O ano começa com a triste notícia da morte de um dos
artistas mais inventivos a surgir no cenário nacional. Na sexta-feira, dia 1, Gilberto
Mendes, vitimado por um infarto, encerrava sua longa jornada sonora. Aos 93
anos, deixou dezenas de desafiadoras obras, um legado fundamental para a música
criativa de qualquer canto em qualquer tempo.
A história de Gilberto Mendes sintetiza a odisseia daqueles
que nunca desistiram de crer e criar: a arte como fundamento. Tendo vivido sempre em Santos,
litoral de São Paulo, onde nasceu em 1922, distante dos principais centros
culturais, Mendes teve de estruturar um caminho próprio. Para sobreviver e manter
sua criação sempre livre, trabalhou até se aposentar como bancário na Caixa Econômica
Federal. “Eu precisava trabalhar e fui ser bancário. Prestei concurso na Caixa
Econômica e entrei. Eu pegava aquelas notas de empréstimo, de financiamento de
casa, e ficava rascunhando atrás, fazendo anotações, escrevendo ideias
musicais. Fui bancário a vida toda, 34 anos, mais um de licença prêmio, e me
aposentei. Meu melhor ordenado ainda é o que ganho como bancário aposentado”, disse, certa vez,
em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Se tornaria também, mais à frente em sua trajetória, professor de música, na Universidade de São Paulo, onde concluiu doutorado. Mendes começou a estudar
piano relativamente tarde, aos 19 anos, no Conservatório da pianista Antonietta
Rudge. Em 1944, começaria a estudar harmonia e foi aí que compreendeu que seu
caminho estava mais ligado à composição do que a ser instrumentista, como inicialmente desejara. O
interesse do estudante Mendes logo se voltou às vanguardas; primeiro, o interesse pelo Microcosmos de Bartók; depois, Debussy e Webern, “meus mestres maiores,
mestres da simplicidade, da expressividade”, dizia ele.
A chegada dos anos 1960 seria fundamental na trajetória de
Mendes, marcando definitivamente seu nome no cenário da música experimental. Em 62, o compositor foi aceito no curso de verão de Darmstad, na Alemanha,
onde pôde estudar com Henri Pousseur, Stockhausen e Pierre Boulez. Nesse tempo, também esteve muito próximo ao grupo da poesia concreta, escrevendo algumas de suas mais célebres peças a partir de poemas dos protagonistas do movimento, como Nascemorre
(Haroldo de Campos), descrita como uma experiência de música aleatória e
microtonal com vozes corais, percussão, 2 máquinas de escrever e tape, produzida
entre 62 e 63; Motet em ré menor (Beba
Coca-Cola), a partir de poema de Décio Pignatari, de 67; e Vai e Vem (José Lino Grünewald), para coro, fita,
toca discos, papel de seda sobre pente e flauta doce, de 69; antes de acabar a década, comporia ainda um dos principais marcos de sua obra, Santos Football
Music, para orquestra, gravações com jogo de futebol e participação
ativa do público. Data ainda do período a criação do evento Festival Música
Nova, que ele concebeu para apresentar sonoridades contemporâneas, sempre ignoradas por outros festivais musicais, e que alcançou quase 50
edições, tendo sido realizado com periodicidade anual, com pouca (ou menos
ainda) verba, da forma que era possível: independentemente da descrença de muitos em relação à vitalidade
dessa música, Mendes nunca desistiu de vivê-la e promovê-la.
(Nascemorre)
Foi assim, batalhando com e pela arte na
qual acreditava, que Mendes gestou uma
das obras mais expressivas e inventivas do repertório contemporâneo. Indo de
criações de uma radicalidade mais dura, embebidas no serialismo integral
idealizado por Boulez e Stockhausen, passando pela liberdade aleatória e a
soltura dos happenings de John Cage, alcançando momentos de elevado lirismo em lieder apoiados sempre em
poesia brasileira (musicou textos de Carlos Drummond de Andrade, Haroldo e
Augusto de Campos, Hilda Hilst, Vinícius de Moraes, Florivaldo Menezes, Alberto
Martins, José Paulo Paes e outros tantos), a obra de Mendes registra um
catálogo de aproximadamente duas centenas de composições desenvolvidas em sete décadas de trabalho – a maior parte desse material,
claro, não dá para encontrar editada em disco no país...
A escuta da obra de Gilberto Mendes mostra-nos como as vanguardas universais podem se integrar a sonoridades brasileiras no desenvolvimento de uma música muito particular. “Música experimental, mas à minha
maneira. Experimento com linguagens, combinatório, visando uma nova linguagem
para um momento novo, atemporal. Naturalmente pesa nessa experiência o meu
repertório, os sons que formaram meu gosto musical. Outro compositor, com outro
gosto, usando a minha técnica, vai tecer uma outra malha sonora”, escreveu em “Viver sua Música”.
Perde-se Mendes; sua obra permanece, à espera de ser (re)descoberta
em suas múltiplas faces criativas, sempre pronta a nos surpreender uma vez
mais.
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Para conhecer + Gilberto Mendes...
*Livros
(do autor)
“Uma Odisséia Musical”. Edusp, 1994.
“Viver sua Música”. Edusp/Realejo,
2008.
(sobre o autor)
“Gilberto Mendes: vanguarda e utopia nos mares do sul”.
Teresinha Prada. Ed. Terceira Margem, 2010.
“Gilberto Mendes: entre a vida e a arte”. Carla Delgado de Souza.
Editora da Unicamp, 2013.
*Documentário (DVD)
“A Odisséia Musical de Gilberto Mendes”. Carlos de Moura
Mendes, 2006.
(Vai e Vem)
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e música para o Valor Econômico. Também colabora com o site
português Jazz.pt. É autor das liner notes dos álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)