere tocar sempre acompanhada de alguém?
“Interessa-me, de facto, como uma oportunidade de me
desafiar, de correr riscos que me podem levar a sítios ainda por explorar.
Encontra-se o máximo de liberdade possível quando se toca a solo e isso é muito
interessante, até porque a liberdade total levanta outras questões, nem sempre
fáceis de resolver. Mas, na realidade, prefiro a interacção com outros
músicos. Para mim, improvisar passa, em grande parte, por essa conversa com o
outro, passa por descobrir o outro músico em cima de um palco e, juntos,
criarmos algo completamente novo, que não poderia soar igual com mais ninguém.
E por isto mesmo gosto muito do formato duo, onde não há espaço para
distracções ou refúgios, é uma conversa directa e de uma intimidade que às
vezes pode ser até constrangedora. Acho que mais cedo ou mais tarde isso vai
acontecer, gravar um disco solo. Até agora tive três experiências a tocar ao
vivo, a última foi em Estocolmo em dezembro passado. Gravei e toquei um
concerto com a Fire! Orchestra, no Fasching, e a primeira parte do concerto
foram três solos de músicos da orquestra. O meu foi um deles. Foi uma
experiência incrível.”
A cena jazzística e improvisada de Portugal vive um momento
realmente vibrante, com muitos músicos de destaque e boa repercussão mundo
afora. Para você, que é um dos nomes destacados dessa cena, é possível viver em
seu país apenas da música que faz?
“Não, claro que não. É preciso sair, procurar outros públicos
e outros palcos.”
Vemos hoje uma geração que conta com grandes trompetistas
(Peter Evans, Nate Wooley, Luis Vicente, Jonathan Finlayson, Niklas Barnö,
Taylor Ho Bynum e outros mais). Como se sente fazendo parte dessa geração e
como sua música se aproxima ou se distancia da que esses outros trompetistas têm
feito?
“Há de facto, neste momento, muitos trompetistas fantásticos
que muito admiro e que são fonte de inspiração de há uns anos para cá. Tento
sempre que possível tocar ou trocar ideias com eles, porque este instrumento
não é fácil e é muito saudável perceber que há questões relacionadas com o
instrumento e com a música transversais a todos os trompetistas. Estou agora em
contacto com o Peter Evans a propósito de um concerto em NY, convidei-o para
tocar e quase que aconteceu... Mas vamos acabar por partilhar uma noite de três
sets, organizado pela trompetista Jaimie Branch, em que vou tocar duo com
a saxofonista Ingrid Laubrock. A primeira vez que vi o Peter Evans tocar a solo
vieram-me as lágrimas aos olhos! E não preciso de dizer mais nada. :) Também já
tive o grande prazer de tocar com o Nate Wooley. Estou algumas vezes com o
Niklas Barno, tocamos duo uma vez e gravamos com a Fire! Orchestra em dezembro.
O Taylor Ho Bynum também admiro muito e ainda estou a ver se o apanho em NY, já
temos tentado tocar um bocadinho quando estamos no mesmo sítio ao mesmo tempo,
mas nunca aconteceu. Mas há mais trompetistas muito bons como, por exemplo, o
Magnus Broo e o Eiving Lonning, entre outros.”
Na sua música, a improvisação é um elemento fundamental, mas
parece que também lhe interessa o processo composicional – ou seja, nem tudo
o que faz é improvisação livre. Qual a relevância da composição para sua obra?
“Sim, é verdade, a composição é algo que me interessa, mas
que não me é naturalmente fácil de concretizar. Não gosto do processo de
composição porque vive muito de decisões e eu sou muito má a tomar decisões. Mas
eu gosto de desafios e este de pôr música em papel é um daqueles que valem a
pena, especialmente quando chega a hora de ouvir o que escrevemos e, melhor
ainda, se o resultado final vai para além daquilo que foi escrito. Isso é, de
facto, o que me agrada particularmente, o de tentar escrever algo que não seja
estanque, que se expanda e se transforme a cada novo concerto. Não é fácil
chegar a um equilíbrio entre a composição e a improvisação de uma forma
orgânica e visceral, mas é esse o meu objectivo final, que vou tentando sempre
alcançar... mas demora tempo.”
Você criou uma página no Bandcamp onde é possível ouvir um
pouco de cada disco que gravou, além de oferecer versões digitais de seus
álbuns para quem quiser comprar. Sente que isso tem ajudado a difundir sua
música? E no caso de arquivos digitais compartilhados
sem autorização dos envolvidos, por blogs e fóruns, por exemplo? Acha que isso acaba por ajudar a levar
sua música a mais pessoas ou entende que é algo predatório, que prejudica seu
trabalho?
“O Bandcamp e todos os meios digitais, online, ajudam a
difundir a música, isso é um facto. Todas estas questões à volta dos downloads
ilegais é uma faca de dois bicos, por um lado ajuda a que a nossa música chegue
aos quatros cantos do mundo e a muito mais gente do que seria possível de outra
forma. Por outro lado, claro que isto é muito prejudicial para os músicos que
trabalham muito e gastam muito dinheiro a gravar discos para depois não serem
pagos devidamente por esse trabalho e não conseguirem, muitas vezes, viver
daquilo que fazem.”
Como ouvinte, o que foi importante em sua formação? E o que
gosta de ouvir quando não está ocupada com a sua própria música?
“Tudo. Acho que foi muito importante, para me tornar no
músico que sou hoje, ouvir e absorver ao máximo diferentes músicas. Como em
tudo na minha vida, não gosto de ficar fechada em prisões que nos limitam o
pensamento e as emoções. Gosto de ouvir música que me surpreende, que me
emociona, que me faz levantar questões, que me desassossega, às vezes que me
tranquiliza... depende do dia, depende da hora!”
Você já tocou aqui ao lado, na Argentina e no Uruguai, em
2014. Foi a única oportunidade que teve de se apresentar na América Latina? E o
Brasil? Quando poderemos vê-la em nossos palcos?
“Sim, foi a única vez que estive na América Latina. Adorei a
experiência e gostava muito de voltar e, claro está, ir ao Brasil também. Não
sei quando vai acontecer, mas espero que seja em breve! Tenho muita curiosidade
de conhecer o país, mas também de me apresentar enquanto músico. Estou à espera
do convite!”
Quais são os próximos projetos que estão na lista de Susana
Santos Silva? O que vem por aí?
“Este é o meu futuro próximo: Tenho dois discos a sair em
breve. Um deles vai ser editado pela Clean Feed e é o meu novo quinteto
escandinavo, Life and Other Transient Storms, com a Lotte Anker, Sten
Sandell, Jon Fält e o Torbjörn Zetterberg, que foi gravado ao vivo no Tampere
Jazz Happening no ano passado. O outro chama-se Rasegan! e vai ser
editado pela Barefoot Records. É um quarteto com a Christine Wodrascka, Christian
Meaas Svendsen e o Håkon Berre, fruto de um convite que nos foi feito o
ano passado pelo festival Blow Out em Oslo. O disco será apresentado em julho
no Copenhagen Jazz Festival e Kongsberg Jazz Festival.
“Em maio vou tocar em trio com o Fred Frith, a convite dele,
e o Chris Cutler no Showroom of Contemporary Sound em Zagreb, toco em duo com a
Kaja Draksler no Moers Jazz Festival (e em julho no Molde Jazz Festival) e a
partir de 16 de maio estarei em Nova Iorque e Chicago. A primeira semana estou
a tocar com a Orquestra Jazz de Matosinhos e o Kurt Rosenwinkel na Blue Note.
Na segunda semana, tenho cinco concertos
em NY e dois em Chicago com vários músicos da cena local. Toco em trio com o
Craig Taborn e o Thomas Morgan, trio com a Kris Davis e o Mat Maneri, duo com a
Ingrid Laubrock, quarteto com o Dave Rempis, Torbjörn Zetterberg e o Tim
Daisy, trio com o Zetterberg e o Jim Baker, e ainda estão três outros por
confirmar. Vai ser uma experiência incrível tocar pela primeira vez com todos
estes músicos que muito admiro. Fora isso, a vida vai acontecendo de forma
misteriosa e surpreendente!”
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista online
portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)