A pulsante cena free impro/jazzística de Portugal não tem
ficado fechada em si mesma. Uma série de parcerias entre músicos portugueses e
artistas de outras partes têm surgido, com alguns grandes resultados, como
mostram esses lançamentos recentes...
Portugal tem sido um palco de grande importância não só para
os músicos locais, que têm desenvolvido uma cena realmente intensa, mas para
estrangeiros que têm ido ao país em busca de intercâmbio e novos ares – sendo que
muitos têm optado ficar por lá ao menos por um tempo. Infelizmente a distância tem
restringido as conexões entre músicos brasileiros e portugueses; poucos daqui
vão para lá e vice-versa. Com a depreciação cambial dos últimos tempos, essa
ponte fica ainda um pouco mais distante... Mas artistas europeus (em especial)
e norte-americanos têm aproveitado para tocar e gravar com os portugueses, de
forma bastante frutífera. Não à toa, alguns dos melhores álbuns lançados no ano
passado traziam exatamente encontros desse tipo. Aqui apresentamos discos de
destaque que saíram de meados de 2015 para cá e que registram parcerias bem-sucedidas
entre músicos de Portugal e de outros cantos do mundo.
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Lisbon Connection ****(*)
Elliott Levin’s Lisbon Connection
JACC Records
O veterano saxofonista Elliott Levin, da Filadélfia (EUA), se uniu aos portugueses Luís Lopes (guitarra), Hernani Faustino (baixo) e Gabriel Ferrandini (bateria) em uma de suas passagens pela Europa, criando um grupo que chamou de Lisbon Connection. Além de tocarem ao vivo, fizeram este registro – em maio de 2012, no Golden Pony Studios (Lisboa), editado no ano passado – para alegria de quem não teve o prazer de vê-los em ação no palco. Um ex-aluno de Cecil Taylor, Levin, apesar de não se restringir aí, é muito devedor de certa energy music, como bem mostra esse registro. A guitarra noise-rock de Lopes colabora para que a temperatura gestada seja elevadíssima, mesmo que, em certos momentos, Levin baixe o tom, tocando flauta ou recitando sua poesia. Ferrandini, que também sabe ser bastante muscular quando o contexto demanda, faz com que a música tenha picos realmente explosivos. A integração do quarteto é elevada e o álbum, realmente empolgante.
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Live at Culturgest ****(*)
Luís Lopes/ Jean-Luc Guionnet
Clean Feed
Este encontro entre o guitarrista Luís Lopes e o saxofonista francês Jean-Luc Guionnet ocorreu em março de 2011, mas apenas no ano passado chegou às prateleiras. Guionnet, que comanda o incrível trio “The Ames Room”, é hoje um dos nomes mais expressivos do sax alto. Aqui, ao lado da guitarra sempre desconcertante de Lopes, o que vemos são improvisações longas (apenas duas peças formam o álbum), de grande inventividade. Em certos momentos, pode vir à mente os clássicos encontros de Kaoru Abe e Masayuki Takayanagi, mas um pouco menos noise. A primeira faixa, “Part I”, se desenvolve de forma crescente, com os instrumentistas testando os rumos em cada vez mais intensa ruidosidade, que atinge seu pico lá pelos dez minutos, mantendo a ebulição até o desfecho. Em “Part II”, o esquema é mais direto, com uma entrada menos estendida, oscilando entre pontos de intensidade maior e menor, sendo que aqui há mais espaço para ouvirmos Lopes em momentos protagonistas.
Cròniques 4 ****(*)
Albert Cirera / Carlos Zíngaro
Discordian Records
O catalão Albert Cirera é um dos não poucos músicos
estrangeiros que optaram por se estabelecer em Portugal. Nesse encontro Espanha/Portugal, vemos Cirera ao lado do veterano Carlos Zíngaro, em um
intenso duo de sax e violino. A série “Cròniques” tem sido desenvolvida por
Cirera desde o ano passado, sempre com registros inéditos em duo, e vem sendo editada pelo selo de Barcelona Discordian Records. O que vemos neste “4” é um
incrível exemplar de improvisação livre, em que oscilações explosivas (como nas
breves “The Ice Butcher” e “The Lazy Killer”) dividem espaço com temas marcados
por um quase silêncio murmurante (como “East Wisper Dust”), em que os detalhes
são o que importa. Música centrada e coesa, parece fruto de uma longa parceria –
o que não é o caso –, em que um instrumentista sabe perfeitamente o que fazer
para tirar o melhor de seu parceiro.
This Love ****
Susana Santos Silva/ Kaja Draksler
Clean Feed
Vinda do Porto, Susana Santos Silva tem se consolidado como uma das vozes mais criativas do trompete contemporâneo. Dividida entre vários projetos, tem trabalhado com artistas de visadas diversas, de diferentes cantos, deixando como rastro uma sequência de belos álbuns – somente em 2015, assinou cinco títulos. Aqui vemos a trompetista em duo com a pianista eslovena Kaja Draksler (cuja tese, defendida no programa de pós-graduação do Conservatório de Amsterdã, se chama: "Cecil Taylor: Life As..."). São seis temas, registrados em março de 2015, no Culturgest (Lisboa). Interessante notar o equilíbrio do projeto: duas faixas são assinadas por Susana, duas por Kaja e as outras pela dupla. O diálogo entre trompete e piano soa fluido e envolvente, quer seja em temas mais líricos, como “This Love”, quer seja em peças mais densamente abstratas, como “Hymn to the Unknown”.
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The Elephant’s Journey ****
Lama + Joachim Badenhorst
Clean Feed
O Lama Trio é um dos projetos comandados pelo baixista
lisboeta (radicado na Holanda) Gonçalo Almeida, ao lado de Susana Santos Silva (Porto) e do baterista
canadense Greg Smith. Para este "The Elephant’s Journey", o trio convidou o
clarinetista belga Joachim Badenhorst, que trouxe um outro colorido ao intenso
som do grupo. O resultado é uma fascinante, por vezes sombria, visitação sonora
a uma das últimas obras de José Saramago, “A Viagem do Elefante”. Os melhores
momentos de Badenhorst são ao bass clarinet, com o qual cria belos contrastes
com o trompete de Susana. Com peças bem arquitetadas e abertura a improvisações
de grande liberdade, o Lama Trio mostra que atingiu um ponto de grande
maturidade artística em seus pouco mais de sete anos de existência.
Happy Meal ****(*)
WAS? (What About Sam)
JACC Records
Registrado ao vivo no Salão Brazil, em Coimbra, Happy
Meal traz o quinteto formado pelos lisboetas Luís Vicente (trompete),
André Rosinha (baixo) e Vasco Furtado (bateria) ao lado dos italianos Roberto
Negro (piano) e Federico Pascucci (sax tenor). Chamado de WAS? (What About
Sam), o grupo apresenta um som mais ligado ao universo jazzístico, do pós-bop
ao free, por meio de seis saborosos temas. Trompete e sax são especialmente expressivos
no conjunto, sendo responsáveis por momentos arrepiantes, como os últimos
minutos de “Chanting in the Name of”. Mas não se pode ignorar a solidez da base
rítmica, muito bem ajustada. Com um som livre sem ser propriamente experimental,
o WAS? poderia protagonizar, com brilho, festivais de jazz das mais diferentes
matizes.
Concentric Rinds ****
Marcelo dos Reis/ Angelica V. Salvi
Cipsela
Esse encontro entre o guitarrista Marcelo dos Reis, sediado em Coimbra, e a harpista espanhola Angelica V. Salvi é realmente singular. Estreia discográfica do duo, que se formou em 2012, Concentric Rinds exibe uma harmônica combinação de sonoridades entre a guitarra acústica e a harpa, em um processo de desenvolvimento por vezes pontilhista, em que a música vai se estruturando por meio de sutis toques, como esparsas pinceladas em uma tela. Há, sim, também algum material fora desse esquema: Reis e Salvi trabalham em alguns momentos com “harpa preparada” e “guitarra preparada”, o que traz outras possibilidades sonoras, como bem ilustra a peça “Surface”. A proximidade timbrística dos dois instrumentos ajuda a fortalecer a coesão do conjunto criado, em que os dois músicos compartilham, de fato, cada peça, que apenas existe pela colaboração mútua – verdadeira parceria criativa. Um álbum encantatório.
Bien Mental ****
João Camões/ Jean-Marc Foussat/ Claude Parle
Fou Records
O violista João Camões (Open Field, Earnear) passou
uma temporada em Paris, onde se uniu aos franceses Jean-Marc Foussat (dispositivo
eletroacústico) e Claude Parle (acordeón). Do encontro, saíram três temas
viscerais, bastante devedores do universo da música contemporânea, que não
ignoram ruidagens e saturações em um processo em que preencher qualquer silêncio
é um imperativo. O protagonismo de instrumentos como viola e acordeón não desemboca,
como se poderia imaginar, em espaços camerísticos: a intensidade e a energia
gestadas pelo trio nos faz por vezes esquecer quais são os instrumentos em ação
no desenvolvimento das peças. O segundo tema, “À vingt ans”, se apresenta como
o mais intrigante, com os três músicos produzindo densas camadas sufocantes
logo de entrada, que atenuam a força mais à frente, mas apenas para retomar
fôlego para novos picos. Não é claro se o trio se mantém em atividade ou não,
mas seria bom poder ouvir outras experimentações deles.
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell
(Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)