Jazzcore, jazz-rock, punk jazz, fusion, electric jazz, heavy
jazz: os encontros entre o jazz e o rock, nas suas mais diversas roupagens, foram
enquadrados em diferentes rótulos desde os anos 1960, quando tal associação passou
a se desenvolver...
Por Fabricio Vieira
As relações entre o jazz e o rock ocorrem há cerca de meio século. Em torno da virada dos anos 60 para os 70, esse processo de fusão estética foi se tornando mais comum e produtivo, e logo surgiram os primeiros grandes grupos de fusion – novidade chamada inicialmente também de jazz-rock. Das aproximações pioneiras do guitarrista Lary Coryell e seu “Free Spirits”, em meados dos anos 60, à bem-sucedida empreitada de Miles Davis nessa seara (que não tardou a gestar o icônico “Bitches Brew”), a simbiose entre elementos do jazz e do rock acabou por criar bandas seminais como o Soft Machine, e também outras que se tornaram, em certo aspecto, bem famosas, como o Weather Report, de Wayne Shorter e Joe Zawinul, e a Mahavishnu Orchestra, de John McLaughlin e Billy Cobham, em um processo de expansão crescente que acabaria por diluir as experiências mais excitantes do início dessa união sonora.
Novos estilos surgidos dentro do rock nos anos 70 e 80 acabariam
por ampliar as possibilidades de tal “fusão”. Punk, metal, hardcore, grindcore,
no wave, noise se tornariam combustível para músicos ligados de alguma forma ao
jazz/free jazz, e não tardaria a aparecer grupos com novas propostas fundindo
sonoridades desses estilos todos. O Last Exit, por exemplo, com seu álbum de
estreia de 1986, acrescentou um peso metal às improvisações demolidoras
comandadas por duas figuras referenciais do free jazz sessentista: Peter Broetzmann
e Sonny Sharrock. Ainda no fim daquela década, John Zorn começaria algumas de
suas seminais incursões por novos rumos, dentre as quais, no campo aqui
apresentado, se tornariam basilares o Naked City e o PainKiller. Nesse aspecto,
o PainKiller é especialmente importante para os encontros do free jazz com o
rock extremo: ao lado de Zorn, estavam Bill Laswell (que também participou do
Last Exit) e Mick Harris (do Napalm Death), baterista-símbolo do grindcore: conexão
máxima entre nomes dos dois polos, demarcando o que se tornaria conhecido como
jazzcore. Na virada do século, dois outros grupos fundamentais surgiriam: o trio
italiano Zu e o escandinavo The Thing. Ainda em atividade, os dois trios são
referência de como esses universos sonoros podem abrir novas vertentes
artísticas inventivamente potentes.
Após esses experimentos radicais pioneiros, novas bandas marcaram
espaço explorando investidas outras: neste século XXI, vemos surgir músicos que sem
dúvida beberam no free jazz, no punk, hardcore, noise, improvisação livre, industrial,
no wave, em diferentes vertentes do metal, mas que, além disso, cresceram
ouvindo bandas que exploraram conexões múltiplas antes: além dos míticos Last Exit,
Naked City e PainKiller, grupos como Blauer Hirsh, GOD, Sabot, 16-17, Ruins, Prelapse,
The Flying Luttenbachers e outros mais alimentaram furiosos encontros entre
elementos do avant-jazz e do rock nos anos 80 e 90, formando um amplo e fértil
painel pronto para ser degustado e visitado por músicos de gerações mais jovens.
Algo interessante de notar é que esses grupos todos, de ontem e de hoje, costumam
trazer nomes próprios (e não destacar o nome de um músico-líder), algo central
no universo do rock, mas menos comum no jazz.
Buscando o que tem sido feito de novo nessa seara de
conexões de radicalidades, o FreeForm, FreeJazz traz uma seleção de 11 bandas que apareceram nos
últimos anos, de diferentes lugares do mundo (Itália e Holanda são dois polos
de destaque), que mantêm a herança dos extremos do (free)jazz e do rock em
ebulição, criando sons verdadeiramente explosivos e inovadores. Curioso que
quase todas as bandas apresentadas aqui são power trios (ou duos),
costumeiramente tendo bateria e sax em suas bases (+ baixo ou guitarra) e
fazendo um som sempre autoral, basicamente instrumental, independente de fato, dentro de um esquema
DIY.
Música nova, viva, agressiva, desconcertante...
Música nova, viva, agressiva, desconcertante...
*THE NEW
WAVE OF HEAVY (FREE) JAZZ*
NOISE OF TROUBLE (Itália)
Esse trio de Roma nasceu em 2010 e já colocou cinco títulos
no mercado. Também conhecido pela sigla N.O.T., o Noise of Trouble – nome que
remete a um álbum do Last Exit – é composto por Marco Colonna (saxes
e clarinete), Luca Corrado (baixo elétrico) e Cristian Lombardi (bateria). Os
trabalhos do grupo, apesar de instrumentais, mantêm um discurso
crítico-político contundente, aura punk refletida nos títulos dos discos, como
“The Bloody Route: from the Country Where Women are Older than God”, que aborda
as rotas migratórias para a Europa; e “Cosi Mori La Luna”, sobre o conflito
israelense-palestino. O som de cada disco é bem diferente, dependendo da
inspiração que o motiva, podendo contar também com convidados.
BROM (Rússia)
Formado em 2008 em Moscou, o trio Brom surgiu com Anton
Ponomarev (saxes alto e barítono), Dmitry Lapshin (bass guitar) e Oksana Grigorieva
(bateria). O grupo apresenta sua música como “uma explosiva mistura de jazz e
punk”, que já rendeu quatro discos. Ponomarev, com seus intensos solos, acaba
sendo uma marca destacada no som do trio, especialmente no primeiro álbum
homônimo, de 2011, com força free jazzística bastante latente. O trompetista
KonstantinSukhan tem sido um convidado bastante presente, aparecendo em dois
álbuns.
ByZERO (Rússia)
Também vindo de Moscou, o byZero surgiu em 2009 como
quarteto. Em sua formação estão Anton Kolosov (baixo), Fyodor Fokin (guitarra),
Katya Rekk (sintetizadores) e Alexey Bobrovsky (bateria). Ao quarteto,
normalmente são adicionados saxofonistas, sendo parceiros constantes Ilya
Belorukov, Nikolai Rubanov e Anton Ponomarev (do Brom). A banda descreve seu
som como um blend de avant-garde jazz, hardcore, progressive rock e noise. O
principal registro do grupo é “Zencore”, de 2011, que apresenta peças que
abarcam, ora mais para um lado, ora mais para outro, todas essas esferas de
influências apontadas.
DEAD NEANDERTHALS (Holanda)
Esse fulminante duo holandês surgiu em 2010 sob o epíteto “New
wave of heavy Dutch jazz”, apontando (ironicamente, talvez) à linhagem de
grandes nomes do free jazz que vieram de seu país de origem. Em seu início,
Otto Kokke (saxes tenor e barítono) e René Aquarius (bateria) exibiam peças mais
centradas, breves e diretas, que não escondiam a influência grindcore – como no
primeiro disco homônimo e em “The V-Shaped Position”, que trazem várias faixas
com menos de 1 minuto, tudo muito nervosamente impactante. Os pedais que Otto
adiciona ao sax intensificam a experiência do instrumento, fazendo muitas vezes
ecoar como se tratasse de várias vozes juntas. Nos últimos trabalhos, o Dead Neanderthals
tem apostado em explorações mais longas, improvisação livre que pode se
arrastar por mais de 20, 30 minutos – como mostra o recente Worship the Sun –, mas sempre
mantendo a elevada energia inicial.
MYSELF (França)
O Myself é um trio que vem de Estrasburgo, França. Formado
por Claude (sax barítono, voz), Nico (guitarra) e Pascal Gully (bateria),
editou o primeiro trabalho, “Me!”, em 2007. Depois viria “Haro!” (2011) que,
parece, foi o último registro da banda. Gully é o mais conhecido do trio, por
seu trabalho com o “Zakarya”, banda ligada à “Radical Jewish Culture”, que
gravou pela Tzadik. O Myself mostra, especialmente em “Haro!”, diferentes
perspectivas de abordar a base jazzcore que os guia: há temas em que a voz é um
elemento mais presente; há temas mais sombrios e arrastados; e também material mais cru, direto e potente.
THE GATE (USA)
Em contraposição aos ataques potentes e furiosos das outras
bandas aqui destacadas, o The Gate apresenta o que alguém já chamou de doom
jazz. O trio comandado por Dan Peck (tuba), ao lado de Tom Blancarte (baixo) e
Brian Osborne (bateria), é realmente sombrio, arrastado e tormentoso, muito em
sintonia com o que de melhor o doom metal produziu. O disco “Acid Soil” –
creditado ainda como Dan Peck Trio, primeiro nome que assinaram quando o grupo
foi formado em 2008– é especialmente forte nesse sentido. O The Gate mostrou
sua veia mais free impro no recente álbum “Stenth”, editado em meados de 2014,
quando contou com dois convidados especiais: o trompetista Nate Wooley e o
baixista Tim Dahl.
MOMBU (Itália)
Afrogrind, Africa-core... assim já foi chamado o som do duo
italiano Mombu. No sax barítono, Luca T. Mai (do Zu); na percussão, Antonio
Zitarelli (do Neo). Os dois instrumentistas trouxeram para o Mombu a força
percussiva africana para dialogar com elementos de jazz, hardcore e metal, como
eles mesmos explicam, gestando uma música realmente densa, de embalo
inebriante-ritualístico por vezes, que já rendeu quatro álbuns, desde a estreia
em 2011. No ano passado, editaram um trabalho sonoramente diferente, em
parceria com o rapper Oddateee, um interessante registro, mas que deixou os
antigos fãs do Mombu inquietos com o que virá depois...
GODDESS APHONIC (USA)
Trio de San Francisco comandado por Matt Chandler (baixo),
Mike Forbes (sax) e Britt Ciampa (bateria), o Goddess Aphonic apareceu em 2015
e lançou três títulos (demo, live...), com algumas poucas faixas cada. Banda
realmente fresca, com um som em formação, o Goddess Aphonic diz carregar como
influências sonoridades vindas do free jazz, no wave e modern noise.Não à toa,
eles escrevem no bandcamp: “apenas um teste antes que tenhamos uma gravação
melhor juntos”. A ver o que trarão
adiante...
ALBATRE (Holanda/Portugal)
Formado pelos portugueses Hugo Costa (sax) e Gonçalo Almeida
(baixo), junto com o baterista Philipp Ernsting, o Albatre está sediado em
Roterdã. O trio editou seu primeiro álbum de estúdio, “A
Descent into the Maelstrom”, em 2013, e no ano passado soltou um novo título,
“Nagual” – álbum realmente forte. Apesar do peso ruidoso que está em sua
estrutura, o Albatre trabalha seus temas sem urgência, podendo encontrar
espaços para divagações entorpecentes e dilacerantes, que crescem em robustez e
agressividade com grande naturalidade.
HIPPIE DIKTAT (França)
Vindo de Paris, o trio Hippie Diktat conta com Antoine Viard
(sax barítono), Richard Comte (guitarra) e Julien Chamla (bateria). Gravaram o
primeiro álbum, “Fire On”, em 2012 e depois soltaram ainda “Black Peplum”. Se
o som parece seriamente elaborado, certa ironia pode ser detectada no título de
faixas, como “Fuli Keta” e “Sunn A)))”, que aparecem no disco de estreia. Aqui
temos o reverso de um Goddess Aphonic: os músicos, provavelmente com maior
vivência – Comte, por exemplo, tem trabalhos com Simon H. Fell –, demonstram
saber exatamente o que buscam.
CACTUS TRUCK (Holanda)
O trio holandês Cactus Truck é, dentre as bandas aqui
citadas, a mais devedora da energy music free jazzística dos anos 60. Eles
também se dizem influenciados pela no wave e o japa noise. Mas também mostram
que ouviram grindcore e sabem gestar pílulas explosivas (como os temas de menos
de 1 minuto que costumam aparecer em seus álbuns, ao lado de peças bem
maiores). O trio, de Amsterdã, é John Dikeman (saxes), Jasper Stadhouders
(guitarra e baixo) e Onno Govaert (bateria). O Cactus Truck, que lançou o
primeiro álbum oficial em 2012, “Brand New for China!”, já assinou parcerias
com Terrie Ex e Jeb Bishop. Um dos grandes grupos a surgir em anos recentes.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e música para o Valor Econômico. Também colabora com o site
português Jazz.pt. É autor de liner notes dos álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)