O grande mestre da percussão se foi.
Naná Vasconcelos morreu
na manhã de quarta-feira, em sua Recife, no hospital onde estava internado, câncer de pulmão.
O mundo fica mais tristemente quieto.
“Pra mim, tudo é música. O primeiro instrumento é a voz, o
melhor é o corpo e o resto é consequência disso. Então, a música para mim está
em tudo. Silêncio é a música mais difícil de fazer por que o silêncio é um
estado de espírito.” (Naná Vasconcelos*)
Em cerca de cinco décadas de música, Juvenal de Holanda ‘Naná’
Vasconcelos criou um universo sonoro único. Nascido no Recife em 2 de agosto de
1944, Naná Vasconcelos foi descoberto pelo mundo nos anos 1970 e se estabeleceu
como um dos artistas mais inventivos desde sempre. Mais do que apenas um
importante representante da música brasileira, Naná tem seu nome lá fora muito
ligado ao universo do jazz, dada não só as muitas parcerias que desenvolveu com
jazzistas, mas também pela criatividade e liberdade infinitas com as quais gestou
sua arte. A partir de sua vivência com diferentes ritmos populares e
instrumentos percussivos – a destacar seu parceiro máximo, o berimbau –, ele se
abriu a diálogos infindáveis com sons de todos os cantos, trafegando com genialidade
por uma via sonora universal.
Com mais de duas dezenas de discos lançados como líder e colíder
– e provavelmente mais de duas centenas de títulos como sideman ou colaborador –, por selos como ECM,
Soul Note e Tzadik, o trabalho de Naná
Vasconcelos é associado, em sites internacionais de informação de referência
como AllMusic e Discogs, majoritariamente com o gênero jazz, sendo muito ligado
a estilos como “latin jazz”, “world fusion” e “contemporary jazz”, e algumas
vezes até com a “free improvisation” – é possível que ele achasse graça disso,
pois não se considerava um jazzista; em uma entrevista ao site Noize, ele
disse: “Os instrumentistas daqui [do Brasil] ficam querendo tocar jazz. Querem
ser imitação de americano. Eu acho horrível”. No clássico O Livro do Jazz, de
Joachim-Ernst Berendt, Naná é citado em diferentes oportunidades. Lá, lemos:
“Naná é um mestre incomparável do berimbau. Desse instrumento tão simples
(...), Naná conseguiu extrair uma riqueza fascinante de possibilidades
expressivas”. Vale lembrar também que a cultuada revista norte-americana de jazz DownBeat, em
sua eleição anual de “melhores músicos”, premiou Naná Vasconcelos oito vezes consecutivas como melhor percussionista, entre 1984 e 1991.
A ligação de Vasconcelos com o universo jazzístico foi, de
fato, mais acentuada entre os anos 70 e meados dos 90. E não foi pouco o que
aconteceu aí: ele tocou e dividiu parcerias com muita gente desse universo, em suas
variadas vertentes. Essa história começa em um período em que estava vivendo no
Rio de Janeiro, ainda com seus vinte e poucos anos. Foi quando o saxofonista
argentino Gato Barbieri, que já se destacava na cena free internacional, o
convidou para tocar com ele nos EUA e na Europa. Era 1970 e Naná embarcou com
Barbieri em uma viagem que se revelaria fundamental para apresentar sua inventividade
única ao mundo. Tocou e gravou com o saxofonista nos meses seguintes, adentrando o universo jazzístico. Conheceria na época o já famoso trompetista Don Cherry, futuro importante parceiro. É nesse período ainda que sua
discografia vai surgindo, sendo um marco a gravação de “Africadeus”, seu primeiro álbum, editado na Europa em 1972.
Fixando residência em Paris, onde viveria por cinco anos até
se mudar para Nova York, o percussionista participaria naquela década de discos
de diferentes músicos ligados às linhas mais inventivas do jazz de então, como
o citado Barbieri, em “Fenix” (71) e “El Pampero” (72); Leon Thomas, em “Gold
Sunrise on Magic Mountain” (71); Rolf Kuhn, em “The Day After” (72); Don Cherry,
com “Organic Music Society” (72); Baikida Caroll, em “Orange Fish Tears” (74);
Joachim Kuhn, “Hip Elegy” (76); Perry Robinson, com “Kundalini” (78); e Dwight Andrews, com “Mmotia, The Little People” (79). Mais à
frente, levaria seu arsenal percussivo a álbuns de Chico Freeman, Pat Metheny, Jan
Garbarek, John Zorn, Pierre Favre, Ivo Perelman, Terumasa Hino, Ron Carter, Jean-Luc
Ponty, Jacques Thollot, Bob Moses, Mark Helias, Antonello Salis, John Lurie,
Andy Sheppard, Ralph Towner, Jack DeJohnette, além de gravações com artistas
destacados em outras searas, como B.B. King, Paul Simon e Talking Heads. Das
também não poucas parcerias com músicos brasileiros – como Milton Nascimento e Itamar
Assunção –, merece atenção à parte os trabalhos feitos ao lado de Egberto Gismonti, notadamente o clássico “Dança das Cabeças” (77) – que eles
reinterpretaram no Sesc em 2011.
Especial destaque na trajetória de Naná é o projeto Codona.
Trio formado em 1978, o Codona trazia Naná Vasconcelos ao lado de Don Cherry e
Colin Walcott – da primeira sílaba de seus nomes vinha “Codona”. O
trio acabou em 1984, quando Walcott morreu, e deixou três saborosos registros, editados
pelo selo ECM, em que demonstram um world jazz em que fundem elementos
africanos, orientais e jazzísticos, em uma música por vezes contemplativa e
sempre encantatória.
Atento a novas possibilidades criativas, sempre, mas sem perder suas marcas
fundamentais – o berimbau como instrumento primeiro, o jogo com a voz, a
exploração ilimitada do universo percussivo –, Naná não negou nem investidas
por vias eletrônicas. Nos anos 1980, testou possibilidades com elementos
eletrônicos e passou a integrar uma drum machine a seu repertório percussivo, gestando
os dançantes “Bush Dance” (86) e “Rain Dance” (89). Mais recentemente, voltaria
a utilizar elementos eletrônicos no álbum “Minha Lôa” (2001). Mas isso sem descaracterizar sua obra, cujos discos nunca deixaram de soar como um trabalho
do Naná.
Em sua discografia como líder, há títulos realmente geniais
e ao menos três obrigatórios:
“Africadeus” (72), “Saudades” (80) e
“Storytelling/ Contando Histórias” (95).
Africadeus foi gravado em seus primeiros tempos de Paris, no
começo dos anos 70, e marca o início de sua discografia. O álbum, editado pelo
selo francês Saravah em 73, traz três faixas em que algumas das principais marcas
de sua obra já estão presentes. O lado A do LP é composto apenas pela
extensa faixa-título, focada no berimbau, onde Naná coloca este instrumento
como protagonista de uma forma nunca antes feita. No lado B, dois temas, “Abôios”
e “Seleção de Folclore”, em que o artista trabalha percussão e voz, revisitando
e recriando ritmos (cirandas, samba de roda) e cantigas populares.
Já bem conhecido na cena europeia, Naná entraria em estúdio
em março de 1979 para gravar Saudades para o mítico selo alemão ECM. Esse
trabalho, que traz cinco temas, também abre com uma longa peça voltada a seu
instrumento favorito. “O Berimbau” é uma incrível criação em que os solos do
instrumento dividem a cena com um conjunto de cordas, executadas por
integrantes da Radio Symphony Orchestra Stuttgart – como alguns críticos definiram: trata-se praticamente de um concerto para berimbau. Destaque do álbum também é “Vozes
(Saudades)”, em que vemos em alta criatividade suas investigações com a voz, em um jogo vocálico em que brinca com a silabação, explorando o eco e a
espacialização. Outra peça muito exemplar de seu trabalho é “Ondas (Na óhlos de
Petronila)” – assim mesmo, com a grafia errada de nos olhos –, com percussão e voz em alta e crescente ebulição.
Há ainda um belo duo com Gismonti, “Cego Aderaldo”.
Nos anos 90, Naná gestou outra preciosidade. Gravado entre
92 e 93 em Nova York (uma peça foi registrada no Recife, ao lado de “street
musicians”, como diz o encarte), Storytelling saiu em 95 em uma coleção da
EMI com músicos/as do mundo – teve uma edição nacional, sob o título “Contando
Histórias”. Esse álbum traz Naná trabalhando a voz/canto de uma forma distinta
da que muito explorou antes. Com pequenas frases que se repetem, ele arquiteta as músicas – nenhuma é puramente instrumental – alcançando um outro tipo
de resultado. Em “Uma tarde no Norte”, por exemplo, temos o mote “o meu chapéu
está no alto céu/mestre Domingo cadê seu chapéu”; em “Fui Fuio (na praça)”,
temos o “d’aqui prá lá, de lá prá cá” girando nos ouvidos. Há ainda um de seus temas mais conhecidos,
“Vento Chamando Vento”, em que o nome da peça é repetido ciclicamente, como num chamado à espera de uma resposta que não vem.
O último registro de Naná Vasconcelos foi 4 Elementos, álbum lançado em 2013. Apesar de doente, o músico mantinha uma agenda ativa; deveria se apresentar em SP no próximo fim de semana, com o grupo Barbatuques. Para abril, tinha agendada uma pequena turnê pela Ásia, passando por Japão, China e Coreia do Sul, uma vez mais em duo com Gismonti.
“Muita gente não conhece o que eu faço. Gente de diferentes
mundos sociais está começando a se interessar por discos meus. Estou conhecendo
muitos jovens que não me conheciam, que nasceram quando saí do Brasil. Muito
interessante...”, disse ao site Clube de Jazz.
Que a música de Naná Vasconcelos continue assim, sendo descoberta, encantando, deslumbrando os sentidos daqueles que a alcançam.
(*em entrevista ao site La Parola)
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell
(Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)