A 1ª “noite free” em palco brasileiro






Em 1989, pela primeira vez um festival dava espaço ao free jazz no Brasil.
Mais, ainda: foram escalados para tocar na mesma noite nada menos que os icônicos Cecil Taylor e John Zorn...




Nos últimos anos, quem vive no Brasil e se interessa pelo universo do free jazz e da free improvisation teve a oportunidade de ver alguns dos maiores nomes dessa seara tocando por aqui. Mas há não muito, era raríssimo termos algum representante do free em nossos palcos. Desde ao menos 1978, quando foi realizado o I Festival Internacional de Jazz de São Paulo, o país conta com eventos regulares que têm como destaque o jazz e cercanias, sempre trazendo nomes de diferentes estilos e gerações. Mesmo antes disso, medalhões do gênero se apresentaram no país, como Dizzy Gillespie (em 1956), Louis Armstrong (1957), Ella Fitzgerald (1960) e Miles Davis (1974). O free, por outro lado, seria tratado como pária por longo tempo...


Um marco na mudança desse cenário foi a noite do dia 4 de junho de 2008, quando subiu ao palco do Sesc Vila Mariana (SP) o lendário Peter Broetzmann com o seu Full Blast – não bastasse, quem abriu a noite foi o trio de Ivo Perelman, músico paulistano radicado em NY que, à época com 20 anos de carreira, praticamente nunca tinha se apresentado no país; depois, Perelman voltou em outras oportunidades, acompanhado de figuras centrais da cena, como Matthew Shipp, Joe Morris, Gerald Cleaver e Whit Dickey.
A partir desse episódio, a vinda de músicos do universo do free ganharia rápido impulso, tendo entre 2010 e 2014 seu período mais intenso, muito pela abertura dada a essa música por Sesc e CCSP (Centro Cultural São Paulo) e o trabalho de produtoras como Desmonta e Norópolis.  Para um país que passou décadas ignorando o free jazz e a improvisação livre, surpreende a lista de músicos que tocaram aqui (muitos pela primeira vez!), em diferentes contextos e espaços, nesses anos recentes: Ken Vandermark, Matana Roberts, William Parker Quartet, Mats Gustafsson (com The Thing e Fire!), Sabu Toyozumi, Muhal Richard Abrams, Sun Rooms, Nate Wooley, Anthony Braxton, Mary Halvorson, Wadada Leo Smith, Roscoe Mitchell (solo e com o Art Ensemble of Chicago), Phil Minton, Paal Nilssen-Love, Audrey Chen, Tim Berne, Pharoah Sanders, Rob Mazurek, Ornette Coleman, Carlos Zíngaro, Archie Shepp, Frank Rosaly, John Russell, Peter Broetzmann (que retornou com John Edwards e Steve Noble), Yusef Lateef, Rodrigo Amado e Gabriel Ferrandini, Vasco Trilla, John Butcher, Eke Trio, Atomic, Frode Gjerstad, Han Bennink, Zorn e Masada, Mark Sanders, Trevor Watts, Veryan Weston, Signs of the Silhouette, Phil Cohran, Speeq, Ricardo Tejero, Samuel Blaser, Ab Baars, Eddie Prévost, RIO, Urs Leimgruber, Roger Turner, David Torn, Hans Koch, Ingrid Laubrock, SOL 6, Chefa Alonso, Crash Trio, Alex Ward, ICP Orchestra... Vendo tantos nomes vitais que passaram por aqui nos últimos cinco, seis anos, nem parece que o free era praticamente “vetado” em nossos palcos há não muito...

Talvez o capítulo primeiro dessa história do “free em nossos palcos” seja a vinda, em 1986, do quinteto do saxofonista britânico Elton Dean, que contava com o trombonista Paul Rutherford e o baixista carioca Marcio Mattos. Pioneiro da improvisação livre no Brasil, Mattos se mudou para Londres em meados dos anos 1970, pois a música que queria fazer era inexistente no Brasil. E aquela foi a primeira vez que conseguiu trazer um grupo com o qual estava envolvido para tocar em seu país, sendo que a pequena turnê do quinteto ocorreu apenas devido a um patrocínio conseguido junto ao British Council e à Cultura Inglesa, que permitiu que os músicos viessem e se apresentassem em diferentes cidades, como Rio, São Paulo, Ouro Preto e Santos. Esse evento, pouco divulgado e acompanhado, talvez estivesse esquecido se não tivesse tido um desfecho concreto: o quinteto de Elton Dean gravou uma sessão que aconteceu na Rádio Cultura (SP), que acabou depois virando o disco “Welcomet – Live in Brazil 1986”, editado pelo selo Impetus Records.

(Folha de S.Paulo, 26/08/1989)

Um público maior presenciaria a existência do free jazz um pouco à frente. Na 5ª edição do Free Jazz festival, em agosto de 1989, no Rio e em São Paulo, os curadores surpreenderam como nunca mais fariam. É irônico que um evento com o nome de Free Jazz Festival tenha sido avesso às formas jazzísticas mais vanguardistas, sendo que seu nome, como é sabido, vinha de uma marca de cigarros (“Free”) que o patrocinava. Tendo já surgido grandioso, com várias noites a cada ano, regadas de músicos estrangeiros conhecidos, o Free Jazz Festival contava com ampla cobertura da imprensa e grande atenção do público, especializado ou não. Assim, infelizmente a ousadia de 1989 não voltou a ser repetida, nem pelo próprio Free Jazz Festival, que durou de 1985 a 2001, nem pelos eventos que o substituíram (mantendo a mesma estrutura e repercussão), o Tim Festival, o BMW Jazz Festival e o mais recente Brasiljazzfest – sorte que agora temos o Jazz na Fábrica, maior evento de jazz do país na atualidade, verdadeiramente aberto ao que de mais inventivo tem sido feito nessa seara.
Mas voltemos a 1989. Naquele ano, o Free Jazz Festival montou um line-up para preencher seis noites de música, entre os dias 22 e 30 de agosto, em São Paulo e no Rio. A escalação trazia diferentes nomes conhecidos: Count Basie Orchestra, o cantor Joe Williams, Horace Silver, Max Roach, George Benson, John Lee Hooker e Branford Marsalis. Mas, no meio disso tudo, estavam John Zorn, com seu novo grupo Naked City, e o trio de Cecil Taylor. Interessante que saxofonista e pianista foram escalados para tocar na mesma noite (programação repetida no Rio e em SP): ou seja, tivemos, pela primeira vez, uma verdadeira noite free. No Rio de Janeiro, Zorn e Taylor tocaram no dia 22, no teatro do Hotel Nacional; em SP, os concertos aconteceram no dia 26, no Palace.
  
Entre figuras mais conhecidas e palatáveis, surpreende o quanto Zorn e Taylor apareceram na grande imprensa. Em uma era pré-internet, a divulgação nos grandes jornais era vital para informar e chamar a atenção do público. Durante os quase dez dias que durou o evento, entre os shows no Rio e em São Paulo, várias matérias tiveram como protagonistas John Zorn e Cecil Taylor. Para as apresentações, Cecil Taylor veio com seu trio formado por William Parker e o baterista Gregg Bendian, trazendo ainda de convidado o percussionista Henry Martinez. John Zorn, que trabalhava no primeiro álbum sob a marca Naked City, veio acompanhado de Bill Frisell, Fred Frith, Wayne Horvitz e Joey Baron.

(O Globo, 22/08/1989)
A sequência de matérias envolvendo os dois nomes começa com um tom mais “entretenimento” que “artístico”, com o repórter de “O Globo” mais interessado no espanto causado pelo visual dos dois músicos quando chegam ao país do que a relevância da música que professam. Tratados como “estrelas de festival”, a matéria com o título “Visual free como jazz”, publicada no dia 22 no Segundo Caderno de “O Globo”, traz na linha fina “Funcionários do aeroporto internacional se chocam com a ‘deselegância‘ de Zorn e Taylor”. É curioso que a matéria tenha tido até chamada na capa do jornal (não do caderno de cultura, do jornal!). E lá, lemos a pérola: “Visual discutível – que para alguns pode ser a nova tradução do free –, o saxofonista John Zorn e o pianista Cecil Taylor desembarcaram ontem no Rio (...). Zorn apareceu careca e com uma espécie de rabinho-de-cavalo na nuca, além de uma jaqueta surradíssima e tênis trocados. Taylor – que foi aclamado como “nojento”, por lembrar o ator Tião Macalé – estava todo de bege, com trancinhas e um feioso chapéu”. Sim, isso foi escrito. Sim, era isso que o repórter tinha a dizer para apresentar Zorn e Taylor, dois dos maiores músicos da segunda metade do século XX, que pela primeira vez tocavam no país. Ao menos essa cobertura circo-pop logo arrefeceu, cedendo espaço a reportagens mais direcionadas ao trabalho dos artistas. Mesmo assim, a entrevista de Zorn para o “O Globo” trazia ainda um título metido a engraçadinho, “Vanguarda de Pernalonga e Gaguinho”, talvez com o repórter tentando destacar o caráter irônico que permeava o trabalho do Naked City. No dia 24, o jornal traria duas resenhas dos shows de Zorn e Taylor, com os títulos “O jazz-hardcore” e “A hecatombe do som free demais”.

(O Estado de S. Paulo, 26/08/1989)
As coberturas de “Folha de S.Paulo” e “O Estado de S. Paulo” do festival se mostram mais focadas na música. No Estadão, o Caderno 2 dedicou uma página inteira à dupla sob o título “A experimentação é a estrela da noite”, além de um texto específico sobre Taylor, “Cecil, o fluxo da consciência no piano”. O jornal arremataria sua cobertura com um texto de Luís Antônio Giron, com o nome “Derrotas e vitórias na roleta Free”, em que fazia um balanço do festival, dizendo que “o público provou que detesta música de alta informação”, destacando a debandada no show de Cecil Taylor e o sucesso estrondoso da noite dedicada ao blues. “Odiado pelo público amante do standard, Cecil merece o título de melhor pianista do evento”, diz o jornalista que, se exaltou Cecil e seu grupo, não se empolgou com Zorn.

A Folha de S.Paulo é quem daria mais espaço a eles, com textos assinados por diferentes jornalistas (Carlos Calado, Sergio Augusto e Marcos Smirkoff), entre críticas de shows, entrevistas e reportagens visando apresentar o trabalho do pianista e do saxofonista. Começando sua cobertura do evento ainda no Rio, permitiu que fossem publicadas matérias com os dois músicos por dias seguidos. Essa sequência de reportagens na Folha começa com o texto “Cecil Taylor e Zorn dizem que não fazem jazz”, no dia 22, feito a partir da coletiva que os dois deram no dia anterior em uma sala do Hotel Nacional. Indagado sobre o que seria o free jazz, Taylor diz: “O que é free jazz? Eu não sei o que é. Jazz é apenas um conceito. É uma palavra sem sentido. O que existe é música criada por pessoas em cima de uma herança específica”. Depois viriam os textos “Zorn e Taylor colam e quebram a música”, “Cecil Taylor radicaliza sem piedade”, “Zorn e banda injetam ruído no festival”, “Saxofonista compõe para supergrupo” (em que são destacadas as qualidades dos integrantes do Naked City), “Para Taylor, público não escutou nada” e “Piadas de Zorn perdem a graça ao vivo” (este, o único de teor mais negativo, em que Sergio Augusto demonstra ter preferido ver Almir Sater, que abriu a noite (!), dizendo não ter má vontade com Zorn, que adorou “Spillane”, mas que “quem desconfiava que a elasticidade do seu talento fora superestimada não se decepcionou”).    

(Folha de S.Paulo, 22/08/1989)
De um modo geral, essa rara noite free do Free Jazz Festival foi bem acolhida pela crítica, sendo bastante destacada e, com algumas ressalvas, elogiada. Mas isso não foi suficiente para os produtores/curadores do evento se convencerem de sua relevância. Nos anos seguintes, a escalação do festival demonstraria seu afã de ser um evento cada vez mais gigante, independentemente da qualidade, sendo chamadas figuras de baixa relevância artística, como Grover Washington Jr. e Kenny G, ou de grande apelo midiático, como Steve Wonder, entrando em um rumo que o levaria a se tornar cada vez mais um festival pop rock que jazzístico...  Em seus 15 anos de existência, o Free Jazz Festival trouxe ainda, pontualmente, alguns poucos nomes do free: Ornette Coleman (93), um já amansado Pharoah Sanders (97) e o Art Ensemble of Chicago (2000). Mas foi só. Os entusiastas do universo free teriam de esperar até anos recentes para poderem de fato apreciar essa música de forma mais contínua em nossos palcos.



(Naked City - Live in Germany, 1990)





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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)