Destaques de lançamentos nacionais, excitantes álbuns editados
nos últimos tempos.
Experiências em várias formas.
Ouça, divulgue, compre os discos.
Estratossoma ****(*)
Entrevero Instrumental
Independente
Com uma formação inusitada, o quinteto catarinense Entrevero
Instrumental apresenta uma sonoridade bastante particular. Formado por Arthur
Boscato (violão de sete cordas), Jota P Barbosa (sax), Diego Guerro (acordeon),
Rodrigo Moreira (baixo) e Filipe Maliska (bateria), o grupo diz que faz um
trabalho “autoral de música instrumental brasileira com grande influência dos
ritmos do sul e da música contemporânea”. E este novo Estratossoma, terceiro
título do quinteto, apresenta essa fórmula em sua plenitude. Gravado em julho
de 2015, em Florianópolis, o álbum traz brasilidades desconstruídas embebidas
por intensidade elevadíssima e surpreendentes soluções harmônicas e rítmicas –
na base da criação, está o “compasso irracional”, uma abordagem particular da
música atonal, que Maliska detalhou em entrevista recente. Os elementos
regionais sulistas surgem aqui e ali, especialmente por meio do acordeon e do
violão, mas são tratados de forma perfeitamente integrada ao som contemporâneo
do grupo (que traz também camadas eletrônicas), não existem apenas para dar algum
tempero popular, como bem mostram “Milongo+” e “Lacromância+” (esta, com
intervenção vocal a partir da letra de Destino Missioneiro, de Noel Guarany). A
complexa sonoridade do Entrevero Instrumental se mostra aberta a elementos avant
jazz – um crítico da All About Jazz afirmou que o sax de Barbosa pertence a uma
linhagem ‘timberniana’ –, que podem culminar em momentos realmente energy e
free, como a explosiva abertura de “Crivalta+”. Música viva, atual e
surpreendente, que se espalha por oito temas e deveria ser apresentada (e descoberta!)
mundo afora.
Culto ao Rim ****
Culto ao Rim
Independente
Desde sua criação em meados de 2000, o Culto ao Rim passou
por diversas transformações estilísticas e de formação. Agora aparecem como
quarteto neste novo disco (e, por que não, nova fase). A Gabriel Magazza
(baixo) e Carlinhos Mazzoni (bateria), que estão no grupo desde o começo, se unem
Richard Firmino (sopros) e Vinícius Gomes (guitarra, que cedeu agora o espaço para o Rodrigo Passos), para juntos alcançarem alguns
bons achados. Apesar de não única, a forte influência jazzística marca o álbum
– no texto de apresentação do grupo, eles citam Mingus e Eric Dolphy. Mas há também
outras referências; Piazzola é lembrado por eles e o tango, homenageado na
faixa “Tanga” – o gênero é apenas perceptível sutilmente em algumas passagens,
como na ritmicidade marcada pela guitarra lá pelos dois minutos. Esse mergulho
em fontes diversas, tratado sempre de forma desconstruída, até mesmo irônica,
emerge em faixas como “Arabina”, e seu ar oriental, ou no solo de guitarra de
“Capacete”, com sua atmosfera fusion setentista. Apesar da variedade sonora, o
álbum se mostra coeso e coerente. E tem Richard Firmino, que ilumina
intensamente o som do quarteto, especialmente quando assume o clarinete baixo
(toca também sax, trombone, flauta...).
Obsolescência Programada ****
Máquina Overlock
Mansarda Records
O quarteto Máquina Overlock, de Porto Alegre, traz neste
novo trabalho mais uma avalanche de ruidosa e enérgica sonoridade. Formado por Diego Dias
(sopros, percussão), Igor Dornelles (guitarra), Israel Savaris (baixo) e Michel
Munhoz (percussão), o quarteto apresenta duas longas improvisações em que o
noise constitui base propulsora para o material registrado. “Obsolescência”,
com seus quase 27 minutos, abre de forma aniquiladora, sem introduções, com
Dias como que gritando um chamado prontamente seguido pelos outros; às camadas
de ruidagens criadas por Dornelles, o sopro responde com ataques certeiros, que
fuzilam com notas prolongadas em variável intensidade, em um processo que conduz o desenvolvimento da peça. No segundo tema, “Programada”, apesar de a tensão já iniciar
elevada, há um certo crescendo de intensidade, que culmina lá pelos 12 minutos,
com o sopro em ebulição máxima. Talvez se a percussão de Munhoz estivesse mais
presente – sua participação soa meio que encoberta pelos outros três
instrumentistas –, como parece ocorrer no título anterior do grupo, “Costura”, este
Obsolescência Programada ganharia provavelmente ainda mais impacto.
Arcanos ***(*)
Felipe Zenícola
QTV
Intrigante projeto do baixista Felipe Zenícola, Arcanos é um
disco solista desenvolvido entre janeiro e fevereiro de 2015. Zenícola criou 22
faixas, uma por dia, “referentes a cada um dos 22 arcanos maiores”, explica o
músico. Tendo por base apenas o baixo elétrico (danelectro longhorn bass,
fender precision bass e M. Zaganin), usando pontualmente efeitos e
sobreposições, Zenícola desenvolve uma gama de sons inusuais, por vezes
hipnóticos, entre improvisações e composições. As 22 faixas são objetos distintos, formando
um complexo conjunto. Há temas de certa estaticidade, em que o silêncio quase
se impõe, como “VI L’Amoureux”; há criações sombrias, densas, que perturbam os
sentidos (“VII La Justice”, “III LEmpereur”), que poderiam fazer o papel de intro
ou intermezzo em um álbum de black metal; há também faixas de atmosfera minimalista, em que um tema cíclico nos enreda
em uma cadeia que parece interminável (“XIII Tempérance”), dentre outras vias
de exploração sonora. Para quem não é iniciado no universo do Tarô, as
associações entre as cartas/arcanos e os temas desenvolvidos podem não ser
claras – salvo em algumas partes em que isso é mais explícito, como nas
ruidosamente perturbadoras “XI La Force” e “XV Le Diable”. “Arcanos explicita
minha tentativa em expor, com a menor quantidade de maquiagem e máscaras
possível, formas-pensamento, emoções e movimentos internos pouco ou nunca
acessíveis verbalmente ou mesmo conscientemente”, explica Zenícola. Talvez
esteja aí a chave para adentrar essa obra.
Hãl ****
Marcio Gibson / Jorge Nuno
Bambalam Records
O duo de guitarra e bateria, apesar de não estar entre os
formatos mais populares, tem rendido bons exemplares em anos recentes, como
“Hurgu!” (Terrie Ex e Paal Nilssen-Love) e “Beach Party” (Jaak Sooaar e Han
Bennink). Este Hãl vem se juntar a essa galeria, trazendo o encontro do
baterista Marcio Gibson com o guitarrista português Jorge Nuno (Signs of the Sillhouette).
O registro foi realizado no Nimbus Studios, em São Paulo, e traz três longas
improvisações. O duo tocou junto em algumas oportunidades nesses tempos (o
último encontro ocorreu mês passado, em SP), o que os ajudou a estabelecer a fina
sintonia que exibem no álbum.A sonoridade por vezes etérea da guitarra de Nuno,
com raízes claras em seu projeto principal, cria camadas inebriantes, que
ganham amplitude com o toque fraturado de Gibson, que parece perfurar as linhas
contínuas criadas a partir das cordas. Esse processo ecoa por todo o álbum, fazendo com
que as três faixas soem unas, como partes de um todo maior. À deriva, a
sonoridade desenvolvida pelo duo poderia (e pode) ecoar muito além do plano
estabelecido pelo álbum, como ondas que se autodragam e autoalimentam,
ressurgindo quando pareciam já concluídas. As ondulações de intensidade do
trabalho atingem possivelmente seu ápice na faixa “Saudade” (essa palavra
portuguesa tão única), que tem momentos em que o diálogo guitarra/bateria
parece se tornar mais uma acalorada discussão. Hãl ganhou, além do formato
digital, uma edição especial em vinil.
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista online portuguesa
Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe
Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)