Cinco décadas de um clássico





Há 51 anos, John Coltrane entrava em estúdio para gravar uma de suas indiscutíveis obras-primas: A Love Supreme.
O álbum retorna agora ao mercado como “A Love Supreme: The Complete Masters”, no que provavelmente se estabeleça como sua edição definitiva.



Lançado originalmente em fevereiro de 1965, o icônico álbum contava com cerca de apenas 33 minutos, uma suíte repartida em quatro partes: no lado A, estavam “Acknowledgement” e “Resolution”; no lado B, “Pursuance” e “Psalm”. Junto com Coltrane, seu quarteto clássico: McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria). Esse registro foi feito no dia 9 de dezembro de 1964. Por décadas, se falou sobre uma segunda sessão de “A Love Supreme”, ocorrida no dia seguinte, em 10 de dezembro, à qual foram adicionadas as presenças de Archie Shepp (sax) e Art Davis (baixo). A música desse segundo dia, executada em sexteto, foi dada como perdida até parte dela ser resgatada e editada em 2002, no álbum duplo “A Love Supreme: Deluxe Edition”. Essa edição de 2002 trazia ainda a única versão ao vivo integral de A Love Supreme que se conhece, realizada no dia 26 de julho de 65, no Festival de Jazz de Antibes. O que restou então para esta nova edição?

O recém-lançado “A Love Supreme: The Complete Masters” apresenta o que seriam as sessões completas realizadas em 9 e 10 de dezembro de 64, em quarteto e sexteto, adicionando mais material ao que foi divulgado na “Deluxe Edition”. Do dia 9, dentre os extras há a “undubbed version” de Psalm. No livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, de Ashley Kahn, o engenheiro de som Rudy Van Gelder conta que Coltrane não gostou da maneira como Psalm se encerrava, faltava algo. Daí, eles gravaram apenas os últimos segundos do sax de novo. “O saxofone final de Psalm [na versão original] foi um overdub”, diz Gelder. “O primeiro saxofone está no lado esquerdo, e o saxofone do overdub está no direito.” Assim, agora podemos ouvir a versão “limpa” de Psalm. Há ainda desta sessão versões mono de Pursuance e da própria Psalm. Também há dois takes do “vocal overdub” que fecha Acknowledgement. Mas o mais interessante do box pertence ao dia 10. É da sessão feita em sexteto que vem duas novas versões para Acknowledgement.  Na “Deluxe Edition”, que pela primeira vez apresentou  esse encontro em sexteto, havia duas leituras de Acknowledgement que contaram com a participação de Archie Shepp e Art Davis. Agora, estão disponíveis nada menos que quatro versões para o tema executadas pelo sexteto naquele mítico dia. E uma delas, em especial, chama a atenção, com mais de 12 minutos de duração (as outras têm cerca de 9 minutos), em que se destacam os longos solos de Shepp e Coltrane. É curioso que no encarte da “Deluxe Edition” conta-se que no dia 10 foram, de fato, gravadas 4 versões de Acknowledgement pelo sexteto, mas que apenas a fita com as 2 leituras que estavam na caixa A3 haviam sido resgatadas. “A A4, com as outras 2 versões, infelizmente se perdeu”, dizia o encarte. Para sorte dos fãs, a informação estava equivocada, como se vê agora. Vale notar ainda que as fotos que existem das sessões de “A Love Supreme” pertencem ao dia 10 (como a acima) – do dia 9, não há imagens.

A Love Supreme: The Complete Masters ficou organizado da seguinte forma:
CD1: disco original + versões mono de “Pursuance” e “Psalm”; CD2: sobras da sessão do dia 9 + gravações do dia 10; CD3: apresentação ao vivo da peça em 26 de julho de 65, no Festival de Jazz de Antibes.



Apesar da unidade que marca a suíte “A Love Supreme”, é interessante que uma de suas quatro partes tenha acabado por se sobressair, como costuma ocorrer com as grandes sinfonias clássicas, das quais normalmente as pessoas se recordam mais de um movimento que dos outros. Muito da sedução de “Acknowledgement”, a parte sempre lembrada, se deve à sua encantatória melodia, composta por simples quatro notas que parecem balbuciar “A-Love-Su-Preme”. Esse pequeno mantra, que surge primeiro no baixo sendo depois retomado e reelaborado pelo sax tenor repetidas vezes durante a peça, cria um chamamento irresistível, ecoando nos ouvidos muito depois de a audição ter sido encerrada. Coltrane provavelmente sabia que “Acknowledgement” era o núcleo espiritual e o centro sonoro de sua composição; não à toa, foi apenas esse tema que ele tentou expandir para uma versão em sexteto.

Como clássico que se tornou, “A Love Supreme” teve diferentes releituras desde os anos 70; houve visitações completas à suíte (Branford Marsalis, Wynton Marsalis, Joe Lovano, Elvin Jones, Dal Sasso/ Belmondo Big Band), parciais (Andrew Cyrille, Ravi Coltrane, Giorgio Gaslini)  e também muitas versões apenas de “Acknowledgement” (Carlos Santana e John McLaughlin, David Murray, Alice Coltrane, Wadada Leo Smith, Robert Glasper, Jamaaladeen Tacuma). A peça também inspirou o mundo pop, como o tema “A Love Supreme” do grupo de eletrônico britânico Ballistic Brothers; a pavorosa leitura com ares smooth jazz do cantor de R&B Will Downing; e o U2, que canta em “Angel of Harlem”: We got John Coltrane and A Love Supreme...


No conhecido artigo “Por que ler os clássicos”, o escritor italiano Italo Calvino afirma: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Esse, sem dúvida, é o caso de A Love Supreme que, passado meio século desde sua criação, ainda continua tendo tanto a nos dizer.
  






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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records)