Leandro “Gato” Barbieri morreu no último domingo, aos 83
anos. Celebrado por muitos como o autor da trilha sonora do filme “O Último Tango
em Paris”, lembrado por outros como um
músico de latin jazz, Barbieri foi mais do que isso e teve um período de
intensa criatividade, entre 1965 e 1975, quando esteve envolvido com a cena
free jazzística.
Quem conheceu Gato Barbieri apenas após a metade dos anos
1970 perdeu o que de realmente relevante
ele realizou. A partir de 1976, quando lançou o álbum “Caliente!”, o
saxofonista argentino se embrenhou cada vez mais em uma sonoridade latino-bailante,
longe de qualquer engajamento com sons e discursos vívidos que professou
anteriormente, rumo a discos de inegável tempero smooth para se ouvir em uma festa à beira da
piscina... Mas antes dessa virada sem volta, Gato Barbieri foi uma voz
inventiva e potente participando de algumas das frentes do melhor jazz livre feito então.
Gato Barbieri, Don Cherry, Karl Berger. 1966 |
Argentino, Leandro Barbieri veio ao mundo em 1932, na cidade
de Rosário. O envolvimento com a música surgiu cedo, coisa de família. Começou
com o clarinete, passou ao sax alto e, somente lá pelos 20 anos, chegou ao sax
tenor, que se tornaria seu instrumento principal. Das gigs em bares portenhos, chegou
à orquestra de Lalo Schiffrin, o que daria pela primeira vez visibilidade a seu
trabalho. Barbieri sabia que a cena local não era o suficente para o que
pretendia artisticamente e deixou a Argentina rumo à Europa. Era 1963. Uma vez
na Europa, o avant-garde se abriu a ele e não tardou a firmar parceria com um
dos criadores do free jazz, Don Cherry. Ao lado do cornetista gravou discos
clássicos do free, como “Complete Communion” (65) e “Symphony for Improvisers”
(66). Nesse período, conheceu e passou a tocar também com outros nomes
importantes do jazz mais inventivo. Ele ainda assinava às vezes como Leandro (ou ‘Lee’) Gato Barbieri e
gravou com a Jazz Composer’s Orchestra, com Carla Bley (“Escalator Over the
Hill”), Dollar Brand (“Hamba Khale/Confluence”), Charlie Haden (“Liberation Music Orchestra”) e Alan Shorter (“Orgasm”).
Ainda nos anos 1960, Barbieri grava seu primeiro álbum como
líder, para o icônico selo ESP-Disk. Reeditado agora em CD, o disco lançado
originalmente em 1967 se chamava “In Search Of The Mistery” e traz o saxofonista
em quarteto, que conta com o grande baixista Norris Sirone Jones. Nesse
período, Barbieri registra também “Obsession”, gravado com o baixista J.F.
Jenny Clark e o baterista Aldo Romano. Esse álbum recebeu uma versão em vinil
no Brasil, na década de 80, e às vezes aparece perdido nos sebos. Esses discos
representam a face mais crua e free jazzística de Barbieri que, ainda no final da década de 60, daria nova guinada em sua carreira, rumo às raízes latinas.
A nova etapa de Barbieri, algo que poderia ser rotulado como
“free latin jazz”, ganhou corpo em 1969, quando gravou o álbum “The Third World”.
O disco traz nomes essenciais do free (Charlie Haden, Beaver Harris e Roswell
Rudd) e marca um período fértil no qual Gato consegue sintetizar duas bases importantes: raízes latinas + avant garde jazz. Na mesma linha do que
Pharoah Sanders fazia naquele período com ritmos e timbres de sua África
ancestral, mesclados à liberdade e agressividade free jazzística, Barbieri buscou
criar novas possibilidades sonoras buscando inspiração em sua América Latina. E
o esquema rendeu belos álbuns, como “Fenix”, de 71, que conta com a
participação do pianista Lonnie Liston Smith (que à época trabalhava muito com
Sanders), de Ron Carter e do percussionista Naná Vasconcelos, que havia chegado
à Europa levado por Barbieri. Outro importante registro do
momento é “El Pampero”, captado ao vivo, na Suíça, em 71.
Em sintonia com o avant cine latino de então (que contava com figuras geniais como Glauber Rocha, ‘Pino’ Solanas e Tomás Gutiérrez Alea), Barbieri levava canções, ritmos, timbres, sonidos latinos emaranhados à liberdade jazzy para explorar um campo ainda pouco remexido. Sempre empunhando o espanhol – não apenas em nomes de discos (“El Pampero”) e músicas (“Cancion del Llamero”, “La Podrida”), mas também para se comunicar com o público nos shows mundo afora, como podemos ouvir em gravações diversas, Gato Barbieri se assentava como o grande nome do jazz livre nascido por essas bandas.
Em sua discografia não oficial, vale destacar “Live at Berliner Jazztage”, de 72, um bootleg que foi lançado tempos atrás em versão vinil pirata. No grupo que acompanha o saxofonista estão Lonnie Liston Smith, J.F. Jenny Clark e Han Bennink na bateria. A extensa faixa Sudamérica (ouça abaixo) é um exemplo fantástico do que buscava então; a faixa abre com Barbieri ao microfone, onde fala, para uma platéia na Alemanha, apenas em espanhol. Gato começa sua fala com “Sudamerica: tercero mundo” e enfileira países da região. Depois de serena divagação, entra com seu sax aos 12:50 em torrentes agudas, de notas alongadas e incendiárias, que caracterizavam seu sopro na época. Grande momento desse seu último inventivo período.
O crítico francês André Francis ilustra bem, em seu conhecido livro “Jazz”, publicado em 1982, o quanto Gato Barbieri era admirado: “É um dos músicos mais comunicativos, mais generosos, a ponto de provocar um delírio quase orgiástico. O verdadeiro continuador de Coltrane parece bem ser Barbieri”, escreveu. Porém, vale notar que no fim de seu texto Francis mostra preocupação com o que o Gato vinha produzindo (era 82): “Seus últimos discos, bastante comerciais, nos decepcionam”. Infelizmente, isso seguiria assim até seu fim.
Agora que Leandro Gato Barbieri silenciou, apreciemos o que
de realmente melhor produziu –não foram poucos os registros em que
demonstrou ser um músico de grande expressão. RIP...
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. E colabora com a revista online
portuguesa Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)